«Ao romper do dia, Jesus apresentou-se na margem, mas os discípulos não sabiam que era Ele» (Jo 21, 4). De madrugada, junto ao mar da Galileia, o Senhor ressuscitado apresenta-se misteriosamente aos seus discípulos, talvez meio oculto pela névoa que sobe desde a água. A Sua voz, ainda que também velada, chega com força: «Rapazes, tendes alguma coisa para comer?». Eles respondem que não. Ainda não sabem quem lhes está a perguntar, mas há algo nessa voz que os faz escutar com atenção e que os prepara para seguir as suas instruções: «Lançai a rede para o lado direito do barco e haveis de encontrar». Obedientes, lançam as redes; e, num contraste surpreendente com os esforços de toda uma noite, pescam em abundância. Enquanto os outros discípulos se maravilham com as redes cheias, São João levanta o olhar. Ele vê muito mais além dos peixes: reconhece aquele que lhes acaba de falar. E diz a Pedro: «É o Senhor!» (cf. Jo 21, 4-8).
Porque é que São João é capaz de discernir a presença de Jesus no final daquela dura noite de trabalho? Na sua reação há algo que nos recorda o começo do seu Evangelho, o seu primeiro encontro com Jesus. «Eis o Cordeiro de Deus!», tinha dito naquela vez São João Batista, enquanto Jesus passava junto de João e André (Jo 1, 36). Para os outros era mais um peregrino, mas o Percursor – ou seja «o que corre à frente», o que vê vir as coisas e as anuncia – via nele o Messias.
São João Batista tinha feito crescer espiritualmente João e André: tinha-lhes ensinado o valor do jejum e a necessidade da conversão; tinha-lhes ensinado a rezar (cf. Mt 9, 14; Lc 3, 1-17; 11, 1). Mas a sua maior lição tinha sido apresentar-lhes Jesus e convidá-los a uma relação pessoal com Ele (cf. Jo 1,35-39). E assim, pondo os seus discípulos diante de Jesus, chegou ao cume da sua missão. Desde esse momento, o Batista afastou-se humildemente: agora correspondia a Jesus ocupar o centro da vida dos seus discípulos (cf. Jo 3,27-30). Durante séculos, o seu exemplo serviu de modelo para tantas pessoas que guiam outras para Cristo e as ajudam a discernir a sua presença nas suas vidas, com a consciência de não ser «senhores, mas guardiães»[1]. Porque «a missão é de Jesus. Ele ressuscitou, portanto está vivo e precede-nos. Nenhum de nós é chamado a substituí-lo»[2]. Estamos chamados, pelo contrário, a facilitar o encontro de cada um com ele; ou seja, desde a proximidade que dá a confiança e o carinho, «É o Senhor!».
O acompanhamento espiritual
«Ao longo desta navegação da nossa vida, [há] tempos de bonança − interna ou externa − inclusive prolongados; mas só no Céu é que a paz é definitiva, a serenidade completa»[3]. O nosso coração inquieto precisa de quem o guie, pelas águas tranquilas e pelas tempestades, até poder descansar em Deus[4]. Precisamos de companheiros que, com a sua conversa próxima, o seu consolo e o seu encorajamento, nos ajudem a navegar com mais decisão e nos iluminem quando surge a escuridão ou perdemos a orientação. Conhecemos tradicionalmente estas pessoas como «diretores espirituais»: pessoas que nos ajudam a perseverar na direção que escolhemos ao seguir Cristo.
Um diretor espiritual caminha junto das pessoas: não substitui a ação de Deus nas suas almas, nem substitui a sua consciência, mas ajuda-as a discernir entre as inspirações do Espírito Santo e as sugestões do diabo, ou da sua própria humanidade ferida. Por esta razão, nas últimas décadas tornou-se habitual na Igreja usar também o termo “acompanhante espiritual”. Neste sentido, dizia o Papa Francisco: «Aquele que acompanha – o acompanhante ou a acompanhante – não se substitui ao Senhor, não faz o trabalho no lugar da pessoa acompanhada, mas caminha ao seu lado, encoraja-a a ler o que se move no seu coração, o lugar por excelência onde o Senhor fala. O acompanhador espiritual (…) é aquele que te diz: “Pois bem, olha para este lado, para aquele lado”, a tua atenção é atraída para aspetos que talvez passam; ajuda-te a compreender melhor os sinais dos tempos, a voz do Senhor, a voz do tentador, a voz das dificuldades que não consegues superar...»[5].
As primeiras pessoas que se aproximaram da Obra sentiram-se queridas e acompanhadas por São Josemaria. Não viram nele uma espécie de guru espiritual que tivesse conselhos para cada situação, mas um amigo ou um pai que escutava e se preocupava pelas suas coisas; e que via fervilhar neles o sangue de Cristo[6]. Quando as pessoas são acompanhadas deste modo, não só apreciam a ajuda que recebem, como também desfrutam das conversas de acompanhamento espiritual. Crescem em maturidade e entusiasmo apostólico, sentem-se fortalecidas na sua relação com Deus; e, se empreenderam uma vocação particular, evitam um errado sentido de independência que as afastaria dos que partilham o seu caminho e a sua missão.
Na recente vida da Igreja, aprofundou-se a consciência de que não só os sacerdotes, mas também os leigos, podem realizar a tarefa do acompanhamento espiritual. E foi assim na Obra desde o princípio. Nestas páginas abordaremos alguns aspetos desta tarefa, tendo sempre em conta que todos estamos chamados a levar os outros para «a luz e o calor de Cristo»[7], mesmo quando não somos formalmente acompanhantes ou diretores espirituais. Num segundo artigo mostraremos também em que sentido a amizade leva, «naturalmente, à confidência pessoal, cheia de delicadeza e respeito pela liberdade»[8]; e veremos como muito do que aqui se descreve é aplicável também a esse acompanhamento, mais informal, mas tão necessário.
Ajudar a obra do Espírito Santo
O objetivo principal do acompanhamento ou direção espiritual é ajudar as pessoas a encontrar Cristo e a reconhecer o que procede dele, para que o Amor de Deus prenda na sua vida e à sua volta. Isto requer um ambiente em que a pessoa possa desenvolver uma relação pessoal com Deus, cultivar o sentido da escuta na oração e aprender a discernir a vontade de Deus em cada momento da sua vida. O guia espiritual pode desempenhar um papel crucial na criação deste entorno adequado. Mas isso requer reconhecer a singularidade de cada pessoa e estar aberto aos caminhos misteriosos da ação de Deus nas almas. «Não se podem oferecer fórmulas pré-fabricadas, nem métodos ou regulamentos rígidos, para aproximar as almas de Cristo. O encontro de Deus com cada homem é inefável e irrepetível, e nós devemos colaborar com o Senhor para encontrar – em cada caso – a palavra e o modo oportunos, sendo dóceis e não tentando por obstáculos à ação sempre original do Espírito Santo»[9].
Por seu lado, a pessoa acompanhada deve ponderar atentamente as sugestões que recebe e meditá-las com um olhar de fé na oração. Como explica o Padre, «saber que Deus nos pode falar através de outras pessoas e de acontecimentos mais ou menos comuns, a convicção de que aí podemos escutá-l’O, gera em nós uma atitude dócil perante os seus desígnios, ocultos também nas palavras dos que nos acompanham no caminho»[10]. Esta atitude pode dar grandes frutos na nossa vida, sempre que nos recordemos que Deus quase nunca fala literalmente através das palavras do guia espiritual. As suas palavras são pelo contrário um convite a dirigir a nossa escuta numa determinada direção, para ver se ali ouvimos as inspirações do Espírito Santo, que é algo que só nós podemos fazer. São palavras para que nos encontremos com a Palavra.
Um genuíno acompanhamento espiritual assenta, num profundo respeito pela atuação do Espírito Santo em cada alma. O diretor espiritual não é um dirigente, mas um servo que ajuda o Espírito Santo a guiar e a iluminar a pessoa acompanhada. Como dizia São Josemaria, «acompanhar as pessoas é uma arte em que o modelo é Jesus Cristo e o modelador, o Espírito Santo, por meio da graça»[11]. Daí que o diretor ou acompanhante espiritual tenha mais de jardineiro do que de arquiteto: não impõe formas, não plasma as suas ideias nas pessoas, mas ajuda a cultivar o terreno da alma para que nela floresça a vida de Deus.
Escutar verdadeiramente
Todos teremos feito alguma vez a experiência: quando nos encontramos com alguém que nos escuta com atenção e com benevolência, abre-se diante de nós um espaço no qual nos sentimos cómodos partilhando pensamentos e emoções, sem medo de sermos rejeitados ou julgados. Quando as pessoas se sentem escutadas, conseguem ser mais conscientes de si mesmas, e colocam-se por sua vez mais facilmente à escuta de Deus, de modo a poderem discernir melhor a sua voz. Por isso, São Josemaria prestava atenção pacientemente aos jovens que se dirigiam a ele, animando-os a abrir livremente o seu coração, e só no final lhes oferecia algum conselho e lhes abria horizontes para a sua vida.
Escutar significa muito mais do que ouvir detalhadamente; requer prestar atenção à profundidade de sentimentos, ideias e experiências que a pessoa está a expressar, e ajudá-la a explorar essa profundidade. Para isso é preciso uma atitude de verdadeiro interesse para com a outra pessoa. Não escutamos os outros para impor a nossa própria agenda ou para implicá-los em projetos apostólicos específicos; escutamos para os ajudar a descobrir aquilo que o Espírito Santo, no seu infinito amor por cada alma, quer para que a sua alegria seja completa (cf. Jo 16, 24). Somos deste modo, como gostava de repetir Bento XVI, servidores da sua alegria (cf. 2Co 1, 24).
Para escutar realmente, e para que as pessoas se sintam escutadas, pode ser útil verbalizar brevemente o que dizem, com as nossas palavras. É um modo de alimentar em si mesmo a disposição de entrar no mundo interior que o outro lhe está a abrir, sem projetar nele os próprios pontos de vista. Além de fomentar e de transmitir essa disposição, certificamo-nos assim de ter entendido bem, e ajudamos o outro a continuar a contar o que quiser. Isto dá serenidade e leva as pessoas a serem responsáveis pela sua vida, a encontrarem elas próprias soluções; a andar por conta própria, a descobrir projetos. Pelo contrário, interrompê-las ou antecipar-se às suas palavras pode ser desencorajado, e não ajuda a soltar-se.
A escuta paciente é um ato de amor que revela um genuíno interesse pelo outro. Por isso, o acompanhante espiritual nunca deve aparentar aborrecimento ou pressa. Muitas vezes, de modo prático, recomenda-se brevidade na direção espiritual. No entanto, é necessário discernir com prudência as diferentes circunstâncias, porque escutar exige tempo: respeitar o ritmo do outro; também os seus silêncios. E às vezes, ou ocasionalmente, uma pessoa pode precisar de conversas longas. As perguntas abertas podem ser úteis, mas não devem interromper o fluxo natural da conversa, nem se devem usar sempre para encher silêncios incómodos. Pelo contrário, os silêncios permitem às vezes que a pessoa aprofunde nas suas reflexões e encontre as palavras adequadas. No silêncio «falam a alegria, as preocupações, o sofrimento, que encontram, precisamente nele, uma forma particularmente intensa de expressão»[12].
Uma atitude de escuta autêntica constrói, mais do que qualquer outra coisa, pontes de confiança, uma condição que é fundamental em todo o acompanhamento espiritual, e que não se pode exigir como requisito. A confiança está à prova desde o início, e cultiva-se com cada encontro. Para que cresça, é essencial que o outro se sinta respeitado, valorizado e seguro de poder partilhar as suas experiências espirituais mais profundas. Fará isso, se descobre no acompanhante um refúgio, um apoio para discernir a voz de Deus.
Os apóstolos encontraram um refúgio como esse em Santa Maria, especialmente depois da Ascensão do Senhor. Ela é «mestra de discernimento: fala pouco, ouve muito e preserva no coração (cf. Lc 2, 19). As três atitudes de Nossa Senhora: falar pouco, ouvir muito e preservar no coração. E as poucas vezes que fala, deixa a marca»[13].
[1] Leão XIV, Homilia, 31/05/2025.
[2] Ibid.
[3] São Josemaria, Carta 2, n. 9.
[4] cf. Santo Agostinho, Confissões, I, 1.1.
[5] Francisco, Audiência, 04/01/2023.
[6] «“Meus filhos, sabeis porque vos amo tanto?” Fez-se silêncio e acrescentou o Padre: “Porque vejo fervilhar em vós o Sangue de Cristo”» (Andrés Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, vol. III, Rialp, Madrid 2003, p. 405).
[7] São Josemaria, Carta 1, n. 22.
[8] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 01/09/2019.
[9] São Josemaria, Carta 11, n. 42.
[10] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 10/02/2024, n. 6.
[11] São Josemaria, Carta 26, n. 37.
[12] Bento XVI, Mensagem para a XLVI Jornada mundial das comunicações sociais, 20/05/2012.
[13] Francisco, Audiência, 04/01/2023.