“Vosso coração se alegrará”: O sentido cristão do sacrifício (2)

Para os cristãos o valor do sacrifício está escondido no desejo, manso e humilde, de associar-se ao sofrimento de Jesus em sua paixão, e de libertar o coração daquilo que o encadeia: na aspiração a uma vida mais leve, mais luminosa, mais livre.

Una bailarina con las manos en el suelo, se esfuerza en una acrobacia.

Com imensa delicadeza, mas profundamente desconcertados, José de Arimateia e Nicodemos descem o Senhor da cruz e o deixam nos braços de sua mãe. Santa Maria acaricia seu Filho com a ternura daquela noite longínqua em Belém; fecha-lhe os olhos, beija-o na fronte. Chora, crê, espera... E assim sustenta, através dessa prova tão dura, uma Igreja ainda minúscula: o “povo que há de nascer” (Sl 22, 32), que já está nascendo.

A manhã do domingo de Páscoa dissipará todas as trevas. Sem a ressurreição, não só a paixão e a morte de Jesus, mas também todo o sofrimento e a dor da história, teriam se transformado em uma brincadeira cruel. A vitória de Jesus sobre a morte mudou, porém, as coordenadas para sempre. Desde então é possível sofrer e entregar-se por amor, com a confiança de Jesus: dou a minha vida para a retomar (Jo 10-17); “hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará” (Jo 16-22). Essa alegria, na hora de acolher e escolher a cruz, no pequeno e no grande, é uma graça especial de Jesus ressuscitado[1].

Fonte de vida

São Paulo explica que a morte de Jesus crucifica o “homem velho” (Rm 6, 6; Ef 4,22). Trata-se de uma morte que só tem sentido do ponto de vista da vida à qual vai dar lugar: a vida da graça, do Espírito, o “homem novo” (Ef. 4, 24). Do mesmo modo, o sacrifício e a mortificação cristã não têm sentido por si mesmos, como se renunciar à própria vida fosse, em si mesmo, algo bom. A mortificação tem sentido na medida em que é vivificante, fonte de vida nova. O cristão percebe em si mesmo coisas que tiram a sua vida, que o alienam, que criam divisão em seu interior e ao seu redor... porque ainda está sob o domínio do pecado: tendências doentes, ou feridas que devem ser salvas, ressuscitadas por Cristo. Por isso, São Paulo adverte: “se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis” (Rm 8,13).

É importante entender bem o que o apóstolo diz aqui: diante da chamada a viver segundo o Espírito, com maiúscula, há a tentação de viver segundo a carne, quer dizer segundo tudo o que em nós – alma e corpo – opõe-se a Deus[2]. Por isso, a vida “segundo a carne” não é tanto a de um corpo selvagem que pisoteia uma alma inocente como a de uma alma frívola que corrompe e desfigura a pessoa inteira, em sua unidade de corpo e de espírito[3]. Como Jesus diz, o mal vem de dentro: “Ora, o que sai do homem isso é que mancha o homem. Porque é do interior do coração dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos, adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho insensatez. Todos esses vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem” (Mc 7, 20-23).

Entende-se assim que para os cristãos o valor do sacrifício não está no sofrimento em si mesmo, ou numa ascética submissão do corpo, mas sim no desejo de libertar o coração daquilo que o encadeia; na aspiração a uma vida mais leve, mais luminosa, mais inteira: uma vida que irradie simplicidade e alegria. O cristão não procura a dor pela dor; não é masoquista. Descobre, no entanto, tantas vezes, em si mesmo e nos outros, fontes de egoísmo, de sensualidade, de cobiça. Não é possível se livrar e ajudar os outros a se livrarem de tudo isso, sobretudo quando há raízes profundas, sem renúncia. Abrir o coração pode, sim, doer, como acontece quando o fluxo sanguíneo volta a um membro intumescido pelo frio; pode custar muito, mas é necessário.

Então eles jejuarão

“Podem os amigos do esposo afligir-se enquanto o esposo está com eles? Dias virão em que lhes será tirado o esposo. Então eles jejuarão” (Mt 9, 15). Estas palavras de Jesus um pouco misteriosas anunciam detalhes importantes sobre o estilo de vida dos seus discípulos. Por um lado, Ele veio ao mundo para ficar, e veio trazer a alegria, a vida “em abundância” (Jo 10,10): Ele não só não se incomoda que desfrutemos da vida, mas alegra-se de ver-nos sãos e felizes[4]. Por outro, enquanto durar a história sentiremos a ausência de Deus onde os homens preferirem as trevas de seu egoísmo à luz de seu amor (cfr. Jo 3, 19-21). E esse lugar é sempre o coração de cada um. Em nosso coração, em nossas relações, em nossas casas, é necessário dar espaço para Deus, porque o nosso eu tende a ocupar tudo. E onde reina o eu, falta paz e alegria.

O jejum é uma das formas que o combate dos cristãos utilizou para dar espaço a Deus em suas vidas, porque o Senhor mesmo jejuava (cfr. Mt 4,2) e nos exortou a fazer o mesmo, com expressão alegre (Mt 6,16-18). O jejum significa renunciar de modo concreto, palpável, à nossa tendência a dominar e dispor sobre as coisas. Através desta prática, que nos toca em algo tão fundamental como a alimentação para a subsistência, saímos “da tentação de ‘devorar’ tudo para saciar nossa cobiça e conquistar a capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio de nosso coração”[5]. São Josemaria dizia que o jejum é uma “penitência gratíssima a Deus”; embora, acrescentasse, “ora por esta, ora por aquela razão, temos feito concessões”[6]. Com efeito, se a pessoa se limitasse estritamente às disposições mínimas nesta matéria, acabaria por jejuar muito pouco. Daí que a Igreja, como boa mãe, deixe grande margem para a generosidade e para o crescimento espiritual de cada um, levando em conta também a saúde do corpo.

A lógica do jejum, marcada pelo desejo de que Deus cresça e que eu – com meu egoísmo, com meu desejo de me impor – diminua (cfr. Jo 3, 30), permite entender o sentido de tantas outras privações voluntárias: sacrifícios que, embora pareçam empequenecer a vida, alargam-na de fato; tornam-na mais livre. Ao renunciar voluntariamente a certas coisas boas, vamos gravando em nosso coração a convicção de que “só Deus basta”[7]. Protegemo-nos assim da idolatria, que “não apresenta um caminho, mas muitas sendas que não levam a lugar nenhum formam antes um labirinto”[8]. Quem não sabe renunciar a nada, acaba se submetendo a tudo, “obrigado a escutar as vozes de tantos ídolos que gritam: ‘Confia em mim’”[9]; quem se atreve a renúncias, pelo contrário, “livra-se de muitas escravidões e consegue, no íntimo de seu coração, saborear todo o amor de Deus”[10].

Desse ponto de vista, existem muitas formas possíveis de ‘jejum’ ou de renúncia. Contanto que as escolhamos de coração, e não por um frio sentido do dever, todas podem nos tornar mais livres, “livres para amar”[11]. Um jejum digital intermitente, por exemplo, pelo qual deixamos de lado o celular em alguns momentos do dia, permite-nos melhorar nossas relações interpessoais e manter conversas mais autênticas, a salvo de distrações que intoxicam. O fato de renunciar a dispor de imediato de tudo com alguns poucos movimentos dos dedos – informações, produtos, experiências – libera-nos de uma tendência a possuir ou consumir, o que acaba por deixar-nos vazios. Prescindir de um serviço ou escolher às vezes algo menos confortável ou divertido ajuda-nos a desfrutar do que é simples e fortalece-nos frente às contrariedades, que não faltam na vida de ninguém. Evitar que nossa atenção se disperse durante o trabalho permite fazer dele um verdadeiro serviço, e sentir alegria com os resultados. Renunciar a algum tempo livre para cuidar de um doente ou de alguém que precisa de ajuda dilata o coração e impede que ele se torne duro; ensina-nos inclusive a conviver com nossa própria imperfeição e fragilidade.

Nesta lógica de liberdade do coração – liberdade dos filhos de Deus (cfr. Rm 8, 21) – constam também diferentes costumes de mortificação do corpo e da sensibilidade, que adotaram várias formas entre os cristãos ao longo da história. Assim como o jejum, tais práticas correspondem à convicção de que é necessário rezar também com o corpo, e de que se torna inevitável uma certa luta por reintegrar as diferentes esferas de nossa pessoa. Assim, quando um cristão trata seu corpo ou os seus sentidos com mais exigência, não é por ver neles algo de mau ou de suspeito, e sim porque percebe a tendência de seu coração a dispersar-se em mil direções, e sobretudo o custo real dessa dispersão: a incapacidade de amar. Ou mais ainda, porque sente o desejo, manso e humilde, de associar-se ao sofrimento de Jesus em sua paixão. São Paulo fala de levar a morte do Senhor em nosso corpo para ressuscitar com ele (cfr. 2 Cor 4,10); este tipo de sacrifícios corresponde também a esse percurso, a essa páscoa. É verdade que às vezes podem ter se prestado a excessos e também à incompreensão de quem não concebe que se possa sofrer para que Jesus viva em nós. Entre aqueles que por um lado exageram e por outro se escandalizam, eleva-se, no entanto, a serenidade, a simplicidade e a liberdade de espírito com que muitos cristãos expressam também assim seu amor a Jesus: “coração, coração na Cruz, coração na Cruz!”[12].

Dar a vida por seus amigos

Eu quero a misericórdia, e não o sacrifício”, diz Deus através do profeta Oséias (Os 6,6). Jesus retoma essas palavras no Evangelho (cfr. Mt. 9, 13), não para tornar inválida a prática do jejum e da mortificação, mas para sublinhar que todo sacrifício deve ordenar-se ao amor. São Josemaria o explicava assim: “Prefiro as virtudes às austeridades, diz Yavé com outras palavras ao povo escolhido, que se engana com certos formalismos externos. – Por isso, temos que cultivar a penitência e a mortificação, como provas verdadeiras de amor a Deus e ao próximo”[13]. Nesse sentido, ele costumava dizer que as mortificações preferidas por Deus eram as que tornavam a vida mais agradável aos outros[14]. Nisto também, ele se fazia eco das palavras do Senhor: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13).

A disposição de dar a vida pelos outros, se for sincera, não precisa nem pode esperar situações extraordinárias porque descobre muitas ocasiões na própria vida. São Josemaria enumerava algumas: “Essa frase feliz, a piada que não te escapou da boca, o sorriso amável para quem te incomoda, aquele silêncio ante a acusação injusta, a tua conversa afável com os maçantes e inoportunos, o não dar importância cada dia a um pormenor ou outro, aborrecido e impertinente das pessoas que convivem contigo...”[15].

Nessas circunstâncias e em muitas outras, o olhar do cristão, como o de Jesus, não está voltado para o próprio sofrimento, mas para o bem que torna a cruz uma realidade amável. “Sacrifício, sacrifício! – é verdade que seguir a Jesus Cristo – disse-o Ele – é levar a Cruz. Mas não gosto de ouvir as almas que amam o Senhor falarem tanto de cruzes e de renúncias: porque, quando há Amor, o sacrifício é prazeroso – ainda que custe – e a cruz é a Santa Cruz. – A alma que sabe amar e entregar-se assim, enche-se de alegria e paz. Então, por que insistir em ‘sacrifício’, como que procurando consolo, se a Cruz de Cristo – que é a tua vida – te faz feliz?[16]

São Josemaria enfatiza o valor positivo do sacrifício que se faz por amor, indicando-o inclusive como fonte de paz e de alegria. E rejeita, por isso mesmo, com firmeza, alardear a dor ou fazer-se de ‘vítima’[17]. Às vezes, há quem pareça insistir no componente de renúncia que seguir o Senhor, implica, como que procurando um olhar de consolo, e esquecendo que a renúncia só é fonte de vida por sua união com a cruz de Jesus. Nesses casos, presta-se a atenção à dor sentida, ao próprio esforço espiritual. O sacrifício cristão não se propõe provar uma capacidade heroica de aguentar o sofrimento, mas formar em nós um coração como o de Cristo, um coração transpassado, “totalmente aberto”[18].

Jesus não explicou sua morte como uma mostra de coerência diante de princípios ou como um desenvolvimento de sua resistência espiritual, mas como uma entrega por pessoas concretas: “meu corpo, que é dado por vós” (Lc 22, 19). Sua atenção está toda voltada para nós, não para si mesmo. Por isso, se reduzíssemos o objetivo de nossa mortificação a nosso próprio sofrimento, não só estaríamos vivendo uma espiritualidade negativa e triste, que não tem nada a ver com o Evangelho, mas sobretudo uma certa soberba espiritual que poderia tornar estéreis nossos sacrifícios. É necessário olhar muito além: compreender o sacrifício como um grande sim a Deus e aos outros, como um grande sim à Vida.

Há uma grande distância entre quem vê o sofrimento como um objetivo e quem o vê como amor, ainda que o amor possa doer. O convite de Jesus a tomar sua cruz poderia, por isso, entender-se assim: ama embora doa – porque às vezes vai doer – e confia na ressurreição; procura sobre todas as coisas o reino de Deus e sua justiça (cfr. Mt. 6, 33), e deixa tudo nas mãos do Pai (cfr. Lc 23,46). Essa é a disposição do coração de Cristo e do coração dos seus: iluminar o mundo às escuras com uma alegria radicada na cruz[19]; caminhar pela vida com “a cruz nas costas, com um sorriso nos lábios, com uma luz na alma”[20].


[1] O profeta Isaías já antecipava, com palavras que séculos depois nos impressionam, essa graça que surgirá da Cruz e da Ressurreição, e que alcança a todos os que abraçam esse caminho: “Posto que deu sua vida em expiação, terá descendência, prolongará os dias, e, por sua mão, o desígnio do Senhor prosperará. Pelo esforço de sua alma verá a luz (...). Por isso, dar-lhe-ei multidões em herança, e repartirá os despojos com os fortes; porque ofereceu sua vida à morte e foi contado entre os pecadores, carregou os pecados das multidões e intercede pelos pecadores” (Is 53, 10-12).

[2] Cfr. Rm. 8,7-9: “o desejo da carne é hostil a Deus, pois a carne não se submete à lei de Deus, e não o pode. Os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o espírito de Deus habita em vós”.

[3] Nese sentido, São Paulo fala do respeito que se deve ao corpo, aduzindo que é “membro de Cristo” e “templo do Espírito Santo” (1 Cor 6, 15-19); “ninguém jamais aborreceu a sua própria carne, ao contrário, cada qual a alimenta e a trata, como Cristo faz à sua Igreja” (Ef 5, 29)

[4] Cfr. Si 14,11.14: “Filho, na medida que puderes, procura o bem (...) Não te prives de um dia feliz, e não fujas de nenhum um bom desejo.

[5] Francisco, Mensagem para a quaresma, 2019.

[6] São Josemaria, Caminho, n. 231.

[7] Santa Teresa de Jesus, Poesias, n. 30, em Obras Completas, Biblioteca de Autores Cristãos, Madri, 2012.

[8] Francisco, Enc. Lumen Fidei, n. 13.

[9] Ibidem.

[10] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 84

[11] F. Ocáriz, Carta pastoral, 9/01/2018, n. 6.

[12] São Josemaria, Via Sacra, 5ª estação.

[13] São Josemaria, Sulco, n. 992.

[14] Cfr. p.ex. Sulco, n. 991; Forja, n. 150.

[15] Caminho, n. 173.

[16] Sulco, n. 249.

[17] Cfr. Caminho, edição critico-histórica, comentário ao n. 175.

[18] J. Ratzinger, Introducción al cristianismo, Sígueme ,Salamanca, 2007, p. 189.

[19] Cfr. São Josemaria, É Cristo que passa, n. 43; Forja, n. 28.

[20] Via Sacra, 2ª estação, n. 3.

Gonzalo de la Morena – Carlos Ayxelà