Na casa do Pai

Artigo que o Prelado do Opus Dei publicou em vários países, em Portugal no jornal “Público”, a 8 de Abril de 2005, dia do funeral de João Paulo II.

João Paulo II falou-nos de muitas maneiras. Com encíclicas, homilias, discursos, cartas e livros. De viva voz, por escrito, com imagens. Usou também a linguagem dos símbolos, com gestos eloquentes, carregados de sentido. Todas essas acções nasciam do fundo de uma alma intimamente unida a Jesus Cristo e por isso transportavam consigo a força comunicativa da Palavra de Deus.

Estes pensamentos assaltavam a minha mente com força insistente na noite de sábado, 2 de Abril. Parecia-me que todo o dia era um suceder-se de sinais de penetrante eloquência. De manhã, chegaram-nos as palavras fragmentadas que dirigiu aos jovens, a sua última mensagem: “Procurei-vos, agora vindes vós junto de mim e agradeço-vos”. Como foi dito nalguns dos programas televisivos de Itália, o dia 2 de Abril foi uma improvisada e imprevista “jornada mundial da juventude”. À noite, 100.000 pessoas rezavam a Nossa Senhora pelo Papa, quando expirou. A Virgem Maria acolhia benevolamente a oração dos filhos pelo seu pai. “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte”. Parece que João Paulo II faleceu ao terminarem as orações da Praça, e que o “Ámen” foi a sua palavra de adeus. Antes, às oito da noite, D. Stanislau Dziwisz celebrou a Santa Missa do Domingo da Misericórdia. Seria porventura possível pronunciar uma palavra mais consoladora junto do leito de morte de uma pessoa que amássemos? A Misericória de Deus Pai, que sempre te acompanhou, espera-te no Céu, morada definitiva do Amor.

Diante dos meus olhos, o dia 2 de Abril aparecia denso de simbolismo, de coincidências impossíveis de prever, impossíveis de organizar. Só a Providência de Deus, rico em misericórdia, pode reunir a oração de milhares de filhos em favor do seu pai, diante da Virgem Maria, na véspera da festa universal da Misericórdia.

Todas essas circunstâncias nos interpelam, não apenas com a linguagem das palavras, nem somente com a expressividade das emoções, mas com a beleza dos símbolos, que imprimem uma marca indelével na alma.

A liturgia que se irá celebrar nas exéquias de João Paulo II porá nos nossos lábios uma formosa oração, no prefácio da missa de defuntos, que nos confirma na “esperança da nossa feliz ressurreição”. Com que luminosidade sente agora a Igreja que, “se a certeza da morte nos entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade!” Que natural é agora imaginar o Papa na presença da Santíssima Trindade, vivo já para sempre, porque sabemos que “para os que crêem em vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma; e, desfeita a morada deste exílio terrestre, adquirimos no céu uma habitação eterna”!

João Paulo II caracterizou-se por suas muitas qualidades e facetas, e não faltará quem, nesta hora, enalteça o seu papel na história da Igreja e da humanidade, as suas virtudes humanas e sobrenaturais, os seus talentos. Para mim – como para incontáveis homens e mulheres no mundo inteiro –, o Papa foi, acima de tudo, um pai. Na sua pessoa experimentámos de modo muito intenso que a Igreja está unida pelos laços de comunhão próprios de uma família; que o Papa é um pai para os católicos dos mais variados países, que é princípio e fundamento da unidade na Igreja, fonte de fraternidade entre todos os homens, promotor da paz.

Atrever-me-ia a dizer que João Paulo II representou de modo excelso o principal papel da sua vida, o papel de pai, a função de vigário de Cristo. Imagem, com toda a sua personalidade; e símbolo vivo entre nós. Oxalá saibamos entender e secundar tudo o que Deus nos pede, de modo tão claro e próximo, e acertemos a fazer da Igreja, como João Paulo II nos propôs, “casa e escola da comunhão”.

Hoje, acumulam-se os motivos de gratidão. A Deus pelo dom deste Papa. A João Paulo II pela sua fidelidade forte e doce; a tantas pessoas – eminentes ou desconhecidas – que foram seus colaboradores nestes quase vinte e sete anos; especialmente àqueles que cuidaram dele com amor filial até ao último momento: a D. Stanislau Dziwisz, fiel assistente de toda a vida; a essas religiosas cujos nomes não aparecem nos jornais; à Polónia, que ofereceu à Igreja este filho ilustre; aos médicos; aos jornalistas que, partilhando a emoção, nos vêm contando estes momentos difíceis e únicos... Não há espaço para fazer uma lista, mas é de justiça expressar, pelo menos de forma genérica, a gratidão para com aquelas pessoas que estiveram sempre perto e fielmente serviram este servo bom e leal que o Senhor recebeu com um abraço no Céu.

João Paulo II repetiu com frequência, também quando lhe pediam que não se desgastasse tanto fisicamente, estas palavras: “depois de um Papa vem outro”. Penso que essa expressão manifestava a consciência de estar de passagem neste mundo, como todos nós, mas também a certeza de não ter sido colocado pelo Espírito Santo na sede de Pedro para ser aclamado como homem, mas para incentivar os homens a aclamarem Deus.

Nestes dias, nós os católicos rezamos já pelo próximo Papa, quem quer que venha a ser. Desde já lhe queremos bem, com toda a alma, antes ainda de o conhecer. E pedimos ao nosso muito querido João Paulo II que interceda diante de Deus pelo seu sucessor. Vêm-me à memória umas palavras de S. Josemaria Escrivá: “Para tantos momentos da História, parecia-me muito acertada aquela consideração que me escrevias sobre a lealdade: «Trago todo o dia no coração, na cabeça e nos lábios uma jaculatória: Roma!». Um nome de cidade, uma oração, um laço de união para todos os católicos, para todos os homens de boa vontade.