“Para ti, que desejas adquirir uma mentalidade católica, universal, transcrevo algumas características:
– amplidão de horizontes e aprofundamento enérgico do que é perenemente vivo na ortodoxia católica;
– esforço recto e são (frivolidade, nunca!) por renovar as doutrinas típicas do pensamento tradicional, na filosofia e na interpretação da História;
– cuidadosa atenção às orientações da ciência e do pensamento contemporâneos;
– e uma atitude positiva e aberta para com a transformação actual das estruturas sociais e das formas de vida” (Sulco, 428).
Estas palavras de S. Josemaría Escrivá de Balaguer descrevem bem a atitude que preconizava para o cristão que vive o seu tempo com a paixão de quem se sabe protagonista dos desafios que se colocam à humanidade. Todos estão chamados a ver desse modo optimista a cultura, o mundo, os anseios que se forjam no dia a dia: o professor universitário, a empregada da limpeza, o comerciante, o artista ou a advogada, devem amar este mundo que possuem e constroem.
A secularidade do cristão
“Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito” (Ioh 3, 16). Sim: Deus ama o mundo e o cristão também o deve amar. De modo particular, o cristão corrente que vive no meio do mundo, não só deve amar o mundo mas também descobrir como tem de o construir.
“Secularidade” é a noção que define a característica de quem vive no meio do mundo; conota o modo de ser e de comportar-se próprio dos âmbitos que constituem a sociedade civil. “Secular” é de facto o adjectivo que qualifica as realidades pertencentes ao tempo no qual historicamente se vive com todos os seus avanços e recuos, conflitos e realizações comuns; e qualifica também o conjunto de sociedades, instituições e modos de comportamento que caracterizam esse tempo. Neste contexto, “secularidade” significa a sintonia com o próprio tempo; mais concretamente a atitude característica de quem não só “vive no próprio tempo”, mas “vive esse tempo”, reconhece-o como algo seu participando de modo imediato, sentido e pessoal (sendo protagonista) em tudo o que nesse tempo acontece e se desenvolve. E o cristão vive o seu tempo sendo “outro Cristo, o próprio Cristo”.
“Mundo” não é só o “lugar” onde os cristãos correntes vivem, se relacionam e actuam (o hospital, o parlamento, o local de veraneio, o estádio de futebol, o apartamento, o comboio, a montanha, o café) mas é uma realidade que adquire um sentido vocacional e portanto é tarefa a realizar: os leigos estão chamados, com uma vocação que contém um significado teológico e eclesial específico, a construir o mundo e a santificá-lo a partir de dentro; a sua participação na missão da Igreja, a que lhes é própria e na qual ninguém os pode substituir, há-de levá-los a infundir nas realidades temporais o espírito do Evangelho de modo a que também nelas se reflicta a força salvífica da graça. De facto, o cristão tem o dever de edificar em Cristo o mundo e, ao ser “cidadão da cidade dos homens” e também “outro Cristo, o próprio Cristo”, está capacitado para conformar cristãmente as realidades quotidianas ao entendê-las e vivê-las a partir de dentro com intencionalidade secular: respeitando a natureza – a verdade – das coisas, e vendo nelas e nos dinamismos de relação que englobam, ocasiões irrepetíveis de realizar o espírito de Cristo.
A mensagem que S. Josemaría viveu e difundiu a partir de 2 de Outubro de 1928, dia em que Deus lhe fez ver o Opus Dei, sublinha de um modo muito particular a especificidade e o alcance da missão dos cristãos que vivem no mundo. Fruto de uma inspiração divina e não conclusão de uma reflexão teológica, este carisma abriu e abre perspectivas insuspeitadas à vida cristã dos fiéis correntes e permite descobrir horizontes novos ao pensamento teológico, sendo mais uma manifestação da riqueza infindável da Revelação do Verbo Encarnado. No seu mais recente livro, João Paulo II refere-se a S. Josemaría como apóstolo dos leigos para tempos novos.
Amar o mundo apaixonadamente
O “amor ao mundo” está presente em toda a pregação de S. Josemaría, com expressões arrojadas como “amar o mundo apaixonadamente”; ou a referência ao “materialismo cristão” para designar a necessidade de viver a fé na realidade material, concreta da vida de cada dia, evitando assim o perigo de uma espiritualidade desencarnada da vida quotidiana e opondo-se radicalmente a qualquer visão do mundo fechada à transcendência; ou quando defende um anticlericalismo bom que salvaguarda a autonomia e responsabilidade dos leigos nas suas actividades e dá à santidade do sacerdócio a sua verdadeira dimensão. “Nosso Senhor quis que os seus filhos, que recebemos o dom da fé, manifestemos a visão optimista original da criação, o «amor ao mundo» que palpita no cristianismo. Portanto, não deve faltar nunca entusiasmo no teu trabalho profissional nem no teu empenho por construir a cidade temporal” (Forja, 703).
Vemos como aqui transparece a característica fundamental da mensagem proclamada por S. Josemaría, dotada de uma fisionomia espiritual e ascética peculiar: a consideração do trabalho como eixo à volta do qual se apoia a vida cristã e por conseguinte a contribuição que dá para a construção da cidade temporal. A especificidade do ensinamento de S. Josemaría manifesta-se em que não é só uma espiritualidade para os leigos, compatível com a sua vida no meio do mundo, mas é a própria relação com Deus que se apoia nas circunstâncias do dia-a-dia e do trabalho, falando mesmo da necessidade de materializar a santificação.
A importância do trabalho
S. Josemaría refere-se à santidade na vida corrente escolhendo, de acordo com o que é mais oportuno, diversos aspectos dessa vida: família, trabalho, profissão, actividades humanas, estudo, cultura, etc. Mas todos esses aspectos parecem reduzir-se e condensar-se, no pensamento do fundador do Opus Dei, no trabalho, protótipo da actividade humana no mundo, característica do homem na ordem da Criação: o homem foi criado ut operaretur”, para trabalhar, como diz a Sagrada Escritura. O trabalho, e mais especificamente o trabalho profissional (seja o de uma empresária seja o de uma dona de casa; de um carpinteiro ou de um investigador) não é visto como mera actividade manual ou da inteligência, nem como simples força transformadora e humanizante da natureza, mas é visto em todas as suas dimensões antropológicas e sociais, como ocupação estável que qualifica quem a realiza, ao mesmo tempo que a insere no desenvolvimento da sociedade humana.
O trabalho profissional pressupõe conhecimentos e habilidades, desenvolve atitudes e modos de pensar, traz consigo relações de amizade e de companheirismo, possibilita o sustento próprio e da família, contribui para o bem da sociedade onde se desenrola, fomenta ideais e aspirações, enfrenta necessidades e problemas que compõem a vida do mundo e configuram a história. O trabalho profissional, no fundo, resume a vida corrente na sua totalidade; é valorizado assim como realidade constitutiva da condição humana e factor decisivo na configuração tanto da pessoa humana singular (que dá uma maneira de estar e de pensar, uma personalidade concreta) como da sociedade no seu conjunto. E é este trabalho que vemos assumido por Cristo, pois Cristo “aceitou plenamente a condição humana” (Cristo que passa, 61). “Nas mãos de Jesus, o trabalho – e um trabalho profissional, semelhante ao que milhões de homens realizam, em todo o mundo – converte-se em tarefa divina, em actividade redentora, em caminho de salvação” (Temas Actuais do Cristianismo, 55). A santificação no mundo mediante o trabalho que proclama S. Josemaría não consiste só em trabalhar, estar presente no mundo do trabalho com afã de santidade e de apostolado, ou santificar-se no exercício dos próprios deveres familiares, sociais, etc., mas em santificar o próprio trabalho e com ele o próprio mundo, assumindo esse trabalho originariamente como tarefa corredentora em Cristo. Esse é o ponto de apoio da santificação pessoal.
Santificar o trabalho
Não é só o trabalho o âmbito onde nos temos de santificar mas é também realidade que temos de santificar, imitando o trabalho redentor de Cristo. Assim como Cristo santificou em Nazaré a sua existência corrente (o seu trabalho, os seus deveres) vivendo-a como Quem é (o Filho enviado pelo Pai, o Santo de Deus) assim também o cristão corrente, que imita vocacionalmente aquela vida escondida, encontra-se movido pela graça do Espírito Santo a entender a sua existência e o seu trabalho quotidiano precisamente como objecto de santificação.
Cristo, perfeito Deus, Aquele por quem tudo se fez e em quem tudo subsiste, sendo também um de nós, perfeito Homem, retoma em certo modo aquilo que Ele próprio quis dar aos homens nas origens, e retoma também portanto nas suas mãos humanas, com o trabalho das suas mãos, o mundo. Analogamente o trabalho do cristão em Cristo pode e deve ser santificado, isto é “converter-se em tarefa divina”, tornando-se assim apoio para cada um se santificar por meio dele e contribuir para a santificação dos outros. O trabalho do cristão deve ser o trabalho de Cristo: Jesus Cristo quer continuar a transformar o mundo e servir os homens através do trabalho de cada “outro Cristo”; e assim torna Cristo presentes os fulgores da nova Criação.
Trabalhar bem
Partindo do pressuposto do primado da graça, ou seja, da absoluta necessidade de uma intensa vida de oração e de frequência dos sacramentos, que consequências tem esta doutrina? “Todo o trabalho humano honesto, tanto intelectual como manual, deve ser realizado pelo cristão com a maior perfeição possível: com perfeição humana (competência profissional) e com perfeição cristã (por amor à vontade de Deus e em serviço dos homens). Porque, feito assim, esse trabalho humano, por humilde e insignificante que pareça, contribui para a ordenação cristã das realidades temporais – a manifestação da sua dimensão divina – e é assumido e integrado na obra prodigiosa da Criação e da Redenção do mundo: eleva-se assim o trabalho à ordem da graça, santifica-se, converte-se em obra de Deus, operatio Dei, opus Dei” (Temas actuais do cristianismo, 10). Para santificar o trabalho (para ser o trabalho de Cristo, tarefa redentora) é necessário empenho por realizá-lo o melhor possível; e levá-lo a cabo com perfeição é sinónimo simplesmente de coerência sobrenatural e humana. Ao mesmo tempo, sempre estará presente o desejo de louvar a Deus e de servir os outros: um trabalho que tenha como fim a própria excelência ou a satisfação egoísta de qualquer gosto não pode ser nunca o trabalho assumido por Cristo Redentor. Também, por outro lado, por ser um trabalho que intencionalmente imita, e na medida da graça, participa da eficácia das acções humanas do Verbo encarnado (em Quem tudo subsiste segundo o seu próprio modo de ser), não admite ser feito senão em conformidade com a natureza das coisas, isto é, com a sua verdade própria. E o respeito pela verdade das coisas inclui uma vasta gama de aspectos, desde a ecologia até às exigências deontológicas de cada actividade.
Santificar o trabalho não é só algo que se resolve num nível de pura intenção, dando-lhe subjectivamente uma intencionalidade sobrenatural (como se bastasse pôr um rótulo); é cuidar da materialidade do que se faz: que se assemelhe nas suas dimensões subjectiva e objectiva ao trabalho de Cristo, que a totalidade das dimensões antropológicas do trabalho produzido (a finalidade de serviço, a integração em toda a vida da pessoa concretamente no âmbito familiar, a compatibilização com a vida espiritual, a inserção no mundo laboral e da sociedade em geral) esteja impregnada do espírito de Cristo.
É assim que a vida do fiel corrente, “cidadão do mundo” como outro qualquer e “outro Cristo, o próprio Cristo” pela acção da graça, se desenvolve sem compartimentos estanques, sem soluções de continuidade. A sua espiritualidade laical leva-o a tirar impulso da oração e dos sacramentos para o seu trabalho, e a alimentar a sua procura de Deus também com o exercício da sua profissão e ofício, a descobrir o vestígio de Deus (diríamos, a contemplar Deus) na própria realização do trabalho e no seu resultado.
A memória litúrgica de S. Josemaría é uma ocasião para darmos graças a Deus por esta doutrina de santidade no dia-a-dia; conhecer e difundir a vida e os ensinamentos de S. Josemaría é um dos modos possíveis de promover a santidade no meio do mundo, ajudando muitas pessoas a descobrir âmbitos insuspeitados para a sua fé, para o seu serviço à Igreja e para a sua contribuição para a construção de uma humanidade nova. E vemos como de facto a Igreja não só reconheceu no carisma do Opus Dei uma manifestação genuína do Evangelho, como também reconheceu na sua institucionalização uma das formas de a própria Igreja se auto-organizar para cumprir a sua missão no mundo de hoje.