Visitando a Cracolândia

Há quase dez meses, alguns universitários organizam visitas à Cracolândia aos sábados. Nunca tinham imaginado ir lá. Descobriram muitas histórias, muitos sonhos... muitas alegrias e tristezas, quedas e recomeços. Foram para visitar e aprenderam muitas coisas para suas vidas. Foram ajudar e acabaram sendo ajudados.

Tudo começou quando, durante a Missa em honra a São Josemaria Escrivá no ano de 2018, o Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo, comentou que a Missão Belém, uma instituição da Igreja que faz um belo trabalho com moradores de rua e usuários de droga, estava precisando de ajuda.

Aquele comentário mexeu conosco. São Josemaria, o fundador da Obra, dizia que Opus Dei nasceu para “servir a Igreja como a Igreja quer ser servida” (Escrivá, carta de 31-V-43). Não podíamos ficar indiferentes! E por isso resolvemos ajudar de algum modo a "Missão Belém".

Marcamos uma primeira visita ao local. Fomos um grupo de universitários e jovens profissionais que frequentam o Centro de Estudos Universitários do Sumaré. Nessa primeira visita, limpamos os quartos, lavamos os banheiros, conversamos e almoçamos com alguns dos acolhidos pela instituição. Foi uma experiência edificante para todos nós.

Voluntários limpando uma das casas da Missão Belém.

Após esse primeiro contato, retornamos à "Missão Belém" e combinamos organizar um trabalho sistemático, que consistiria em visitas quinzenais para realizar consertos materiais e conversar com alguns dos moradores de rua, acolhidos pela instituição.

Porém, na semana seguinte tivemos uma surpresa. Um dos coordenadores da "Missão Belém", nos convidou para ir à Cracolândia. Um pouco surpresos pelo convite inesperado, fomos até o local, conhecido por albergar centenas de usuários de crack na região central da cidade de São Paulo.

Logo ao entrar na Cracolândia, tivemos um contraste impressionante. A área fica a poucos metros da Sala São Paulo, que sedia a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Era um sábado de manhã e os músicos ensaiavam. Ao som de Beethoven ou Schubert, víamos uma multidão consumindo drogas sob um sol escaldante e, a medida que adentrávamos na rua, a sinfonia ia ficando inaudível, cortada por diálogos confusos, gritos e disputas. Sentíamos um odor quase insuportável.

Realmente não imaginávamos que a partir daquele dia iríamos quinzenalmente – às vezes todas as semanas – à Cracolândia. Otto e Talison, ambos universitários, ficaram muito impressionados com o estado daquelas pessoas, que eram de todos os níveis sociais. Conhecemos um desenhista, um pastor e até uma bela modelo, que agora moravam lá. Neste dia, três usuários decidiram sair da Cracolândia e ir para a "Missão Belém", onde os acolhidos têm a oportunidade de recomeçar a vida longe das drogas e seguir um caminho de restauração integral, que reata os laços de cada pessoa com Deus, consigo própria e com a sua família.

Registro de uma das visitas

Vários amigos nossos aceitaram, no princípio receosos, o convite de ajudar na Cracolândia. Uma experiência certamente inesquecível. Muitos deles nos confidenciaram que o contato com essa dura realidade os ajudaram a mudar o estilo de vida: evitar gastos desnecessários, a valorizar mais suas famílias, etc..

Nesses quase 10 meses de visitas, são muitas histórias, muitos sonhos... muitas alegrias e tristezas. Não é raro ouvirmos: “hoje usarei a última pedra! Amanhã eu saio com vocês...”. O que infelizmente nem sempre acontece.

Adriana e José são casados e moram na Cracolândia. Ambos reconhecem a importância de sair das drogas, mas se viam sem forças. Conversamos com eles, ouvimos as suas histórias e os animamos a fazer o tratamento na "Missão Belém". Para a nossa surpresa eles aceitaram o convite. Separaram-se para a internação. Ele numa casa, ela em outra; poderão se encontrar algumas vezes. Carinhos, choros, separação, eles estão confiantes. Todos nos comovemos.

Voluntários no centro da cidade

Outro casal também nos impressionou. Eram dois jovens, aproximadamente 30 anos cada. Roupas de boa qualidade, mas desgastadas. Aparentemente estavam ali há poucos dias, talvez duas semanas. Ela, uma moça loira e com olhos claros, semblante agradável, cantava para ele uma conhecida música da banda Charlie Brown Jr.: “Agora eu sei exatamente o que fazer/ Bom recomeçar, poder contar com você/ Pois eu me lembro de tudo irmão/ Eu estava lá também/ Um homem quando está em paz/ Não quer guerra com ninguém (...) Só os loucos sabem (...)”. Muito apropriada para o momento. Eles não quiseram conversar conosco, mas na semana seguinte já não estavam mais lá. Talvez tenham encontrado forças para recomeçarem a vida...

Enfim, cada pessoa tem uma história, repleta de sonhos, dentre eles o de sair daquele lugar:“eu vou sair dessa, meu irmão!”, costumam dizer enquanto consomem a droga. Não é muito o que fazemos por cada um nessas manhãs de sábado: olhá-los, ouvi-los, compreendê-los, animá-los, deixá-los chorar enquanto contam as suas histórias. Eles agradecem muito, pois dizem que são vistos como objetos pelas outras pessoas, e ali nós os tratamos como seres humanos. Animamos a todos a recomeçarem a vida na "Missão Belém".

No canto direito inferior, de camiseta branca e amarela, está Carlos, ex-morador da Cracolândia, hoje responsável por vários acolhidos da Missão Belém

E há muitíssimas histórias de recomeços! Carlos, um dos que conhecemos na casa da "Missão Belém", na Praça da Sé, foi abandonado aos 7 anos pela mãe. Passou a usar várias drogas e morar na rua. Viveu mais de 20 anos nessa vida e, após algumas tentativas de reabilitação, decidiu recomeçar novamente. E contou-nos como foi o seu recomeço: um dia, ao ver o seu rosto magro e desfigurado refletido numa garrafa de cachaça, disse que não poderia mais continuar com tudo aquilo. Buscou a ajuda na "Missão Belém" e teve a sua vida totalmente restaurada. Hoje, além de ser o responsável (“pai”) de uma das casas da "Missão Belém", não fuma, não bebe, reencontrou a sua mãe e a perdoou de todo o coração.