O Padre teve de passar o verão de 1951 em Roma. As circunstâncias forçaram-no – a expressão é sua – a permanecer ao pé do canhão. Foi um sacrifício notável, por se encontrar extenuado pelo muito trabalho de todo o ano letivo, com a construção da casa a meio e a ameaça dos rigores estivais do ferragosto romano. A estes fatores, juntavam-se as alterações próprias da diabetes, de maneira que o sofrimento já era, por essa altura, de tal maneira intolerável que dizia a brincar que lhe trazia continuamente à memória o Purgatório. Por outro lado, também não podia sair de Roma. Há algum tempo que notava uma quase impercetível mudança em algumas pessoas da Cúria. Um dia, chegava aos seus ouvidos um comentário ligeiramente crítico; noutro, um Cardeal, velho conhecido do Pe. Josemaria, negava em público ter alguma vez mantido relacionamento com ele.
Por estes e outros indícios, começou a suspeitar que se estava a maquinar alguma coisa, sem conseguir definir, nem perceber efetivamente do que se tratava. Estes sinais, referidos e centrados na Obra, indicavam a presença de alguma coisa suspeita. Havia sem dúvida uma grave ameaça que se abatia sobre o Opus Dei. E, embora se tratasse, mais que de notícias, de pressentimentos difusos, uma estranha intuição acabou por dominar as reflexões, os hábitos, e mesmo os gestos do Padre Josemaria, que se mostrava simultaneamente alegre e preocupado. Dizia graças, mas insistia muito em que rezassem pelas suas intenções. O seu estado de espírito refletia-se numa inquietação muito especial, num desassossego interior que transparecia no seu olhar, e mesmo no modo de andar.
«Como sempre – testemunha Encarnación Ortega – recorreu à oração e à mortificação. Passava dias inteiros sem comer nada ou praticamente nada, o que nos fazia recear pela sua saúde. Também sabíamos que dormia muito pouco. E era cada dia era mais insistente a premência com que nos pedia que rezássemos, e mais intenso o modo como o nosso Padre rezava. Um dia, mandou-nos interromper todas as nossas ocupações e ir meia hora para o oratório ‘forçar’ o Senhor com a nossa oração [...]. Parece-me que foi uma das vezes, em toda a nossa vida, em que mais nos empenhámos em pedir a Deus que ajudasse o nosso Padre».
Num desses dias da primeira metade do verão de 1951, anda o Padre Josemaria a passear concentrado pelo jardim de Villa Tevere, em passo rápido, tirando umas notas numa agenda de bolso, quando se aproximou dele um dos seus filhos, Javier Echevarría:
— «Como está, Padre?», perguntou-lhe.
— «Cheio de paz e com uma fortaleza santa: como um leão, disposto a defender esta Obra de Deus que o Senhor me confiou. Reza e ajuda-me» – foi a sua resposta.
Embora não soubesse exatamente de que se tratava, o Padre intuía uma nova contradição relacionada com a sua pessoa e com toda a Obra. Esse obscuro pressentimento calava no mais fundo do seu ser. Pressentia um perigo grave, mas de forma tão vaga, que não conseguia livrar-se da sensação intangível que resulta de quem adivinha um risco próximo, sem conseguir perceber donde virá o golpe. Sentia a ameaça invisível em tensão, com todos os sentidos em atitude de alerta, à espera do ataque:
«Sinto-me como um cego que tem de se defender – dizia o Padre –, mas a única coisa que consegue é dar bastonadas no ar; porque não sei o que se passa, mas passa-se alguma coisa…».
Ainda assim, e embora o magoasse, este pressentimento era uma graça divina que impulsionava toda a Obra, com o Fundador à cabeça, em direção à Cruz de Cristo. O Senhor permite estas obscuridades «para nos santificarmos, e para que a Obra se fortaleça», escrevia pouco depois.
Em anteriores campanhas de calúnias, intrigas e vilanias, sabia a quem recorrer, como responder e a quem replicar. Agora, tinha de lutar contra sombras intangíveis. Quando se dera «a contradição dos bons», os amigos tinham-lhe aconselhado dois tipos de procedimento. Segundo uns, o melhor era calar-se e deixar-se caluniar, envolvido numa capa de humildade. Se recebesse os golpes em silêncio, os inimigos não teriam oportunidade de espalhar o escândalo. Outros, pelo contrário, eram partidários de que proclamasse a verdade em altos brados; por isso, animavam-no a defender-se: a responder, a repudiar e a rebater os detratores. O Padre Josemaria achava que ambas as posições eram razoáveis e cristãmente compatíveis. Mas não era fácil «adivinhar a maneira justa de fazer as coisas», porque, refletindo sobre a forma como devia conduzir-se, por muito boa vontade que tivesse, ficava sempre a perder. Mas a culpa não era sua, como nos resume, fazendo a história das perseguições sofridas:
«Os acontecimentos sempre me demonstraram que estava, na realidade, na mesma situação que se relata na fábula do velho, o rapaz e o burro. Fizesse o que fizesse, surgiam murmurações».
Haveria sempre observações e distorções. Acontecia-lhe o mesmo que àquele velho que volta do campo com o filho. Vai montado no burro, contente da vida, quando passa um vizinho, que lhe critica a conduta: — O quê? Satisfeito, não? E o filho que se amanhe!
O velho apeia-se, e monta o filho no burro. Um pouco mais adiante, cruzam-se com uma mulher. — Como?, exclama, indignada. É o pai que vai a pé? O rapaz devia ter vergonha! Este desce do burro, atrás do qual seguem a pé pai e filho, quando ouvem uma indireta: — Cuidado, que o burro ainda se cansa!
Sem saberem o que fazer, montam ambos. O burro percorria pesadamente o último trecho do caminho quando alguém se lhes dirige de novo: — É preciso serem animais! Não veem que o pobre bicho não aguenta?
A situação em que se encontrava era muito confusa, e a ameaça, invisível. Quem rebater? E de quê? Não podia permanecer inativo. Sentia interiormente uma força misteriosa que o levava a defender a Obra com unhas e dentes: «Meus filhos, costumava comentar àqueles que tinha ao seu redor, sou como um leão que ruge, tamquam leo rugiens, alerta, para que o diabo não nos morda».
Tinha a impressão de pisar areias movediças. Álvaro del Portillo procurava contrariar aquela inquietação, apresentando-lhe argumentos positivos: «Padre – dizia-lhe –, mas corre tudo bem, há muitas vocações e, graças a Deus, há muito bom espírito por parte de todos». Mas o Padre insistia em que era preciso fazer alguma coisa. Havia uma força divina que o levava, por “necessidade sobrenatural”, a agarrar-se ao manto de Nossa Senhora, como depois explicaria aos seus filhos: «Como não encontro na terra quem de facto e decididamente nos ajude, dirigi-me à nossa Mãe, Santa Maria».
Uma vez tomada a decisão, a 9 de agosto escreveu à grande família do Opus Dei, dizendo-lhes que, na festa da Assunção, celebraria a Santa Misa em Loreto:
«E ali, dentro daquela casita da Sagrada Família, Jesus, Maria e José, farei a consagração do Opus Dei ao Imaculado Coração de Maria. Depois, renovaremos esta consagração todos os anos, nas nossas Casas e nos nossos Centros, com a fórmula que enviarei. Será uma consagração ambiciosa, porque lhe consagraremos também os povos e as nações que estão longe do seu Divino Filho. É próprio do nosso espírito! Uni-vos a mim, especialmente nesse dia».
Por essa altura, exortava os seus filhos a repetir incessante e incansavelmente uma jaculatória que estava sempre nos seus lábios: Cor Mariae dulcissimum, iter para tutum!, para que o Coração Dulcíssimo de Maria protegesse o caminho da Obra.
Na manhã de 14 de agosto, com um sol à altura das circunstâncias, o Padre partiu de Roma de carro, com Álvaro del Portillo e outros dois membros da Obra. Tomaram a Via Salaria, prosseguindo na direção da costa adriática. Sem pararem pelo caminho, chegaram à basílica de Nossa Senhora de Loreto e marcaram Missa para o dia seguinte no altar da Santa Casa. A meio da tarde, partiram para Ancona, onde passaram a noite.
No dia seguinte, festa da Assunção, o Padre estava em Loreto antes das 9 da manhã, e já a basílica estava cheia de pessoas vindas das redondezas. Celebrou Missa na Santa Casa, um pequeno recinto no meio do templo e onde se apertava uma multidão fervorosa, que tinha acorrido ao local precisamente por ser um dia de festa de Nossa Senhora. O Padre tentava celebrar com recolhimento, mas as manifestações espontâneas de piedade dos assistentes impediam-no de se concentrar:
Assim, enquanto eu beijava o altar, nos momentos prescritos pelas rubricas da Missa, três ou quatro camponesas beijavam-no ao mesmo tempo. Distraía-me, mas estava emocionado. E também me atraía a atenção o pensamento de que naquela Santa Casa – que a tradição garante ser o lugar onde viveram Jesus, Maria e José, – na mesa do altar inscreveram estas palavras: Hic Verbum caro factum est. Aqui, numa casa construída pela mão dos homens, num pedaço de terra em que vivemos, habitou Deus!
Ao regressar da sacristia, enquanto Álvaro del Portillo celebrava Missa às 9:30, o Padre conseguiu refugiar-se no corredor que há por trás do altar da Santa Casa, onde fez a consagração ao Coração Dulcíssimo de Maria, “imagem perfeita do Coração de Jesus”. Em nome de todo o Opus Dei, disse à Senhora:
«Consagramos-te o nosso ser e a nossa vida; tudo o que é nosso – o que amamos e somos. Para Ti os nossos corpos, os nossos corações e as nossas almas; somos Teus, e Teus são os nossos apostolados».
O Padre permaneceu de joelhos todo o tempo que durou a Missa do Pe. Álvaro. Sozinho, metido em oração, sem se aperceber das pisadelas das pessoas que desfilavam continuamente pelo corredor que fica por trás do altar, implorando graças ao Coração de Maria:
«Inflama os nossos pobres corações para que amemos com toda a alma a Deus Pai, a Deus Filho, e a Deus Espírito Santo; infunde em nós um amor grande à Igreja e ao Papa, e faz-nos viver plenamente submissos a todos os seus ensinamentos; dá-nos um grande amor à Obra, ao Padre e aos nossos Diretores; faz com que, fiéis à nossa vocação, tenhamos zelo ardente pelas almas; eleva-nos, Senhora, a um estado perfeito de amor de Deus, e concede-nos o dom da perseverança final».
Ao sair, apercebeu-se de que tinha a batina toda pisada. Depois de tomarem o pequeno-almoço, empreenderam o regresso a Roma. Estava muito calor, mas o Padre ia muito contente. Concentrado em Deus. Em silêncio. Dando graças. Nessa mesma tarde, esteve com as suas filhas e os seus filhos. Contou-lhes de onde vinha, e que a consagração a Nossa Senhora lhe dava a certeza de que Ela tomaria uma vez mais o Opus Dei sob o seu amparo. E encarregou-os de continuarem a suplicar ao Coração dulcíssimo de Maria: iter para tutum.
Cheio de paz e de confiança, o Padre Josemaria fez outras peregrinações a diversos santuários marianos, para agradecer os benefícios recebidos, renovando a consagração feita em Loreto. A 21 de agosto, foi em peregrinação a Pompeia; a 22, ao Divino Amor. Em outubro, chegou a Lourdes no dia 6 e celebrou Missa no dia 7. De Lourdes, partiu para Saragoça, onde no dia 9 se prostrou aos pés de Nossa Senhora do Pilar; e, depois de atender os apostolados da Obra em Madrid, foi visitar os seus filhos de Portugal, renovando a consagração em Fátima, a 19 de outubro.
* * *
Com a habitual bênção do Padre e uma imagem de Nossa Senhora, no dia 8 de dezembro de 1949 partiram para Milão in paupertate et laetitia, os primeiros membros da Obra, para começarem o trabalho da Obra de forma estável nessa cidade. Em dezembro, juntou-se a eles Juan Udaondo, na qualidade de sacerdote do Centro. Semanas mais tarde, o diretor e o sacerdote do Centro foram apresentar-se ao Cardeal Schuster.
— «O senhor é um sacerdote que pertence a uma Instituição de direito pontifício e eu sou o Bispo desta diocese – disse o Cardeal a Juan Udaondo –. Como é que vamos fazer isto?».
— «O nosso Fundador sempre nos ensinou a servir a Igreja como a Igreja quer ser servida – explicou-lhe o sacerdote – e a empurrar o carro na direção que o Bispo marcar. Desejamos mantê-lo informado do nosso trabalho, pelo menos tanto como os párocos das suas paróquias, senão mais».
No verão de 1951, os membros da Obra foram passar o mês de agosto numa casa perto de Roma, em Castelgandolfo, onde assistiram a um curso de formação.
Regressaram a Milão em setembro e, uns dias depois, fizeram nova visita ao Cardeal, que os acolheu como se estivesse impaciente por vê-los: — «Onde estiveram este tempo todo?», perguntou-lhes. Tinha mandado o pároco avisá-los de que queria falar com eles, mas este encontrara a casa fechada. Tinham-lhe sido referidas coisas incríveis, calúnias grosseiras, a respeito da Obra. Mas podiam estar descansados, que ele estava muito satisfeito por tê-los na sua diocese.
— «No entanto…– acrescentou, fazendo um gesto de quem tenta recordar-se. – Quem é que me disse…? Quem é que me disse…? Veio muito lá de cima…» – E o Cardeal deixou a frase em suspenso.
Referiram imediatamente ao Padre a conversa que tinham tido com o Cardeal. Dois dias mais tarde, a 28 de setembro, o Padre indicava aos seus filhos de Milão que fossem novamente visitar o Cardeal Schuster e que – depois terem considerado o assunto na oração – lhe contassem, ponto por ponto, de forma precisa e concreta, o que se tinha passado em Espanha: ataques do púlpito em 1940, consequentes murmurações, falsa informação a alguns bispos, panfletos caluniosos, denúncias às autoridades civis, visitas às famílias, etc. O Cardeal ouviu-os com atenção, repetindo-lhes que estava muito satisfeito com o trabalho da Obra em Milão.
* * *
A 5 de janeiro de 1952, o Procurador-Geral do Opus Dei, Pe. Álvaro del Portillo, recebeu uma nota oficial do Secretário da Sagrada Congregação dos Religiosos, Mons. Larraona, solicitando-lhe de forma cortês uma «cópia das Constituições do Opus Dei e do Regulamento interno da Administração, com uma relação escrita – doutrinal e prática – do regime do Instituto em ambas as Secções, assim como do modo concreto de levar a cabo a singular colaboração sancionada pelas Constituições».
Álvaro del Portillo respondeu imediatamente, em carta com data de 6 de janeiro; em anexo, enviava cópias dos Estatutos do Opus Dei e do Regulamento interno da Administração doméstica, para além de um documento de dez páginas, com uma descrição minuciosa e fundamentada da separação existente entre as duas Secções de la Obra, seu regime e relações entre elas.
«Para se poder compreender e enquadrar corretamente, seja de iure, seja de facto, as relações existentes entre os dois ramos do Opus Dei – começa a carta –, permita-se-nos sublinhar que convém ter presente, e valorizar no seu justo peso, o que a Constituição Apostólica Provida Mater Ecclesia sancionou definitivamente na ordem doutrinal dos princípios jurídicos e na ordem prática da vida».
Para que foi solicitada uma cópia do Direito particular do Opus Dei? Embora não faça explicitamente esta pergunta, a resposta e o raciocínio de Álvaro del Portillo exprimem um leve espanto. Com efeito, os argumentos expostos pelo Procurador-Geral deixam uma pergunta no ar: o Direito particular do Opus Dei não foi escrupulosa e minuciosamente examinado, estudado, aprovado e sancionado? Porque é evidente que os Estatutos obtiveram o nihil obstat do Santo Ofício em outubro de 1943, sendo posteriormente submetidos a um rigoroso e exaustivo exame por parte da Sagrada Congregação de Religiosos, por ocasião da ereção diocesana, em 1943; e de novo ao ser concedido o Decretum laudis, em 1947; e uma vez mais em 1950, quando foi solicitada a aprovação definitiva do Opus Dei. E não é verdade que o trabalho doméstico que as mulheres levam a cabo nas Administrações das casas do Opus Dei foi expressamente elogiado e enriquecido com indulgências por Pio XII no Breve pontifício Mirifice de Ecclesia, de 1947?
Era evidente que tinha chegado à Cúria algum tipo de denúncia, em particular sobre a unidade jurisdicional dos dois ramos do Opus Dei. E alguém se tinha encarregado de que surtisse efeito. Poucos dias depois, o Fundador recebeu uma carta dos seus filhos de Milão, que incluía um relato de Juan Udaondo da visita que acabava de fazer ao Cardeal Schuster:
«Milão, 15 de janeiro de 1952.
Esta manhã, fui visitar o Cardeal Schuster com Juan Masiá. Perguntou-nos como ia o nosso trabalho: dissemos-lhe que bem, e logo a seguir perguntou-nos se o nosso Presidente – referia-se ao Padre – tinha alguma Cruz. Respondi-lhe que nunca lhe faltavam cruzes, mas que para nós a Cruz era sinal de alegria e de predileção divina, e que o Padre nos diz muitas vezes que “um dia sem Cruz é um dia perdido e que Jesus Cristo, Sacerdote Eterno, abençoa sempre com a Cruz”. Então, o Cardeal disse-nos que temos de estar preparados, que continuará a haver perseguições e que ele, lendo a história das obras de Deus e das vidas dos seus fundadores, se tinha apercebido de que o Senhor sempre tinha permitido contradições e perseguições, tendo-as submetido inclusivamente a visitas apostólicas, com o respetivo Fundador deposto do seu cargo de Superior. Falava-nos com afeto; via-se que estava preocupado com a Obra e com o Padre, e dizia-nos que não desanimássemos se nos acontecesse alguma dessas coisas, que devíamos continuar a trabalhar com muito empenho, e repetiu várias vezes: continuate a lavorare, avanti, coraggio, etc.
Tanto Juan como eu o ouvimos muito descansados, e dissemos-lhe que não se preocupasse, que a Obra era de Deus, e que o Senhor tinha habituado o Padre e todos nós à perseguição; que o Padre nos tinha sempre feito ver a mão de Deus em todas estas coisas, e que a Obra resistirá a todas as perseguições, que são para nós um motivo de alegria, e nos ajudam e nos impelem a sermos santos e a trabalharmos exclusivamente pelo Senhor».
Desta forma, o Fundador ficava avisado da origem da contradição, mas não tinha dados concretos e suficientes para acusar quem quer que fosse, ou organizar uma defesa apropriada. Pareceu-lhe, contudo, que seria conveniente reforçar a nota de 6 de janeiro sobre o regime das duas Secções da Obra. Na sua qualidade de Procurador-Geral, o Pe. Álvaro del Portillo voltou a escrever, a 3 de fevereiro, ao Secretário da Sagrada Congregação para os Religiosos, o Pe. Larraona, homem justo e reto que, como já se disse, conhecia os aspetos jurídicos do Opus Dei. No fundo, esta segunda carta vinha mostrar a imprudência e a injustiça daquele modo de proceder da Cúria, e o risco que corria a fama de toda a Instituição ao ser submetida daquela maneira a um processo de investigação. Se funcionava sem escândalo, sem incidentes, com eficácia, há quase um quarto de século, por que se pensava agora em alterar a sua estrutura? O facto de se reexaminarem os Estatutos não levantaria forçosamente suspeitas infundadas, que os caluniadores se encarregariam de difundir aos quatro ventos, como se estivessem a ser tomadas medidas contra o Opus Dei por causa de um escândalo oculto?
Perante operação tão improcedente, o Fundador, confiado na intercessão de Nossa Senhora, recuperou o otimismo:
«Espero, escrevia para Madrid a 9 de fevereiro, que, com a graça de Deus e porque é de justiça, fique tudo em águas de bacalhau. Cor Mariae dulcissimum, iter para tutum!».
Enquanto aguardava o desenlace dos acontecimentos, recebeu de Milão uma advertência premente. O Cardeal Schuster andava sobre brasas. Quando, a 18 de fevereiro de 1952, os membros da Obra tinham ido novamente visitá-lo, mal tinham trocado os primeiros cumprimentos, perguntou imediatamente pelo Fundador:
— «Não tem por esta altura uma grande Cruz às costas?».
— «Se tem, estará muito contente, porque sempre nos ensinou que, se estivermos junto da Cruz, estaremos junto de Jesus» – responderam-lhe.
— «Não, não é isso – interrompeu-os –. Conheço a cruz do vosso Fundador. Digam-lhe da minha parte que se lembre do seu conterrâneo São José de Calasanz e que se mexa».
Quando a carta de Milão chegou às mãos do Padre, o papel já tinha absorvido as lágrimas daquele que a escrevera. O Padre Josemaria entendeu perfeitamente a mensagem do Cardeal e em que consistia a tenebrosa trama urdida contra a Obra. Pretendiam dividi-la em duas instituições separadas e totalmente independentes, uma para homens e outra para mulheres. Para isso, bastava decapitá-la. Afastado o Padre, ficaria desfeita a unidade: percutiam pastorem et dispergentur oves.
O Fundador agiu com rapidez. Avistou-se com o Secretário da Sagrada Congregação para os Religiosos e disse-lhe:
«Fiquem a saber que, se me retirarem do cargo de Presidente Geral sem me explicarem os motivos, a minha dor durará apenas quatro segundos; é um favor que me fazem, porque pedirei a admissão e serei o último no Opus Dei, como sempre desejei ser. Mas, se me afastarem da Obra, saibam que cometem um crime, porque estão a assassinar-me».
Indagou o motivo daquela agitação. Foi informado de que não existia motivo algum. O que havia era uma forte pressão por parte de certas pessoas. Era óbvio que estavam vinculados por segredo de ofício. Não lhe disseram, nem tentou averiguar, os nomes dos ocultos promotores.
O passo seguinte foi falar com o Cardeal Tedeschini, que tomara posse do seu cargo de Cardeal Protetor do Opus Dei a 24 de fevereiro de 1952.
Nessa altura, Mons. Escrivá preparou uma carta em estilo firme e sincero e, acompanhado pelo Pe. Álvaro del Portillo, foi falar com o Cardeal Tedeschini, a quem entregou o escrito, que lhe era dirigido. O Cardeal Protetor leu-a pausadamente, e prometeu que o seu conteúdo chegaria ao conhecimento do Santo Padre. A carta tinha data de 12 de março de 1952. Todo o Opus Dei se entregava, por esses dias, a uma oração intensíssima, enquanto o Padre, com a alma em suspenso, deixava entrever aos seus filhos um coração angustiado:
«Meu filho, diz a um deles, quantas vezes me ouviste dizer que gostaria de não ser da Obra, para pedir imediatamente a admissão, e obedecer a todos e em tudo, ocupando o último lugar? Bem sabes que não quis ser fundador de coisa nenhuma. Foi Deus quem o quis. Estás a ver como querem destruir a Obra, e como me atacam? Querem expulsar-me da Obra [...]. Meu filho, se me expulsarem, matam-me, se me expulsarem, assassinam-me. Já lhes disse: ponham-me em último lugar, mas não me expulsem: porque, se me expulsarem, cometem um assassínio».
Na véspera de São José, 18 de março, o Cardeal Tedeschini obteve audiência papal e leu a Pio XII a carta que o Padre Josemaria lhe tinha dirigido na semana anterior. O tom da exposição era elevado, sincero e familiar. Era um estilo que podia evidentemente ser utilizado com o Cardeal Protetor, a quem se abria a alma de par em par; mas o conteúdo, embora convenientemente envolvido pelo afeto da linguagem, era duro para os ouvidos do Sumo Pontífice. Era, contudo, necessário que a mensagem chegasse ao Papa de forma clara e direta, porque havia muitas razões para suspeitar de que as pessoas que mexiam os cordelinhos do tenebroso assunto tinham acesso direto ao Pontífice.
O Cardeal Tedeschini leu, pois, em voz alta, e o Papa seguia com atenção:
«Roma, 12 de março de 1952.
Eminência Reverendíssima:
Depois de ter sido, durante tantos anos, amigo e protetor de facto [...], e sendo agora, por disposição soberana do Sumo Pontífice, Protetor de iure do Opus Dei, e como pessoa que sempre seguiu com vigilante interesse e paternal afeto o processo interno e o desenvolvimento externo da nossa Obra, ninguém melhor do que Vossa Eminência poderá compreender e apreciar o nosso assombro, repleto de pena e dor profunda, ao receber a carta da Sagrada Congregação para os Religiosos que tem a data de 5 de janeiro de 1952. Do seu conteúdo e da resposta à referida carta tem Vossa Eminência conhecimento pelas cópias dos documentos (6 de janeiro; 3 de fevereiro de 1952), que lhe foram remetidos no momento oportuno. Surpreende-nos e aflige-nos que se queira voltar a uma questão tão profundamente discutida, examinada e decidida, juntamente com todo o ordenamento do Opus Dei.
Permita-se-nos indicar, Eminência, que este comportamento da Sagrada Congregação para os Religiosos não pode ter outra origem que não sejam as denúncias contra o Opus Dei. E nesse caso, animados por um vivo sentimento de justiça e de amor à verdade, atrevemo-nos a expor o desejo de que nos sejam abertamente manifestadas as referidas denúncias, e respeitosamente exigimos que sejam aduzidas as provas».
Seguia-se a lista de intrigas e falsidades contra a Obra. Finalmente, e para concluir, o Fundador submetia ao bom critério do Cardeal Protetor a conveniência de proceder à redação de um novo Regulamento interno da Administração, «para melhor assegurar o que é contemplado no atual Regulamento, porque desse modo evitar-se-ia, por um lado a possível preocupação da Santa Sé; e, por outro, a difamação caluniosa de muitos milhares de almas».
O Papa seguia atentamente a leitura do Cardeal. De vez em quando, erguia as mãos, como que para sublinhar as palavras com um gesto. E, logo que Mons. Tedeschini terminou a leitura da carta, o Santo Padre perguntou, impaciente e surpreendido: Ma chi mai ha pensato a prendere nessun provvedimento?
A esta pergunta – quem é que se tinha lembrado de tomar medidas contra o Opus Dei? –, respondeu o Cardeal com o silêncio. O Papa ficava de sobreaviso, e eram postos fora de jogo aqueles que esperavam o momento propício para desfazer o Opus Dei. O Fundador tinha intervindo a tempo de paralisar a manobra.
* Vol. 3, Editorial Verbo, Lisboa 2004 (cap. XVIII).