OS RELATOS vocacionais da Sagrada Escritura têm muitos elementos em comum. Um deles é a desigualdade entre as qualidades humanas da pessoa que é chamada e a missão que Deus lhe encomenda. À primeira vista, não parece tratar-se de uma boa escolha. Mas, o Senhor não se concentra tanto nas aparências, mas numa faceta que passa geralmente despercebida: a simplicidade de coração. Isso é o que faz com que a terra sobre a qual cai a semente divina seja boa e dê fruto (cf. Mt 13, 9): sabe que o seu crescimento não depende tanto do que ela fizer, mas de colaborar, deixando que Deus faça. «Reconheces-te miserável. E és – escreve São Josemaria –. Apesar de tudo, e mais ainda por isso, Deus procurou-te: – O Senhor sempre emprega instrumentos desproporcionados, para que se veja que a “obra” é d’Ele. – A ti só te pede docilidade»[1].
Por outro lado, «o soberbo é aquele que se julga muito mais do que é na realidade; aquele que anseia por ser reconhecido como mais do que os outros, quer ver sempre os seus próprios méritos reconhecidos e despreza os outros, considerando-os inferiores»[2]. Nos Evangelhos, vemos que Jesus, quando se encontra com pessoas demasiado seguras de si mesmas, «as medica com o remédio da humildade. Isso ensina-nos que a salvação não está nas nossas próprias mãos, mas que é um dom gratuito que Deus nos quer oferecer»[3].
Ao lidar com aqueles que nos rodeiam, podemos desenvolver uma série de atitudes que nos poderão ajudar a cultivar um coração simples: reagir com serenidade e gratidão quando nos corrigem, ver os aspetos positivos nos outros, aceitar os seus próprios erros e os dos outros com sentido de humor, reconhecer os dons que o Senhor nos deu… Desse modo, a nossa vida será essa terra boa que fará crescer a semente divina, porque «Deus resiste aos soberbos, e aos humildes dá a graça» (Tg 4, 6).
ÀS VEZES, sucede que, quem é chamado por Deus experimenta a incompreensão dos outros. Moisés teve de suportar as críticas e os murmúrios do seu próprio povo quando passaram por dificuldades no deserto. Jeremias sofreu o desprezo quando os seus chamamentos à conversão foram ignorados. Anunciar a presença de Deus hoje também pode ser uma tarefa difícil. Porém, o cristão sabe que não está sozinho. Não está a difundir uma ideologia, nem a vender um produto, mas a proclamar uma Palavra que o supera e o transcende, que traz esperança e paz, e que responde aos desejos mais profundos da pessoa humana.
A voz do cristão escuta-se, especialmente, mais do que com palavras sonoras, através do testemunho da sua vida. A semente que recebemos com o Batismo vai dando fruto todos os dias, com discrição e naturalidade, através da amizade e do cuidado com os outros. «Se olharmos à nossa volta para este mundo, que amamos porque foi feito por Deus, dar-nos-emos conta de que se verifica a parábola: a palavra de Jesus Cristo é fecunda, suscita em muitas almas desejos de entrega e de fidelidade. A vida e o comportamento dos que servem a Deus mudaram a história, e, inclusivamente, muitos dos que não conhecem o Senhor regem-se – talvez sem sequer o saberem por ideais nascidos do Cristianismo»[4].
Saber que somos eleitos por Deus e contemplar o bem que podemos semear à nossa volta ajudar-nos-á a dar sentido às dificuldades que se possam apresentar no nosso caminho. «A tarefa da evangelização enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais sensíveis para reconhecer a ação do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um missionário dedicado experimenta o prazer de ser um manancial, que transborda e refresca os outros. Só pode ser missionário quem se sente bem a procurar o bem dos outros, a desejar a felicidade dos outros. Essa abertura de coração é uma fonte de felicidade, porque “há mais alegria em dar do que em receber” (At 20, 35). Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade»[5]. Em troca, Deus recompensa a generosidade «com uma humildade cheia de alegria»[6].
«O CRISTÃO sabe que está enxertado em Cristo pelo Batismo; habilitado a lutar por Cristo pela Confirmação; chamado a atuar no mundo através da participação na função real, profética e sacerdotal de Cristo; feito uma só coisa com Cristo pela Eucaristia»[7]. Através dos sacramentos, somos constituídos no que é Jesus: Sacerdote, Rei e Profeta[8]. Todos, fiéis, leigos e pastores, cada um à sua maneira, participamos da missão da Igreja que é a expressão verdadeira do ofício triplo que Cristo desempenha em favor do seu povo[9].
Por um lado, o sacerdócio comum consagra-nos e dá-nos a capacidade de levar a Deus todas as coisas, oferecendo-lhe o sacrifício da nossa própria existência. Como escreve São Paulo: «Portanto, quer comais, quer bebais, o que quer que façais, fazei tudo para glória de Deus» (1Cor 10, 31). Qualquer uma das nossas ações, desde as que consideramos mais insignificantes, até às mais importantes, podem ser oferecidas ao Senhor. Por outro lado, também podemos participar na função real de Cristo que, sendo Senhor do Universo, fez-Se o servo de todos[10]. Para o cristão, «servir a Cristo é reinar»[11]. Ser rei não consiste em mandar outros obedecerem. Reinar com Cristo é servir por amor, reinar é ajoelhar-se e lavar os pés aos outros, como fez Jesus aos apóstolos.
Por fim, o cristão fiel também participa do carácter profético de Cristo. É profeta, sobretudo, quando aprofunda a compreensão da fé e se torna testemunha de Jesus neste mundo[12]. O profeta não é aquele que anuncia acontecimentos futuros, mas aquela pessoa que fala em nome de Deus, que ajuda os outros a interpretar a própria história, e as circunstâncias mais comuns, aos olhos divinos. Nesse sentido, pelo nosso Batismo, somos todos profetas do Senhor, chamados a anunciar aos nossos familiares, amigos e conhecidos, a beleza do Seu amor e da Sua misericórdia. Podemos pedir à Virgem Maria que nos ajude a ser fiéis à missão que Deus nos deu, sabendo que do nosso sim «muitas coisas grandes dependem»[13].
[1] São Josemaria, Caminho, n. 475.
[2] Francisco, Audiência, 06/03/2024.
[3] Ibid.
[4] São Josemaria, Cristo que Passa, n. 150.
[5] Francisco, Evangelii Gaudium, n. 272.
[6] São Josemaria, Forja, n. 591.
[7] São Josemaria, Cristo que Passa, n. 106.
[8] cf. Ritual do batismo, unção pós-batismal.
[9] cf. Fernando Ocáriz, Naturaleza, gracia y gloria, p. 241-260.
[10] cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 786.
[11] Concílio Vaticano II, Lumen gentium, n. 36.
[12] cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 785.
[13] São Josemaria, Caminho, n. 755.