Bento XVI apresenta segunda encíclica, marcadamente teológica, para um mundo em crise

Spe salvi (Salvos na esperança) é o título da segunda encíclica de Bento XVI, dedicada ao tema da esperança cristã, num mundo dominado pela descrença e a desconfiança perante as questões relacionadas com o transcendente.

" O homem tem necessidade de Deus, de contrário fica privado de esperança ", pode ler-se. O Deus em que os cristãos acreditam apresenta-se como verdadeira esperança para o mundo contemporâneo porque lhe abre uma perspectiva de salvação.

Bento XVI considera que só é possível viver e aceitar o presente se houver "uma esperança fidedigna" e destaca a importância da eternidade, não no mundo actual - " a eliminação da morte ou o seu adiamento quase ilimitado deixaria a terra e a humanidade numa condição impossível ", aponta - mas como " um instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade ".

" Deus é o fundamento da esperança, não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um rosto humano e que nos amou até ao fim: cada indivíduo e a humanidade no seu conjunto ", observa.

A carta do Papa, hoje divulgada pelo Vaticano, defende que só Deus é a "verdadeira esperança" e aborda por diversas vezes a questão da "vida eterna", frisando que "ninguém se salva sozinho".

O documento começa por apresentar um enquadramento teológico da esperança cristã, a partir dos textos bíblicos e dos testemunhos das primeiras comunidades eclesiais. O Papa apresenta ainda os ensinamentos de vários Santos da Igreja a respeito do tema da encíclica e escreve que "conhecer Deus" significa "receber esperança".

Depois de negar que Jesus tenha trazido uma mensagem "sócio-revolucionária", Bento XVI aborda a questão da evolução para afirmar que " a vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus se revelou como amor ".

O Papa cita, entre outros, Platão, Lutero, Kant, Bacon, Dostoievski, Engels e Marx para falar de esperança e de esperanças, de razão e liberdade, da construção de um mundo sem Deus que pretende responder aos anseios do ser humano. " Nenhuma estruturação positiva do mundo é possível nos lugares onde as almas se brutalizam ", declara.

Construções ideológicas

Para além das reflexões teológicas e filosóficas, o texto aborda sistemas e ideologias. " O homem não é só o produto de condições económicas nem se pode curar apenas desde o exterior, criando condições económicas favoráveis ", indica o texto papal, ao criticar o "materialismo" marxista.

Bento XVI diz mesmo que " não existirá jamais neste mundo o reino do bem definitivamente consolidado " e que mesmo as melhores estruturas " só funcionam se numa comunidade subsistem convicções que sejam capazes de motivar os homens para uma livre adesão ao ordenamento comunitário ".

" Se não podemos esperar mais do que é realmente alcançável de cada vez e de quanto nos seja possível oferecerem as autoridades políticas e económicas, a nossa vida arrisca-se bem depressa a ficar sem esperança ".

Quanto ao progresso científico, a encíclica alerta para as "possibilidades abissais de mal" que se têm aberto e pede uma "formação ética do homem" para que este progresso não se transforme numa "ameaça para o homem e para o mundo".

" Não é a ciência que redime o homem. O homem é redimido pelo amor ", assinala, numa crítica às pretensões do pensamento moderno.

Numa linha de continuidade com a sua primeira encíclica, Bento XVI sublinha a dimensão comunitária da esperança e refuta as críticas de que a salvação proposta pela fé cristã seja "fuga da responsabilidade geral". "O amor de Deus revela-se na responsabilidade pelo outro", destaca.

A segunda parte deste documento teológico apresenta uma série de lições, considerações mais práticas sobre a vivência da esperança.

O Papa indica que rezar " não é retirar-se para o canto da própria felicidade e que " o nosso agir não é indiferente diante de Deus " nem para "o desenrolar da história". " A capacidade de sofrer por amor da verdade é medida de humanidade ", sentencia.

Neste ponto, Bento XVI adverte quem optou pela indiferença perante o amor, a verdade ou o bem, assinalando que "não é a fuga diante da dor" que cura o homem.

A nova encíclica acaba por fazer referência ao ateísmo e a quantos querem " um mundo que deve criar a justiça por sua conta ", esquecendo que "Deus sabe criar a justiça".

O chamado "juízo final" surge, assim, como um "apelo à responsabilidade e como um resposta "à impossibilidade de a injustiça da história ter a última palavra". Por isso afasta a ideia de uma restauração universal e fala de inferno e purgatório, porque "com a morte a opção de vida feita pelo homem torna-se definitiva".

" Como cristãos, não basta perguntarmo-nos como posso salvar-me, devemos antes perguntar: o que posso fazer para que os outros sejam salvos e nasça, também para eles a estrela da esperança? Então, terei feito também o máximo pela minha salvação pessoal ", conclui o Papa.

Texto completo da encíclica SPE SALVI

Agência Eclesia