100 anos de gratidão (7) - O primeiro pobre a ser ajudado

Partilhamos o testemunho de Luca, que, graças a uma experiência de voluntariado na Nicarágua, estilhaçou as suas teorias sobre os pobres contra o muro inquebrável da realidade, iniciando um caminho de conversão. “100 anos de gratidão” é uma compilação de testemunhos que acompanha as Assembleias Regionais do Opus Dei para 2024.

A primeira abordagem em relação aos pobres que tive na minha vida foi bastante intelectual e teórica, talvez porque frequentava uma escola secundária “bem” em Roma. Em primeiro lugar, protestei com os meus pais por terem comprado um automóvel novo em vez de usarem o carro velho até ao fim e o venderem aos pobres; depois, fundei um grupo com cerca de uma dúzia de estudantes do liceu, mais ou menos da mesma idade, que se dedicava a estudar a atualidade e a protestar a favor de causas dos países emergentes ou oprimidos; finalmente, durante uma ocupação estudantil, dei um curso sobre a dívida dos países pobres.

Dois estudantes numa modesta secretária

Não tinha grandes competências em economia, mas estava convencido de que as ideias que tinha adquirido sobre a situação social em África através da leitura dos jornais eram suficientemente precisas para dizer aos outros o que fazer por esses países. Reconhecia, porém, que havia algo de errado em discursar sobre os países pobres sem nunca ter visitado um único. Este desejo de ver e tocar aquilo de que estava a falar entrou em mim e foi a alavanca que, sem saber, mudou a minha vida.

Uma manhã, estava com a turma numa visita de estudo a uma feira do estudante em Roma. Estava a vaguear distraidamente por entre os stands das universidades e faculdades, quando o meu olhar se fixou numa pequena secretária. Chamar-lhe “secretária” é talvez um exagero: era uma mesa de escola com um cartaz a dizer “voluntariado”. Perguntei então aos dois estudantes sentados por trás dela que tipo de atividades estavam a promover. Responderam: visitas na cidade a jovens com deficiência e campos de trabalho na Nicarágua. A segunda frase impressionou-me: sem saber porquê, talvez até a tremer de emoção, disse a pés juntos – apesar de ainda ser menor de idade! –: “Ok, estou dentro. O que é que tenho de fazer para ir também para a Nicarágua?”.

Eles não sabiam, mas para mim era a janela para a realidade dos pobres que eu procurava. Seguiram-se algumas semanas de conhecimento mútuo: os dois estudantes da mesa descobriram que eu era ateu e eu descobri que eles eram do Opus Dei.

Inicialmente, eu tinha a expetativa e o desejo de acabar numa espécie de comício com algum guerrillero nicaraguense, enquanto eles tinham iniciado um trabalho de voluntariado cristão com o objetivo de construir latrinas para um pueblo local, uma pequena aldeia. A boa vontade de ambas a parte ultrapassou a barreira da crença e a diferença de expetativas: apanhámos o avião.

A chegada à Nicarágua de mau humor

A viagem já foi uma antecipação do programa. Devido a um atraso da minha parte, todo o grupo correu o risco de perder o avião. Uma vez no ar, descobri que os outros tinham pago mais do que eu pela viagem e deduzi que, sem me conhecerem bem e sem me dizerem nada, tinham pago uma parte do preço por mim, para que eu também pudesse participar.

Chegámos a Manágua, capital da Nicarágua, numa carrinha a cair aos bocados e, durante os dois primeiros dias, não pude trabalhar porque apanhei disenteria por beber água local. As pessoas do grupo foram, nisto como noutras coisas, simpáticas e pacientes, embora só me conhecessem há uns quantos dias. Eram também alegres, enquanto eu tinha um certo ar sisudo devido à seriedade com que encarava a tarefa. Ver que, na luta para ajudar os pobres, o primeiro estorvo e – de certa forma – o primeiro pobre a ser ajudado era eu, foi para mim uma revolução copernicana. Para aceitar com um sorriso.

As surpresas não acabaram aí. Observando, por fim, a gente do pueblo na floresta, as minhas ideias estilhaçaram-se contra o muro inquebrável da realidade. Os pobres não eram infelizes: as mães sorriam, as crianças subiam, descalças, às palmeiras para deitar para baixo o coco, os mais velhos sentavam-se com paciência ao lado das barracas, os jovens jogavam à festa do mastro. Afinal de contas, eram mais sorridentes do que eu. Isto dava cabo da equação que tinha na cabeça, segundo a qual a consumo e riqueza correspondia a felicidade, enquanto que à pobreza se seguia a infelicidade.

A pedra atirada ao charco das ideias

O facto de sorrirem, claro que não fazia desaparecer os problemas óbvios de higiene pública, de habitação ou de rendimento familiar, mas a pedra no charco das minhas convicções estava atirada. Ao pensar nos meus hábitos de consumidor ocidental e na minha falta de alegria, senti-me desafiado. Nessa ocasião, apercebi-me de que o elemento verdadeiro e mais visível a perturbar o equilíbrio era o consumismo induzido pela publicidade que, com a sua omnipresença em painéis e cartazes, tinha levado as mães a gastar mais em bebidas com gás do que em água potável.

Por outro lado, a religião, que eu considerava “o ópio do povo”, era um laço de união e de alegria entre as pessoas da pequena localidade, tal como o era entre os estudantes italianos que vinham para aquele campo de trabalho sem se conhecerem, mas ligados pela frequência comum, cada um na sua cidade, das atividades do Opus Dei.

A lição que aprendi com esta atividade na floresta nunca a esqueci, e foi para mim o início de uma conversão, de uma mudança decisiva de hábitos e de muitas amizades duradouras. Não somos nós que visitamos os pobres, é a vida deles que questiona a nossa, quando saímos da nossa zona de conforto para estarmos verdadeiramente com eles. E quando isso acontece, como nos enriquecem!


“100 anos de gratidão” é uma recolha de testemunhos italianos que acompanham as Assembleias regionais do Opus Dei em 2024.

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