“Apoiado na graça, tu podes!”

O trabalho corrente e a Eucaristia são os temas centrais da homilia do Prelado do Opus Dei na Universidade de Navarra, eco daquela que em 1967 pronunciou São Josemaria.

Estamos a assistir, no Campus da Universidade de Navarra e em circunstâncias semelhantes às de há 50 anos, ao acontecimento supremo da História da humanidade: o Sacrifício de Cristo, que se faz presente de modo sacramental na Eucaristia: oferecemo-lo à Trindade Santíssima, em acção de graças, por ocasião do quinquagésimo aniversário da constituição da Associação de Amigos e da transformação do “Estudio General de Navarra” em Universidade. Admiremo-nos perante este Santíssimo Mistério da Missa, pelo qua o Senhor quis aproximar-se de nós do modo mais íntimo, oferecendo-nos a possibilidade de participar na Sua própria Vida, com vista a gozar da plenitude dessa intimidade, para sempre, quando cheguemos ao  Seu encontro definitivo.

O ambiente envolvente desta celebração é o mesmo em que São Josemaria, Fundador do Opus Dei e primeiro Grande Chanceler desta Universidade,celebrou a Sagrada Eucaristia, em 1967. Não me deterei nos detalhes externos de então, que – comentados naquela homilia – tanto ajudaram quem se encontrava presente, mas servir-me-ei, sim, do texto que, de pé junto ao altar, este santo sacerdote pronunciou.

O eco das suas palavras continua a ressoar em muitíssimas almas; serviram e servem para que inumeráveis cristãos tenham levado mais a sério a sua resposta ao Amor da Trindade, conscientes de que a nossa existência há-de girar, em unidade de vida, à volta do Sacrifício de Jesus Cristo, no qual o Amor infinito de Deus se derrama sobre a humanidade.

 

São Josemaria fez-nos considerar novamente – pois a sua pregação começou em 1928 – que a vida cristã, a de cada dia, tem que se desenvolver, nas circunstâncias mais diversas, com referência à Eucaristia. Mostrou-nos que, se queremos – porque a graça de Deus nunca nos falta – o mistério eucarístico dá forma e alento ao verdadeiro percurso do nosso caminhar quotidiano.

Precisou então, com agradecimento e convicção, que «o sacrifício sacramental do Corpo e do Sangue do Senhor (...) reúne em si todos os Mistérios do Cristianismo»(1). Quer dizer, insistia que não só esses dons se dirigem a nós, mas que entramos em pleno nos mistérios de Deus, para engrandecer toda a nossa vida, com um encontro no qual a plenitude de Deus se nos entrega, tanto no extraordinário como no corrente, no próprio desenvolvimento da vida do dia a dia.

Enchamo-nos de alegria e de sentido de responsabilidade, porque é muito certo que Deus nobiscum, Deus está com cada um de nós; e que é Deus ad salvandum, um Deus para nos salvar. Quando isso acontece, podemos descobrir a riqueza do Amor do Senhor pelas Suas criaturas. Por isso, São Josemaria insistiu em que a possibilidade de elevar à ordem sobrenatural até o mais material, nos fica patente porque Deus quis utilizar o pão e o vinho, fruto da terra e da mão do homem, para que se transformem no Corpo e no Sangue do próprio Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem, pois tomou a nossa natureza, com todas as suas características, excepto o pecado, para levar a cabo a nossa salvação.

O primeiro Grande Chanceler da Universidade animou-nos – fá-lo agora do Céu – a que, como consequência de uma profunda vida eucarística, essencialmente eucarística, e conhecendo que o próprio Deus feito homem decidiu percorrer os nossos caminhos, saibamos descobrir o quid divinum que se encerra em todas as circunstâncias e ocupações, mesmo aquelas que parecem mais materiais. Seremos mais plenamente homens, mais plenamente mulheres na medida em que queiramos e permitamos que o Corpo e o Sangue de Cristo nos alimentem e nos embriaguem de modo que a nossa vida seja uma continuação da Sua Vida; podemos consegui-lo sempre, se O olhamos mais, se convivemos mais com Ele, se O amamos mais!

Tenhamos muito presente que, como São Josemaria nos convidou, temos de nos ater «sobriamente, à realidade mais material e imediata que é onde Nosso Senhor está»(2), quer dizer, ao nosso viver diário. Este santo sacerdote que, ao longo do seu caminhar terreno, não cessou de querer ver com os olhos de Cristo, Domine, ut videam; e de actuar em Cristo e por Cristo, Domine, ut sit; nos exorta a dar transcendência divina à nossa jornada quotidiana. E, precisamente por isso, não se cansou de aconselhar e repetir que os que se sabem filhos de Deus, têm de “fazer de cada dia uma Missa”, já que este grande Mistério, o próprio Santo Sacrifício do Calvário, atou definitivamente o Céu e a terra. Sim, queridos irmãos e irmãs, quando olhamos com Cristo, quando actuamos em Cristo e por Cristo, quando vivemos a Missa oferecemo-nos com Ele a Deus Pai, pelo Espírito Santo «unindo-nos à Suas intenções, em nome também de todas as criaturas»(3).

Toca-nos profundamente a certeza de que, apesar da nossa pequenez, da nossa debilidade pessoal, a nossa existência adquire uma grande dimensão, se a gastamos com Jesus Cristo. Deus, mediante a Eucaristia, faz-nos Igreja, Corpo do próprio Senhor e coloca-nos na Sua barca para que naveguemos coerentemente por todas as águas da sociedade, anunciando que Deus chama todos à santidade. O caminhar de cada um neste nosso mundo – que Deus ama apaixonadamente, a ponto de nos entregar o Seu Filho – está unido à Eucaristia, já que a força que dimana do Corpo e do Sangue de Jesus nos capacita para tornar divinos todos os caminhos da terra, dando realidade àquelas palavras de São Josemaria: «Quando um cristão realiza com amor a mais intranscendente das acções diárias, ela transborda da transcendência de Deus»(4). Se nos decidimos a empreender este caminho, por vezes estreito e duro, saberemos acolher com alegria – talvez engolindo as lágrimas, o peso da dor, quando cheguem a doença, as sequelas da pobreza, da incompreensão, até dos bons, porque descobriremos, não um determinismo desapiedado, mas a mão amorosa do nosso Pai do Céu, que nos abençoa com a exigência amável da Cruz.

A eficácia infinita da Santa Cruz é-nos comunicada pelo Senhor, de modo especial no Sacramento da Eucaristia, «a acção mais sagrada e transcendente que o homem, por graça de Deus, pode realizar nesta vida»(5). A santificação de cada momento – resposta à confiança de Deus, que nos entrega cinco, dois talentos é sempre serviço ao Reino de Cristo de que a Igreja – governada pelo Papa e pelos Bispos em comunhão com Ele – é «germe e princípio»(6), e da qual nós somos parte. Por isso, este sacerdote, servo bom e fiel, repetiu-nos com grande constância e fortaleza: todos, cada uma, cada um, somos – é – Igreja e temos que fazer a Igreja descobrindo que o trabalho, a vida em família, o repouso, tudo é “meio e a ocasião do nosso encontro com Cristo”(7).

  Nessa luta santa para secundar o querer de Deus, já desde muito jovem, São Josemaria fomentou na sua alma – e aconselhava-o aos outros – o recurso ao Paráclito, que tem uma estreita relação com a Cruz e, portanto, com a Eucaristia. Expressava-o com palavras simples e profundas, ao considerar que «o Espírito Santo é fruto da Cruz»(8)  e que, depois da recepção da Sagrada Comunhão, “quando desaparecem as espécies, fica o Espírito Santo”. Esta presença íntima de Deus em nós há-de impulsionar-nos a levar mais a sério a santificação de cada dia.

É verdade: a tarefa é árdua, exige esforço constante. Mas repetirei a cada um com São Josemaria: apoiado na graça, tu podes! Exortava-nos assim, porque palpitou sempre no seu coração uma realidade maravilhosa: cada homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e foi chamado a participar da intimidade divina como filho de Deus Pai, em Cristo, pelo Espírito Santo. Ao dispô-lo assim, confia-nos o encargo de colaborar com Ele na salvação deste mundo. Chegava também a esta conclusão ao estar consciente – na sua profunda humildade – de que tinha que fazer o Opus Dei, quando não contava com nenhum meio humano, apenas com a sua juventude e, sobretudo, com a graça de Deus. Com essa perspectiva, bem convencido da sua pequenez, não cessava de nos repetir que todos podemos ser capazes de regenerar o mundo, de converter a terra, a humanidade, se cumprimos a fundo o nosso dever.

Alegra-me referir outra afirmação de São Josemaria, que pregou repetidamente, com valentia e clareza, para que ninguém se sentisse excluído deste dever. Assegurou sem temor de se equivocar, quebrando esquemas dos tempos em que começou a Obra, que o matrimónio é caminho vocacional. E na homilia que hoje recordamos insistiu: «O amor que conduz ao matrimónio e à família, pode ser um caminho divino, vocacional, maravilhoso, meio para uma completa dedicação ao nosso Deus»(9). E salta à vista – como pormenorizou noutra ocasião – que, para santificar o caminho matrimonial, não é suficiente o amor humano; são precisas as virtudes teologais.

Ao dirigir-me agora expressamente aos Amigos da Universidade de Navarra, recolho outras palavras desse encontro nesteCampus, que comemoramos: «Sois parte de um povo que sabe estar comprometido no progresso da sociedade a que pertence. O vosso alento cordial, a vossa oração, o vosso sacrifício e a vossa contribuição material não seguem os caminhos de um confessionalismo católico; ao prestardes a vossa cooperação sois  testemunho claro de uma recta consciência cívica, preocupada pelo bem comum temporal; testemunhais que uma Universidade pode nascer das energias do povo e ser sustentada pelo povo»(10).

Agradeço-vos de todo o coração a vossa ajuda à Universidade de Navarra e abençoo os vossos esforços para que sejam cada dia mais eficazes. Recordo-vos, ao mesmo tempo, que as vossas actividades, em cada jornada, hão-de procurar, muito especialmente, a santidade, também a das pessoas com que vos relacionais. Para vos mostrar a grandeza da vossa tarefa e vos confirmar na importância do vosso papel, mencionarei umas palavras que escutei frequentemente dos lábios de São Josemaria desde que o conheci em 1948 e que também aqui pronunciou: «A vocação cristã consiste em fazer poesia heróica da prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o Céu e a terra. Mas não, onde se juntam de verdade é nos vossos corações quando viveis santamente a vida de cada dia…»(11) 

Por isso, um cristão, um homem de Cristo, um homem de Eucaristia, não se conforma com trabalhar bem, com rectidão; também assim se comportam milhões de pessoas que não convivem ou não conhecem a Deus. A vida profissional e familiar das mulheres e dos homens que se sabem enxertados em Cristo pelo Baptismo e que se alimentam da Eucaristia, procuram converter a sua ocupação em instrumento de santificação, de amor e de serviço ao Céu e à terra. Salienta-o a oração colecta, dirigida a Deus Pai, que rezámos, pedindo a intercessão e o exemplo de São Josemaria: “Que no exercício do trabalho corrente nos configuremos ao Teu Filho Jesus Cristo e sirvamos com amor ardente a obra da Redenção”.

Pouco depois, na leitura do Evangelho, escutámos o relato da primeira pesca milagrosa. Uma cena repetidamente meditada pelo Fundador do Opus Dei. Aí descobria como o Mestre deseja contar com os homens de todos os tempos que anseiam segui-l’O.

São Lucas detém-se, como escutámos, num detalhe aparentemente marginal. Os pescadores, depois discípulos, estão a lavar e a remendar as redes, depois de uma noite de pesca em vão. Redes que simbolizam o trabalho profissional, familiar, com que se serve e se constrói a sociedade. Mas, obedecendo a Cristo com lealdade, escutando-O no desempenho dos diferentes trabalhos, as redes convertem-se em instrumento para levar as almas a Deus, aos sacramentos.

Santifiquemos o trabalho, acabando-o bem, sabendo que, a partir da vida pública, da cátedra, do bloco operatório, dos trabalhos manuais, do lar chegaremos muito longe, dando cumprimento à indicação de Jesus: duc in altum! levai até aos confins da terra a rede de salvação. Como aos primeiros cristãos, não deve travar o ambiente, o secularismo, o materialismo prático, embora para nós sejam ambientes estranhos, agressivos e mesmo hostis. Cheios de optimismo, já que possuímos a Verdade de Cristo, a única, meditemos a consideração que nos oferece São Josemaria: «Todos os mares deste mundo são nossos, e lá onde a pesca é mais difícil é também mais necessária»(12).

Ao encontrar Cristo ao longo do dia, ao conviver com Ele no meio dos afãs dos homens nossos irmãos, exercitemo-nos na fé. Fé no amor de Deus por nós; fé na Sua Providência; fé na força da Sua mensagem; fé em que nos prometeu que permanecerá connosco até ao fim dos tempos; fé «finalmente – como acrescentava o primeiro Grande Chanceler desta Universidade – para demonstrarmos ao mundo que tudo isto não são apenas cerimónias e palavras, mas uma realidade divina, ao apresentarmos aos homens o testemunho de uma vida corrente santificada»(13).

Antes de concluir, quero agradecer de todo o coração a presença de todas as Excelentíssimas e Ilustríssimas autoridades. A minha gratidão vai também para o queridíssimo povo de Navarra e para os seus dignos representantes, consciente do apoio material e moral oferecido à Universidade desde a constituição do “Estudio General”, em 1952, elevado pela Santa Sé ao nível de Universidade há 50 anos. Penso igualmente que esta nobre região, tão rica em história e em tradições de serviço à Igreja e à sociedade civil, reconhece com gratidão quanto esta Universidade fez e faz por Navarra, como deixou patente a Comunidade Foral ao conceder a sua Medalha de Ouro à Universidade, anos atrás. Graças à formação que esta Alma Mater disponibiliza a estudantes de muitos países e ao seu reconhecido prestígio internacional em campos tão importantes como a Medicina, as Letras, o Direito, as Ciências empresariais ou a Engenharia industrial e as Faculdades eclesiásticas, para citar só algumas das suas áreas, o nome de Navarra é cada vez mais conhecido e apreciado em Espanha e além fronteiras, em nações dos cinco continentes.

 

Sinto o grato dever de agradecer, por justiça e sincero afecto, o apoio que, desde o primeiro momento, a Conferência Episcopal espanhola demonstrou a esta Universidade; o meu reconhecimento mais profundo dirige-se também ao Excelentíssimo Arcebispo de Pamplona, D. Francisco Pérez González e aos seus imediatos predecessores, com uma lembrança especial para D. Enrique Delgado y Gómez.

Ao recordar também o amor com que São Josemaria mandou esculpir a imagem de nossa Senhora do Amor Formoso, para oferecer a esta Universidade de Navarra, depois de ter sido benzida pelo Servo de Deus, Sua Santidade o Papa Paulo VI, quero deixar nas mãos da Mãe de Jesus Cristo e nossa Mãe, os vossos trabalhos, as vossas intenções, as vossas alegrias e as vossas penas. Desde que passou pela mente do nosso primeiro Grande Chanceler este propósito de fazer a imagem, não cessou de comentar que tinha o desejo de que, guardados pelas mãos de Santa Maria, que cuidaram do próprio Deus feito Homem, nascessem e se robustecessem os amores nobres dos que trabalham e estudam nesta Universidade e dos habitantes de toda a Comunidade Foral. Que Ela, Santa Maria, fomente em nós um amor formoso, ou seja, uma conduta limpa, generosa, recta, que nos capacite para amar a Santíssima Trindade e para amar e servir todas as pessoas, no matrimónio ou no celibato apostólico, segundo o caminho concreto com que Deus nos abençoou a cada um. Assim seja.

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1.  São Josemaria, Homilia “Amar o mundo apaixonadamente”, homilia pronunciada em 8-X-1967, texto em Temas Actuais do Cristianismo, n. 113.

2.  São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 116.

3.  Fórmula da consagração ao Amor Misericordioso.

4.  São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 116.

5.  São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 113.

6.  Concilio Vaticano II. Const. dogm. Lumen gentium, n. 15.

7.  Cfr. São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 114.

8.  São Josemaria, Forja, n. 759.

9.  São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 121.

10. São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 120.

11. São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 116.

12. São Josemaria, Forja, n. 979.

13. São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, n. 123.