Cidadãos do mundo

Considerações a propósito do dia 26 de Junho, dia de S. Josemaría Escrivá, fundador do Opus Dei, pelo Vigário do Opus dei em Portugal, Mons. José Rafael Espírito Santo.

Mons. José Rafael Espírito Santo

“Para ti, que desejas adquirir uma mentalidade católica, universal, transcrevo algumas características:

– amplidão de horizontes e aprofundamento enérgico do que é perenemente vivo na ortodoxia católica;

– esforço recto e são (frivolidade, nunca!) por renovar as doutrinas típicas do pensamento tradicional, na filosofia e na interpretação da História;

– cuidadosa atenção às orientações da ciência e do pensamento contemporâneos;

– e uma atitude positiva e aberta para com a transformação actual das estruturas sociais e das formas de vida” (Sulco, 428).

Estas palavras de S. Josemaría Escrivá de Balaguer descrevem bem a atitude que preconizava para o cristão que vive o seu tempo com a paixão de quem se sabe protagonista dos desafios que se colocam à humanidade. Todos estão chamados a ver desse modo optimista a cultura, o mundo, os anseios que se forjam no dia a dia: o professor universitário, a empregada da limpeza, o comerciante, o artista ou a advogada, devem amar este mundo que possuem e constroem.

A secularidade do cristão

“Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito” (Ioh 3, 16). Sim: Deus ama o mundo e o cristão também o deve amar. De modo particular, o cristão corrente que vive no meio do mundo, não só deve amar o mundo mas também descobrir como tem de o construir.

“Secularidade” é a noção que define a característica de quem vive no meio do mundo; conota o modo de ser e de comportar-se próprio dos âmbitos que constituem a sociedade civil. “Secular” é de facto o adjectivo que qualifica as realidades pertencentes ao tempo no qual historicamente se vive com todos os seus avanços e recuos, conflitos e realizações comuns; e qualifica também o conjunto de sociedades, instituições e modos de comportamento que caracterizam esse tempo. Neste contexto, “secularidade” significa a sintonia com o próprio tempo; mais concretamente a atitude característica de quem não só “vive no próprio tempo”, mas “vive esse tempo”, reconhece-o como algo seu participando de modo imediato, sentido e pessoal (sendo protagonista) em tudo o que nesse tempo acontece e se desenvolve. E o cristão vive o seu tempo sendo “outro Cristo, o próprio Cristo”.

“Mundo” não é só o “lugar” onde os cristãos correntes vivem, se relacionam e actuam (o hospital, o parlamento, o local de veraneio, o estádio de futebol, o apartamento, o comboio, a montanha, o café) mas é uma realidade que adquire um sentido vocacional e portanto é tarefa a realizar: os leigos estão chamados, com uma vocação que contém um significado teológico e eclesial específico, a construir o mundo e a santificá-lo a partir de dentro; a sua participação na missão da Igreja, a que lhes é própria e na qual ninguém os pode substituir, há-de levá-los a infundir nas realidades temporais o espírito do Evangelho de modo a que também nelas se reflicta a força salvífica da graça. De facto, o cristão tem o dever de edificar em Cristo o mundo e, ao ser “cidadão da cidade dos homens” e também “outro Cristo, o próprio Cristo”, está capacitado para conformar cristãmente as realidades quotidianas ao entendê-las e vivê-las a partir de dentro com intencionalidade secular: respeitando a natureza – a verdade – das coisas, e vendo nelas e nos dinamismos de relação que englobam, ocasiões irrepetíveis de realizar o espírito de Cristo.

A mensagem que S. Josemaría viveu e difundiu a partir de 2 de Outubro de 1928, dia em que Deus lhe fez ver o Opus Dei, sublinha de um modo muito particular a especificidade e o alcance da missão dos cristãos que vivem no mundo. Fruto de uma inspiração divina e não conclusão de uma reflexão teológica, este carisma abriu e abre perspectivas insuspeitadas à vida cristã dos fiéis correntes e permite descobrir horizontes novos ao pensamento teológico, sendo mais uma manifestação da riqueza infindável da Revelação do Verbo Encarnado. No seu mais recente livro, João Paulo II refere-se a S. Josemaría como apóstolo dos leigos para tempos novos.

Amar o mundo apaixonadamente

O “amor ao mundo” está presente em toda a pregação de S. Josemaría, com expressões arrojadas como “amar o mundo apaixonadamente”; ou a referência ao “materialismo cristão” para designar a necessidade de viver a fé na realidade material, concreta da vida de cada dia, evitando assim o perigo de uma espiritualidade desencarnada da vida quotidiana e opondo-se radicalmente a qualquer visão do mundo fechada à transcendência; ou quando defende um anticlericalismo bom que salvaguarda a autonomia e responsabilidade dos leigos nas suas actividades e dá à santidade do sacerdócio a sua verdadeira dimensão. “Nosso Senhor quis que os seus filhos, que recebemos o dom da fé, manifestemos a visão optimista original da criação, o «amor ao mundo» que palpita no cristianismo. Portanto, não deve faltar nunca entusiasmo no teu trabalho profissional nem no teu empenho por construir a cidade temporal” (Forja, 703).

Vemos como aqui transparece a característica fundamental da mensagem proclamada por S. Josemaría, dotada de uma fisionomia espiritual e ascética peculiar: a consideração do trabalho como eixo à volta do qual se apoia a vida cristã e por conseguinte a contribuição que dá para a construção da cidade temporal. A especificidade do ensinamento de S. Josemaría manifesta-se em que não é só uma espiritualidade para os leigos, compatível com a sua vida no meio do mundo, mas é a própria relação com Deus que se apoia nas circunstâncias do dia-a-dia e do trabalho, falando mesmo da necessidade de materializar a santificação.

A importância do trabalho

S. Josemaría refere-se à santidade na vida corrente escolhendo, de acordo com o que é mais oportuno, diversos aspectos dessa vida: família, trabalho, profissão, actividades humanas, estudo, cultura, etc. Mas todos esses aspectos parecem reduzir-se e condensar-se, no pensamento do fundador do Opus Dei, no trabalho, protótipo da actividade humana no mundo, característica do homem na ordem da Criação: o homem foi criado ut operaretur”, para trabalhar, como diz a Sagrada Escritura. O trabalho, e mais especificamente o trabalho profissional (seja o de uma empresária seja o de uma dona de casa; de um carpinteiro ou de um investigador) não é visto como mera actividade manual ou da inteligência, nem como simples força transformadora e humanizante da natureza, mas é visto em todas as suas dimensões antropológicas e sociais, como ocupação estável que qualifica quem a realiza, ao mesmo tempo que a insere no desenvolvimento da sociedade humana.

O trabalho profissional pressupõe conhecimentos e habilidades, desenvolve atitudes e modos de pensar, traz consigo relações de amizade e de companheirismo, possibilita o sustento próprio e da família, contribui para o bem da sociedade onde se desenrola, fomenta ideais e aspirações, enfrenta necessidades e problemas que compõem a vida do mundo e configuram a história. O trabalho profissional, no fundo, resume a vida corrente na sua totalidade; é valorizado assim como realidade constitutiva da condição humana e factor decisivo na configuração tanto da pessoa humana singular (que dá uma maneira de estar e de pensar, uma personalidade concreta) como da sociedade no seu conjunto. E é este trabalho que vemos assumido por Cristo, pois Cristo “aceitou plenamente a condição humana” (Cristo que passa, 61). “Nas mãos de Jesus, o trabalho – e um trabalho profissional, semelhante ao que milhões de homens realizam, em todo o mundo – converte-se em tarefa divina, em actividade redentora, em caminho de salvação” (Temas Actuais do Cristianismo, 55). A santificação no mundo mediante o trabalho que proclama S. Josemaría não consiste só em trabalhar, estar presente no mundo do trabalho com afã de santidade e de apostolado, ou santificar-se no exercício dos próprios deveres familiares, sociais, etc., mas em santificar o próprio trabalho e com ele o próprio mundo, assumindo esse trabalho originariamente como tarefa corredentora em Cristo. Esse é o ponto de apoio da santificação pessoal.

Santificar o trabalho

Não é só o trabalho o âmbito onde nos temos de santificar mas é também realidade que temos de santificar, imitando o trabalho redentor de Cristo. Assim como Cristo santificou em Nazaré a sua existência corrente (o seu trabalho, os seus deveres) vivendo-a como Quem é (o Filho enviado pelo Pai, o Santo de Deus) assim também o cristão corrente, que imita vocacionalmente aquela vida escondida, encontra-se movido pela graça do Espírito Santo a entender a sua existência e o seu trabalho quotidiano precisamente como objecto de santificação.

Cristo, perfeito Deus, Aquele por quem tudo se fez e em quem tudo subsiste, sendo também um de nós, perfeito Homem, retoma em certo modo aquilo que Ele próprio quis dar aos homens nas origens, e retoma também portanto nas suas mãos humanas, com o trabalho das suas mãos, o mundo. Analogamente o trabalho do cristão em Cristo pode e deve ser santificado, isto é “converter-se em tarefa divina”, tornando-se assim apoio para cada um se santificar por meio dele e contribuir para a santificação dos outros. O trabalho do cristão deve ser o trabalho de Cristo: Jesus Cristo quer continuar a transformar o mundo e servir os homens através do trabalho de cada “outro Cristo”; e assim torna Cristo presentes os fulgores da nova Criação.

Trabalhar bem

Partindo do pressuposto do primado da graça, ou seja, da absoluta necessidade de uma intensa vida de oração e de frequência dos sacramentos, que consequências tem esta doutrina? “Todo o trabalho humano honesto, tanto intelectual como manual, deve ser realizado pelo cristão com a maior perfeição possível: com perfeição humana (competência profissional) e com perfeição cristã (por amor à vontade de Deus e em serviço dos homens). Porque, feito assim, esse trabalho humano, por humilde e insignificante que pareça, contribui para a ordenação cristã das realidades temporais – a manifestação da sua dimensão divina – e é assumido e integrado na obra prodigiosa da Criação e da Redenção do mundo: eleva-se assim o trabalho à ordem da graça, santifica-se, converte-se em obra de Deus, operatio Dei, opus Dei” (Temas actuais do cristianismo, 10). Para santificar o trabalho (para ser o trabalho de Cristo, tarefa redentora) é necessário empenho por realizá-lo o melhor possível; e levá-lo a cabo com perfeição é sinónimo simplesmente de coerência sobrenatural e humana. Ao mesmo tempo, sempre estará presente o desejo de louvar a Deus e de servir os outros: um trabalho que tenha como fim a própria excelência ou a satisfação egoísta de qualquer gosto não pode ser nunca o trabalho assumido por Cristo Redentor. Também, por outro lado, por ser um trabalho que intencionalmente imita, e na medida da graça, participa da eficácia das acções humanas do Verbo encarnado (em Quem tudo subsiste segundo o seu próprio modo de ser), não admite ser feito senão em conformidade com a natureza das coisas, isto é, com a sua verdade própria. E o respeito pela verdade das coisas inclui uma vasta gama de aspectos, desde a ecologia até às exigências deontológicas de cada actividade.

Santificar o trabalho não é só algo que se resolve num nível de pura intenção, dando-lhe subjectivamente uma intencionalidade sobrenatural (como se bastasse pôr um rótulo); é cuidar da materialidade do que se faz: que se assemelhe nas suas dimensões subjectiva e objectiva ao trabalho de Cristo, que a totalidade das dimensões antropológicas do trabalho produzido (a finalidade de serviço, a integração em toda a vida da pessoa concretamente no âmbito familiar, a compatibilização com a vida espiritual, a inserção no mundo laboral e da sociedade em geral) esteja impregnada do espírito de Cristo.

É assim que a vida do fiel corrente, “cidadão do mundo” como outro qualquer e “outro Cristo, o próprio Cristo” pela acção da graça, se desenvolve sem compartimentos estanques, sem soluções de continuidade. A sua espiritualidade laical leva-o a tirar impulso da oração e dos sacramentos para o seu trabalho, e a alimentar a sua procura de Deus também com o exercício da sua profissão e ofício, a descobrir o vestígio de Deus (diríamos, a contemplar Deus) na própria realização do trabalho e no seu resultado.

A memória litúrgica de S. Josemaría é uma ocasião para darmos graças a Deus por esta doutrina de santidade no dia-a-dia; conhecer e difundir a vida e os ensinamentos de S. Josemaría é um dos modos possíveis de promover a santidade no meio do mundo, ajudando muitas pessoas a descobrir âmbitos insuspeitados para a sua fé, para o seu serviço à Igreja e para a sua contribuição para a construção de uma humanidade nova. E vemos como de facto a Igreja não só reconheceu no carisma do Opus Dei uma manifestação genuína do Evangelho, como também reconheceu na sua institucionalização uma das formas de a própria Igreja se auto-organizar para cumprir a sua missão no mundo de hoje.