70 anos de "Caminho"

2009 marca o 70º aniversário da publicação de Caminho, a obra-prima de espiritualidade de S. Josemaría, traduzido em 50 línguas e que vendeu 5 milhões de exemplares. Neste artigo, disponibiliza-se a introdução feita pelo Bispo Prelado do Opus Dei, D. Javier Echevarría, a uma edição inglesa lançada em 2006.

Assinala-se este ano o 70º aniversário da publicação de Caminho , a obra-prima de espiritualidade de S. Josemaría, que foi e continua a ser uma fonte de inspiração e de progresso espiritual para milhões de pessoas de todo o mundo, tendo vendido mais de 5 milhões de exemplares, em 50 línguas. D. Javier Echevarría, bispo e Prelado do Opus Dei, escreveu uma introdução à edição em língua inglesa publicada pela Random House/Doubleday nos Estados Unidos ( clique aqui para saber mais informações). É essa introdução que é agora apresentada.

INTRODUÇÃO A CAMINHO , DA AUTORIA DE D. JAVIER ECHEVARRÍA

(© Reproduzido com autorização de Doubleday Publishers)

Tenho diante de mim um livro muito usado que, em 1933, o autor de Caminho ofereceu a um jovem arquitecto chamado Ricardo Fernandez Vallespín. Na página de rosto pode ler-se, na inconfundível caligrafia de S. Josemaría, uma simples dedicatória de três linhas, que viria a inspirar um dos pontos de Caminho :

Ao oferecer-te aquela História de Jesus, pus como dedicatória: «Que procures a Cristo. Que encontres a Cristo. Que ames a Cristo». – São três etapas claríssimas. Tentaste, pelo menos, viver a primeira? (nº 382)

Esta dedicatória permite-nos compreender, quer a forma como S. Josemaría encarava a vida cristã – como um percurso com vista à união com Jesus Cristo –, quer o motivo pelo qual, para além de oferecer livros de espiritualidade, escreveu Caminho : fê-lo para inspirar outros a procurar a Cristo, e para os ajudar a encontrá-Lo.

Escrevia o autor, no Prólogo: «Não te contarei nada de novo.» E contudo, há algo de revolucionário na mensagem de S. Josemaría; como ele próprio gostava de salientar, aquilo que tinha a dizer era «velho como o evangelho… e como o evangelho novo». Mas esta originalidade não reside tanto no texto propriamente dito, quanto na combinação entre o texto e aqueles a quem era dirigido. No ponto citado atrás, por exemplo, a mensagem é extremamente familiar; mas o facto de ser dirigida a um jovem arquitecto era uma espantosa novidade.

Em 1934, S. Josemaría tinha escrito ao Vigário Geral de Madrid, falando-lhe de um livro que estava a escrever; era um livro intitulado Considerações Espirituais , que em 1939 viria a ser, depois de revisto e expandido, Caminho . E dizia que as «notas» que estava a organizar «só têm utilidade para determinadas almas, que querem realmente 1) ter vida interior e 2) fazer um trabalho profissional de qualidade, porque se trata de uma obrigação grave». É essa a combinação que caracteriza S. Josemaría: o desejo de uma santidade efectiva, que se reflecte numa vida de oração intensa, e um profundo empenhamento no trabalho de cada um. Naturalmente que S. Josemaría conferia à expressão «trabalho profissional» um sentido suficientemente amplo para incluir a actividade dos estudantes, das donas de casa, dos sacerdotes diocesanos – de qualquer pessoa que reconhecesse que Deus a chamava a cumprir amorosamente os seus deveres de cada dia neste mundo, não por ambição pessoal, mas como meio de dar glória a Deus e de servir os outros.

É a mesma impressionante justaposição de mensagem e público que está presente noutro ponto de Caminho :

Perguntas-me: – Porquê essa cruz de pau? – E copio de uma carta: «Ao levantar a vista do microscópio, o olhar vai tropeçar na cruz negra e vazia. Essa cruz sem crucificado é um símbolo. Tem um significado que os outros não entenderão. E aquele que, cansado, estava a ponto de abandonar a tarefa, aproxima de novo os olhos da ocular e continua o trabalho: porque a cruz solitária está a pedir uns ombros que carreguem com ela. (nº 277)

Também neste caso, o que é novo não é a cruz de Cristo, nem o significado da mesma. O que é novo é a reacção do jovem que trabalha ao microscópio, neste caso um médico chamado Juan Jimenez Vargas.

A originalidade de S. Josemaría e do espírito do Opus Dei, por ele fundado em 1928, reside precisamente nesta combinação de uma mensagem antiga – o chamamento a uma santidade cristã heróica – com um novo público de leigos, que recebem esse chamamento no meio do bulício do seu trabalho diário. Nas entrelinhas do livro, discernimos a formação de uma nova cultura de santidade, de uma nova raça de cristãos, que se esforçam por ser apóstolos e por ser santos no meio do mundo moderno.

É essa a essência da mensagem de S. Josemaría: procurar, encontrar e amar a Cristo – as três etapas referidas na dedicatória escrita em 1933 – no contexto da vida corrente. Temos de procurar a Cristo, de O encontrar e de O amar na vida e no trabalho diários.

Numa homilia proferida em 1967, «Amar o mundo apaixonadamente», S. Josemaría resumia esta mensagem com as seguintes palavras:

O verdadeiro lugar da vossa existência cristã é a vida corrente. Meus filhos, onde estiverem os vossos irmãos, os homens; onde estiverem as vossas aspirações, o vosso trabalho, os vossos amores, aí está o sítio do vosso encontro quotidiano com Cristo. […] Deus chama-vos a servi-Lo em e a partir das ocupações civis, materiais, seculares da vida humana. Deus espera-nos todos os dias: no laboratório, na sala de operações, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no lar, e em todo o imenso panorama do trabalho. Ficai a sabê-lo: escondido nas situações mais comuns, há algo de santo, de divino, que cabe a cada um de vós descobrir. […] Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor na nossa vida corrente, ou nunca O encontraremos.

S. Josemaría estava ciente de que aquilo que dizia podia ter um profundo impacto em muitas almas. Oito anos antes da publicação de Caminho , havia escrito: «Gostava de escrever uns livros de fogo, que incendiassem o mundo inteiro.» Mas o leitor que abra Caminho à espera de encontrar um «livro de fogo» ficará surpreendido, porque o que encontra não é um manifesto dramático, não é uma proclamação retórica, destinada a fazer ajoelhar as massas. Pelo contrário, o Prólogo do autor é de tom bastante moderado: «Medita pausadamente nestas considerações. São coisas que te digo ao ouvido, em confidência de amigo, de irmão, de pai.» É manifesto que, se Caminho é, em certo sentido, um apelo às armas, é acima de tudo um apelo às discretas e ocultas batalhas da oração contemplativa e do trabalho diário.

Ao mesmo tempo, é impossível ignorar a contagiosa paixão que está por detrás deste livro singelo, uma paixão por Deus e uma paixão apostólica pelas almas. O estilo enérgico é um importante elemento do atractivo que a obra exerce. Com efeito, a linguagem de S. Josemaría é simultaneamente familiar – cheia de ecos do Novo Testamento e de autores espirituais clássicos – e nova, por vezes informal e mesmo coloquial. O tom é pessoal, forte, íntimo. O autor vai directo ao assunto:

Que a tua vida não seja uma vida estéril. – Sê útil. – Deixa rasto. – Ilumina, com o resplendor da tua fé e do teu amor. Apaga, com a tua vida de apóstolo, o rasto viscoso e sujo que deixaram os semeadores impuros do ódio. – E incendeia todos os caminhos da terra com o fogo de Cristo que levas no coração. (nº 1)

Trata-se, afinal, de um livro de fogo… mas de um fogo discreto, de palavras sussurradas como quem reza, de pontos que são como carvões incandescentes, no interior dos quais se encontra um lume que é como uma jóia.

O tom singular desta obra resulta, em parte, da maneira como foi composta, porque Caminho é um livro que, mais do que ser escrito, foi organizado. Os 999 pontos que o constituem não foram escritos por capítulos; foram escritos um de cada vez, em blocos de notas e em agendas, em pedaços soltos de papel; resultam de frases ditas numa homilia, de conselhos de direcção espiritual, de dedicatórias em livros, de partes de cartas. Só depois foram agrupados em capítulos, acabando finalmente por constituir um livro.

Em suma, Caminho não é um tratado sistemático de teologia especulativa, e muito menos o «Manual do Opus Dei». S. Josemaría tinha em mente um público muito mais alargado, e designava aquilo que escreveu como simples «considerações», «anotações». Os pontos de Caminho nem sequer são propriamente aforismos ou máximas, dado que referem, de forma muito óbvia, circunstâncias específicas de vidas concretas: são muito pessoais, são demasiado «ocasionais», são muitas vezes pensamentos de uma alma em oração ou fragmentos de conversas, ouvidos de passagem. Na verdade, é precisamente nestes termos que o autor descreve o livro no Prólogo: como «confidências». E, embora os nomes e as datas tenham sido deliberadamente eliminados, o leitor não tem qualquer dificuldade em «ouvir» os mil e um pormenores da vida de pessoas comuns: o emprego, os amigos, a vida social, a doença, a guerra, o sofrimento, os estudos, a vida familiar… Estas considerações são dirigidas a pessoas metidas na vida profissional e social, e o leitor é convidado a descobrir de que forma estes pontos se aplicam à sua própria vida.

O livro pretende ser, sem sombra de dúvida, um desafio, um recordatório das consequências práticas da alta vocação a que cada cristão é chamado, uma vocação recebida no baptismo para ser santo e apóstolo. Está escrito, diz ainda o autor no Prólogo, «para que se eleve algum pensamento que te fira, e assim melhores a tua vida».

Mas Caminho pretende acima de tudo inspirar o leitor a falar directamente com Deus; é um trampolim para a oração pessoal, esse diálogo em que se procura, se encontra e se ama a Cristo. É por isso que S. Josemaría nos recorda que leitor e autor não estão sozinhos: «E estas confidências são ouvidas por Deus.» Na presença de Deus, que é um Pai amoroso, a experiência da leitura dá, muito naturalmente, lugar à oração.

Um dos sinais de um clássico de espiritualidade é a sua capacidade de transcender o tempo e o lugar em que foi escrito; sessenta e sete anos após a publicação original, vemos que as discretas palavras de fogo de S. Josemaría deram realmente a volta ao mundo. É grande a distância que separa a Espanha dos anos 30 da Manhattan do terceiro milénio, mas o livro parece ter feito esse percurso sem grande dificuldade.

Pelo caminho, mudou inúmeras vidas. Para muitos, a leitura de Caminho assinalou, como pretendia o autor, o começo de uma conversa de toda a vida com Deus. Para outros – como o jovem arquitecto de 1933 –, foi o primeiro passo de uma vocação divina no meio do mundo. E foi o companheiro de toda a vida, o livro que se lê e relê, um verdadeiro livro de cabeceira.

O seu enorme impacto não ficou limitado a certos países, a determinadas línguas, culturas ou classes; tanto o professor de Berlim, como a dona de casa das Filipinas, o homem de negócios de Lagos, a bailarina de Boston, o sacerdote das zonas montanhosas do Peru, o camponês de Dubuque – todos eles encontram nas palavras de um jovem sacerdote espanhol das faldas dos Pirenéus algo em que se reconhecem, e que passa por cima da crescente distância do tempo e das culturas. Surpreendentemente, pelo facto de se ter dirigido com sinceridade a si mesmo e às pessoas que tinha à sua volta nos anos 30, S. Josemaría Escrivá continua a ter que dizer a todos nós.

Talvez que, em Caminho , oiçamos a voz de um amigo que todos somos capazes de reconhecer; uma voz, como diz o autor, «de amigo, de irmão, de pai» – que é, podemos hoje acrescentar, a voz de um santo. Porque o nosso amigo e nosso pai dos anos 30 é hoje um santo que está no céu; e estas confidências que nos são ditas ao ouvido são sussurradas por um homem a quem João Paulo II chamou em 2002, na cerimónia de canonização, «o santo da vida corrente».

S. Josemaría gostava de falar de estradas, caminhos e viagens, talvez porque, como escreveu certa vez fazendo eco às palavras de Jesus no Evangelho de São João: «Para chegarmos a Deus, Cristo é o caminho» ( Via Sacra , X). Com efeito, há um só caminho, Jesus Cristo, que é o Caminho, a Verdade e a Vida. Mas este único Caminho pode assumir um número infinito de formas, tão vasto como o número de homens e mulheres da história.

« Cada caminante siga su camino » – estas palavras de um cartaz de propaganda socialista colado numa parede durante a Guerra Civil viriam a ser um mote para S. Josemaría, que nelas via uma expressão do chamamento misteriosamente íntimo de Deus, da vocação singular de cada um, porque Deus chama-nos pelo nome , convidando-nos a segui-Lo. Todas as pessoas deste mundo têm um caminho que é, pela providência de Deus, irrepetivelmente próprio.

No Prólogo, S. Josemaría declara que Caminho foi escrito para que o leitor entre «por caminhos de oração e de Amor», e logo no primeiro ponto fala de incendiar «os caminhos da terra». A oração final da Missa da festa de S. Josemaría pede que “percorramos com alegria o caminho da santificação” . S. Josemaría salientava que estes caminhos de oração, amor e santidade são as avenidas, as auto-estradas, as ruas, as vielas e os passeios da sociedade contemporânea. Quando seguirmos verdadeiramente os passos de Cristo, todos os caminhos da terra se tornarão divinos.

A vida do cristão neste mundo é, pois, um caminho de procura do amor de Cristo. O livro de S. Josemaría é um convite aberto a percorrer esse caminho, cuja fase final – em sentido literal, pois trata-se do último ponto de Caminho – nos fala do amor que se alcança em cumprimento dessa árdua jornada em que se procurou e se encontrou a Cristo, um amor que, na realidade, andou sempre à nossa procura:

Qual é o segredo da perseverança? O Amor. – Enamora-te e não O deixarás. (nº 999)

O amor de Cristo é, a um tempo, o caminho e o destino final – é a meta e o modo de a alcançar. Para o leitor contemporâneo, não pode haver melhor introdução a Caminho do que aquelas frases concisas que S. Josemaría escreveu na página de rosto do clássico de espiritualidade que em 1933 ofereceu ao jovem arquitecto de Madrid: «Que procures a Cristo. Que encontres a Cristo. Que ames a Cristo.»

D. Javier Echevarría, Prelado do Opus Dei, Roma, 9 de Janeiro de 2006.