“Desde o início se sabia que as células-mãe embrionárias eram indomáveis e que não iriam servir para curar”

Entrevista a Natalia López Moratalla, Professora Catedrática de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade de Navarra.

“Yamanaka expressa nalguns dos seus escritos que se trata de um tema científico no qual há que deixar de fora a ideologia e a política”.

No dia 10 de Dezembro passado foi entregue o prémio Nobel de Medicina ao cientista japonês Shinya Yamanaka (Osaka, 1962) pelas suas investigações pioneiras com células-mãe adultas, juntamente com John B. Gurdon. Receberam o prémio Nobel "pela descoberta de que as células maduras se podem reprogramar para se converterem em pluri-potenciais", quer dizer, que a especialização das células é reversível, abrindo assim um campo importante de aplicações terapêuticas.

Natalia López Moratalla, Professora Catedrática de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade de Navarra, explica nesta entrevista a importância deste prémio e como, frente a uma parte da comunidade científica que apostava nas células-mãe embrionárias, as investigações de Yamanaka foram realizadas exclusivamente com células-mãe de adulto.

Por que razão é tão importante este Nobel?

Este Nobel é um grande contributo para a ciência e uma reviravolta numa área que tinha começado mal; por um lado, estava muito centrada em questões ideológicas a respeito da vida humana e, por outro era apresentada como uma solução-necessidade de utilizar embriões sobrantes de fecundação in vitro para curar doenças graves.  

Como este tema tinha por trás muita ideologia e um grande investimento económico, desde o princípio se procurou apresentar perante a opinião pública, como “a Igreja católica não quer que as pessoas se curem, e por isso não se utilizam embriões”, para que as discussões ficassem no terreno religioso e não no científico. E isto, apesar de, desde o início, se saber que as células-mãe embrionárias eram indomáveis e que não iam servir para curar.

E como conseguiu Yamanaka avançar com o seu projeto, acima dessas “pressões”?

“Não se pode dizer: eu investigo teoricamente e os biotecnólogos que os usem. Não há uma linha de separação”.

Na minha opinião, a chave do êxito foi não se confrontar em discussões com os que investigam com células embrionárias. Ele constitui um marco que é: racionalidade, conhecimentos prévios e, como ponto de partida, nunca utilizar um embrião, nem sequer óvulos humanos para clonar. Entre outras coisas, uma vez declarou  que a primeira vez que viu um embrião viu as suas filhas. Mas não se enreda em discussões. Há dois caminhos para obter células pluri-potenciais: destruindo embriões de poucos dias, ou programando células maduras retroativamente; Yamanaka prevê que este último é o caminho correto a seguir.

Esta descoberta fez com que se reescrevam livros e se abram novos campos à investigação, poder-se-ia dizer que pode implicar um volte face coperniano na história da medicina regenerativa, ou é demasiado presunçoso?

O campo de investigação que se abriu é para muitíssimos anos, para muitíssimos laboratórios: Chegou já o sonho dourado de ter modelos celulares de doenças humanas para que possam ser estudadas, testar fármacos, estudar tóxicos, etc. Além disso, volta a estar ao alcance da mão, em poucos anos, uma possível via de cura de doenças degenerativas ou de destruição de tecidos. Agora, em 2012, conseguiu – com os gâmetas obtidos por reprogramação retroativa e maturadosin Vitro – o primeiro modelo para estudo da infertilidade e planear estratégias para a sua possível cura.

No entanto, fica ainda muito trabalho por fazer e nalguns casos será mais difícil do que noutros, mas é possível. Não sei se se poderá falar de volte face coperniano, mas é realmente uma referência para os cientistas.  

Fé e razão, uma parelha bem harmónica 

“Toda uma gama de falsos pressupostos criou a ideia de que o embrião humano não tem o caráter próprio dos homens. Nunca uma ideologia tão falsa foi orquestrada desta forma universal”.

Quando se começou a investigar com células-mãe embrionárias parecia que todos os detratores deste tipo de projetos pertenciam a setores religiosos. No entanto, Shinya Yamanaka, não manifestou, pelo menos publicamente, que preferisse investigar com células mãe adultas por motivos religiosos; por que pensa que o fez desta maneira?

Porque isso é o racional. Insisto em que se sabia que não era possível uma via terapêutica com as células dos embriões. Se estas alguma vez chegassem a amadurecer adequadamente para curar, seriam recusadas, porque não são do mesmo doente. Quando isto se tornou patente, apareceu a chamada clonagem terapêutica: fazer um embrião clone de cada doente. A clonagem com mamíferos parte do grande “boom” da ovelha Dolly, que foi um fracasso porque era doente, estéril, tinha nascido já envelhecida, etc. Após milhares de tentativas, ainda se não conseguiu clonar um primata e falham também todas as tentativas com humanos.  

Yamanaka parte para as suas investigações dos conhecimentos sobre clonagem de anfíbios com que Gurdon contribuiu e que estiveram na base da clonagem da ovelha Dolly. Mas ele não o faz para fazer clonagem humana, mas para conhecer em que medida o desenvolvimento embrionário pode ser reversível e se pode caminhar nos dois sentidos.

Pode ser a confirmação – não definitiva, mas uma vez mais – de que a fé não se opõe à ciência e que muitas vezes nos pode ajudar no verdadeiro caminho do progresso?

Demonstrou efetivamente, uma vez mais, que quando se trabalha com rigor científico – com a ética própria da investigação que procura conhecer como são as coisas e como funcionam – acaba bem. A verdade vem sempre ao de cima. Penso que é um caso muito especial e exemplar, quer pelo facto de negar que o ponto de partida para os seus trabalhos fosse destruir embriões e manipular mulheres para conseguir óvulos humanos; quer por que pensou nas consequências de outros poderem partir das suas experiências e empregou todos os meios ao seu alcance para que isso não sucedesse. 

Desde que iniciou o seu trabalho foi literalmente assediado pelos que desejavam manter a utilidade das células embrionárias, como controlos imprescindíveis para as iPS (células-mãe pluri-potenciais induzidas). Yamanaka expressa nalguns dos seus artigos que se trata de um tema científico no qual há que deixar de fora a ideologia e a política. E resolve também esse ponto sem ceder no uso de embriões. A racionalidade científica é uma fonte de conhecimento. Não sei se ele tem ou não princípios religiosos, o que demonstrou ter é retidão e não em nome da religião, mas no da ética da investigação científica.  

“Desde o princípio que se sabia que as células-mãe embrionárias eram indomáveis e que não iam servir para curar.”

De facto a ciência pode chegar a certezas e dar o sentido biológico, natural de uma realidade ou de um processo. A racionalidade ética dá o sentido humano dos processos vitais do homem. A fé dá a razão última, o sentido pleno da vida e da dignidade humana. Esse caminho é de uma beleza excecional quando se percorre com a plena liberdade de quem procura a verdade.  

Depois de todas as aberrações cometidas no século XX, as investigações de Yamanaka são um bom argumento para falar à comunidade científica de que nem tudo é lícito?

Com certeza. Quando se lançou a bomba atómica, Bohr (um dos pioneiros da energia nuclear) confessou que se tivesse pensado, nalgum momento, nas consequências das suas investigações, se tivesse sido mais prudente ao falar nas suas aulas, seguramente não teriam participado tantos dos seus discípulos no fabrico da bomba. Não se pode dizer: “eu investigo teoricamente e os biotecnólogos que utilizem as conclusões”. Não há uma linha de separação.  

Num momento como o atual, em que o desprezo pelo embrião, pela vida nascente e pela transmissão da vida humana é tão forte, este é um testemunho que pode fazer refletir profundamente.

Nunca se verificou na história, uma falsificação de dados a respeito do caráter do embrião humano, como na segunda metade do século XX. Usaram-se dados puramente especulativos, mantidos como dogmas da ciência apesar de se ter comprovado que eram falsos; para atacar a fé e a moral sexual da Igreja já desde os anos em que Paulo VI condenou a anticonceção farmacológica.  

Toda uma gama de falsos pressupostos criou a ideia geral de que o embrião humano não tem o caráter próprio do homem. Nunca uma ideologia tão falsa foi orquestrada desta forma universal. Nela se basearam modos de vida, conceitos de família, etc., que amparados pelas leis, querem apresentar a fé e a Igreja como inimigas do progresso. Creio que esta situação dá um valor único às posições deste grande Prémio Nobel.