Virtudes humanas: Laboriosidade e Ordem

Fevereiro, fim de férias, apesar de ainda com isolamento social... Este artigo oferece ideias sobre duas virtudes muito importantes para quem procura santificar o seu trabalho: ordem e laboriosidade.

1. A virtude da laboriosidade

2. Laboriosidade, atividade, ativismo

3. Laboriosidade e ordem

Bibliografia básica

1. A virtude da laboriosidade

A palavra latina labor significa esforço, dificuldade, fadiga e também trabalho, na medida em que a ação de trabalhar requer compromisso e provoca, ou pode provocar, cansaço. Este significado e, em maior ou menor grau, estas nuances, foram preservadas em vários idiomas modernos: lavoro, em italiano; labour, em inglês; labor, em português e espanhol, etc. Entre as palavras derivadas, algumas, como o adjetivo “laborioso” e o advérbio “laboriosamente”, recolhem e acentuam a referência à dificuldade e ao esforço, já que se aplicam a atividades que só são realizadas através de um esforço árduo e não sem fadiga. O substantivo abstrato “laboriosidade”, que agora nos ocupa, move-se, ao invés disso, em outra direção, pois significa atenção e dedicação à tarefa e, frequentemente, a virtude de quem leva o próprio trabalho a sério e com compromisso, sem por si só fazer referência à dificuldade. Mais ainda, com frequência conota passatempo, inclinação e gosto pelo que está sendo realizado.

O substantivo “laboriosidade faz referência à virtude de quem leva o próprio trabalho a sério e com compromisso

Na linguagem falada e na escrita, o significado da palavra laboriosidade às vezes é restrito, aplicando-a apenas, ou de preferência, ao trabalho manual, ignorando – ou deixando em segundo plano – o fato de que o trabalho não se refere apenas às tarefas manuais, mas também às intelectuais. A partir desta perspectiva, a laboriosidade como virtude é identificada com a diligência, ou seja, a atitude ou disposição para enfrentar e resolver rapidamente, sem esquecimentos ou demoras, o que deve ser feito. E se opõe à ociosidade e, mais claramente, ao que, desde os tempos antigos, tem sido apresentado como um dos vícios capitais: a indolência ou preguiça. A preguiça não se define tanto pelo simples fato de não fazer nada, mas pela atitude que – nas palavras de Tomás de Aquino – “repugna ao trabalho corpóreo, exigido para obtermos bem espiritual[1]. Nesta frase, a expressão “bem espiritual” deve ser entendida – no contexto em que estamos agora situados e indo além da intenção imediata de Aquino – com amplitude, e referindo-se, portanto, não apenas à vida espiritual no sentido estrito, mas a qualquer bem real e verdadeiramente humano. A laboriosidade é, em suma, a atitude do espírito que leva a assumir e desenvolver o próprio trabalho com diligência e a enfrentar com responsabilidade e constância o que quer que seja exigido pelas missões ou tarefas que correspondem a cada um.

A virtude da laboriosidade não depende somente ou principalmente da necessidade de procurar o próprio sustento. Neste caso, se este já estivesse garantido, a virtude deixaria de ser necessária. O caráter virtuoso da laboriosidade tem relação com a obrigação de contribuir ao bem da coletividade, que é uma obrigação de todos os seres humanos e do caráter de missão que a existência humana tem por si mesma e mais ainda a partir de uma perspectiva sobrenatural. Portanto, está relacionado com a justiça e com a solidariedade e, cristãmente falando, com a caridade. Daí a razão pela qual são Josemaria Escrivá tenha escrito em Caminho: “Àquele que puder ser sábio, não lhe perdoamos que não o seja”[2]. e em outro lugar “aquele que possa fazer como dez, tem que fazer como quinze”[3].

A laboriosidade é condição de eficácia. Certamente, essa eficácia e os frutos que obtemos como consequência do trabalho dependem de muitos fatores e circunstâncias, alguns exteriores ao sujeito, outros relacionados com as qualidades que cada um possui. Mas também é certo que a dedicação à própria tarefa, a perseverança, hora a hora, dia após dia no trabalho, permitem chegar a metas que, em um primeiro momento, talvez pudessem parecer inatingíveis.

Em todo o caso, a laboriosidade é expressão da seriedade com que enfrentamos a nossa profissão, e assumimos os deveres que derivam daí. É elemento integrante do “prestígio profissional” que, como afirma Caminho, é parte do “anzol de pescador de homens”[4], isto é, desse testemunho de bom trabalho que desperta apreço em quem nos rodeia e facilita a conversa e a amizade para fazer com que mais pessoas conheçam Cristo.

O mandato bíblico sobre o trabalho tem relação com a obra criadora de Deus

Toda consideração da laboriosidade que a apresente como uma virtude de importância secundária ou escassa, ou como algo necessário ou recomendado simplesmente para evitar o ócio, inverte a realidade das coisas. A ociosidade não é má somente porque, sendo acompanhada de um relaxamento do espírito, pode provocar a debilitação da personalidade e dar ocasião ao pecado. Ela já é um pecado em e por si mesma, de modo imediato, pois supõe o abandono ou menosprezo da missão recebida, da própria e inexcusável responsabilidade social. O mandato bíblico sobre o trabalho tem, certamente, em algumas ocasiões, o ponto de partida na condenação da ociosidade – principalmente nos livros sapienciais–, mas tem um alcance muito mais profundo: no Antigo Testamento, tem relação com a obra criadora de Deus[5], e, no Novo Testamento, com a dignidade e seriedade da vocação cristã[6]. Por isso, não está fora de contexto propor, como definição bíblica da laboriosidade as seguintes palavras de São Paulo: “o homem de Deus se encontra perfeito, capacitado para toda boa obra”[7]. Ou recorrer, com essa mesma finalidade, a uma expressão de são Josemaria: “o empenho em tirar proveito dos talentos que cada um recebeu de Deus”[8].

Mas se a laboriosidade pode e deve ser definida por referência ao empenho e prontidão no cumprimento da própria missão e dos deveres e tarefas que derivam dessa missão, convém acrescentar que, propriamente falando, tem relação não a todos os deveres, mas somente aos que implicam uma atividade que se dirige a um objeto exterior. O dever de amar a própria família – usemos este exemplo, ainda que poderíamos utilizar outros –, não é objeto da laboriosidade no que se refere aos aspectos imanentes e íntimos do amor. Sim o é, no entanto, pelo que diz respeito ao cumprimento pronto e diligente dos serviços pequenos ou grandes nos quais o amor se expressa e se manifesta.

2. Laboriosidade, atividade, ativismo

Como dizíamos antes, a virtude da laboriosidade está relacionada com a justiça, que leva a cumprir com fidelidade os deveres que nos cabem e a assumir com responsabilidade as tarefas que correspondem a cada um. Da mesma forma, a partir de outra perspectiva, tem relação com a fortaleza que impulsiona a enfrentar as dificuldades e a superar o cansaço e a fadiga. Opõe-se, por isso, à preguiça, a que já nos referimos, à negligência e ao abandono, tanto nas suas formas mais agudas, como em outras aparentemente menos graves ou menores, como seria – ponhamos um exemplo particularmente significativo – o aproveitamento inadequado desse bem precioso e limitado que é o tempo. São Paulo convida a viver redimentes tempus, redimindo o tempo[9]; e em outro lugar escreve: tempus breve est, o tempo é breve[10]. “Verdadeiramente – comenta são Josemaria – é curto o nosso tempo para amar, para dar, para desagravar. Não é justo, portanto, que o malbaratemos nem que atiremos irresponsavelmente esse tesouro pela janela fora. Não podemos desperdiçar esta etapa do mundo que Deus confia a cada um de nós”[11].

A laboriosidade impulsiona a aproveitar o tempo a fundo, a preencher com um trabalho intenso e bem feito as horas de que cada um dispõe. Mas, se ela leva a viver com sentido de responsabilidade os afazeres próprios, opondo-se à preguiça, não exclui nem a contemplação da beleza, nem o lazer, nem outras realidades conaturais à existência humana, como o descanso. Um descanso que, em ocasiões (as horas de sono), implicará em deixar todas as atividades, mas que, em outros momentos não consistirá em “não fazer nada”, mas em“distrair-se em atividades que exigem menos esforço”[12]; e que “é tão necessário quanto o trabalho na vida de cada um”[13], não somente porque permite repor forças a fim de retomar a tarefa com brio, mas porque contribui à tranquilidade e harmonia do espírito.

a laboriosidade se opõe não somente à preguiça como também ao ativismo, à busca ansiosa do trabalho

De fato, a laboriosidade se opõe não somente à preguiça como também – e com igual força – ao ativismo, isto é, à busca ansiosa do trabalho, à entrega a uma atividade desmedida e febril, que deformaria a personalidade, impediria atender a quem nos rodeia, faria muito difícil – e, em ocasiões, impossível – desenvolver devidamente as qualidades pessoais que cada um recebeu, e poderia, inclusive, levar a perder de vista o autêntico sentido da vida.

A palavra “atividade” deriva do latim activitas e significa o mesmo que ação prolongada e eficaz. Frequentemente é considerada como sinônimo de ação, mas com essa diferença de matiz já assinalada. Também se entende por atividade, às vezes, não uma ação concreta, mas um conjunto de ações: fala-se, pois, da atividade de um vulcão, de uma pessoa, de uma organização. A filosofia clássica fez da atividade entendida como “ação” um objeto frequente de estudo, colocando de manifesto – Aristóteles merece ser aqui especialmente lembrado – a forma como os diversos seres estão dotados de uma natureza ou princípio de atividades que os define e caracteriza: cada ser age, com efeito, segundo a sua natureza, de maneira que ao agir expressa a sua natureza, ao mesmo tempo que a conduz à perfeição. Destacou também – e este ponto cobra agora singular importância – que a ação se define por referência ao fim que se busca por meio dela. É o fim o que determina a ação e a dota de fisionomia. Um agir carente de fins é sinal de irracionalidade ou de loucura.

Os pensadores cristãos assumiram e prolongaram a reflexão iniciada pela filosofia grega à luz daquilo que a fé cristã lhes tinha manifestado sobre o sentido último do viver humano. A revelação bíblica versa, com efeito, sobre o desígnio salvador de Deus e leva a ver o mundo como realidade unificada em virtude do decreto pelo qual Deus dá o ser aos seres e os encaminha até a meta ou consumação final à que se destina: a plenitude do reino dos céus em que, para dizê-lo com São Paulo, Deus será “tudo em todas as coisas”[14]. Tal horizonte, como é óbvio, reafirma a análise da ação realizada pela tradição clássica, ao mesmo tempo que dota de sentido acabado tanto o existir do universo como a vida de cada ser humano.

homem não é escravo, mas senhor do trabalho, e no trabalho deve se desenvolver como ser espiritual, como pessoa

Nesse âmbito se encaixa a virtude da laboriosidade que, de modo diferente ao ativismo implica um contexto autenticamente espiritual e humano, pois, como escreveu Juan Bautista Torelló, “a laboriosidade ou é um serviço ou é mera escravidão”. O trabalho humano está chamado a produzir frutos, como fica claro na parábola dos talentos[15], mas também, e inseparavelmente, a aperfeiçoar o sujeito que o realiza: o homem não é escravo, mas senhor do trabalho, e no trabalho deve se desenvolver como ser espiritual, como pessoa. A dedicação esforçada e responsável à própria tarefa está chamada a harmonizar-se com a serenidade, com a capacidade para perceber o bem e a beleza, com a abertura a quem nos rodeia, a cujo bem deve contribuir o trabalho, e à realidade de Deus, diante que quem o trabalho transcorre.

Em outras palavras, a virtude da laboriosidade impulsiona a trabalhar, e a trabalhar com empenho, dedicação e exigência, mas sem atropelar o próprio labor nem deixar-se dominar por ele, mas enfrentando-o com serenidade de ânimo, atenção e cuidado nos detalhes, com espírito de serviço e com consciência da proximidade de Deus, a quem o trabalho, como toda outra realidade, pode e deve se referir. A pessoa laboriosa – escreveu são Josemaria – “Faz o que deve e está no que faz, não por rotina nem para ocupar as horas, mas como fruto de uma reflexão atenta e ponderada. Por isso é diligente”. E acrescenta: “O uso normal desta palavra – diligente – já nos evoca a sua origem latina. Diligente vem do verbo diligo, que significa amar, apreciar, escolher alguma coisa depois de uma atenção esmerada e cuidadosa. Não é diligente quem se precipita, mas quem trabalha com amor, primorosamente”[16].

3. Laboriosidade e ordem

Afinal, o ativismo é uma atitude que leva a nos deixarmos arrastar pelos acontecimentos sem chegar a dominá-los e, por isso, traz consigo precipitação e, consequentemente, desordem e ineficácia. A laboriosidade, por outro lado, implica em serenidade, capacidade para dominar o fluir dos acontecimentos e, como consequência, implica ordem e, com ela, uma eficácia não só aparente – como acontece no ativismo – mas autêntica e duradoura.

Santo Agostinho definiu a ordem como “a disposição que atribui a cada uma das coisas iguais ou díspares o seu lugar”[17]. Ou, mais brevemente, “disposição das partes no interior de um todo”; o que pressupõe que esse todo não é um mero conglomerado, mas uma realidade unitária formada por elementos variados que se relacionam entre si, dotando de beleza o conjunto ou, dependendo do caso, de eficácia e efetividade.

A língua grega possui duas palavras com semelhanças fonéticas, mas com diferente valor semântico:cosmos, que significa ordem, e caos, que tinha no idioma helênico o significado que continua conservando nas línguas às que foi passado, isto é, confusão, desordem. O jogo entre estes dois vocábulos suscitou nos pensadores gregos uma reflexão sobre o universo (ao que precisamente designaram com o substantivo cosmos) como uma realidade marcada por uma ordem, que não exclui a casualidade e o imprevisto, mas que obedece a leis, que podem ser captadas e analisadas pela inteligência humana, dando origem às diversas ciências, e, com elas, à possibilidade de um domínio cada vez maior da natureza.

Junto a este significado global ou cosmológico, o vocábulo ordem é sujeito a outras utilizações mais imediatas e simples, que poderíamos qualificar de antropológicas. Acudimos, por exemplo, a essa palavra para designar o modo em que o homem dispõe as realidades que integram o mundo em que vive, de modo que produzam uma sensação de agrado e harmonia. Ou as coisas que utiliza, a fim de que, estando cada uma no lugar que lhe foi assinalado, seja fácil encontrá-las e servir-se delas. Assim como – e isso nos situa mais diretamente ante a laboriosidade – o modo como se prepara a ação, dispondo dos meios e dos tempos de maneira que se consiga eficazmente o fim que se deseja alcançar.

A ordem, apesar de ter claras implicações materiais, tem a sua raiz no espírito. É fruto de uma reflexão que, partindo da consideração do fim, avalia os meios, considerando quais são os mais aptos e apropriados, seja em geral, seja – aqui a virtude da prudência está chamada a jogar um papel decisivo – neste momento concreto, contando com os que, hoje e agora, estão efetivamente à nossa disposição.

Como fruto dessa consideração, a ordem leva a dispor a jornada de forma que trabalho e normas de piedade, deveres de estado e encargos apostólicos, dedicação à família e o relacionamento com amigos e colegas encontrem seu lugar, de modo que nenhuma dessas realidades fique desatendida. Dessa forma, se realiza na própria vida a experiência à que se faz referência em um dos pontos de Caminho: “Quando tiveres ordem, multiplicar-se-á o teu tempo e, portanto, poderás dar mais glória a Deus, trabalhando mais a seu serviço[18].

O convite a viver a ordem, acima de tudo, é um convite à educação do espírito

Como se pode concluir de tudo o que foi dito, a ordem é a expressão de uma serenidade e harmonia do espírito que pressupõem, por sua vez, uma apropriada hierarquia nas aspirações, valores e desejos. O convite a viver a ordem, frequente na literatura ascética, é, por isso, muito mais do que uma mera chamada a ordenar as coisas que se possuem ou usam, ou a evitar a precipitação. Acima de tudo, é um convite à educação do espírito, à ordenação, partindo de um princípio reitor – o amor a Deus e aos outros –, do próprio coração, de modo que a ação, informada por uma adequada hierarquia de valores, esteja orientada ao amor e ao serviço, e contribua de maneira verdadeira e eficaz ao bem de quem nos rodeia e da sociedade em seu conjunto.

Texto publicado no site https://www.collationes.org

José Luis Illanes

Outubro, 2009

Tradução: Mônica Diez

Bibliografia básica

Escritos de São Josemaria:

O tesouro do tempo e Virtudes humanas, em Amigos de Deus, nºs. 39-54 e 72-143

Outros escritos

J. Pieper, Ócio E Contemplação, ed. Kírion, 2020

J.B. Torelló, La laboriosità, en Dalle mura di Gerico. Note di psicologia spirituale, Milán 1988, pp. 35.43

G. Bardy, Acedia, en Dictionnaire de Spiritualité, t. I, cols. 166-169

B. Honing, Acedia y Pereza, en E. Ancilli (dir.), Diccionario de Espiritualidad, t. I, Barcelona 1983, pp. 24-27 y t. III, Barcelona 1984, pp. 148-149

E. Cantineo, Attivismo, en Enciclopedia Filosofica, Florencia 1968, cols. 582-583

V. Possenti, Lavoro, "lavorismo", "otium", en "Filosofia" 41 (1990) 135-154

S. Gatto, Activismo, en E. Ancilli, Diccionario de Espiritualidad, cit. t. I, pp. 28-30

J. Cruz Cruz, Orden, en Gran Enciclopedia Rialp, t. XVII, Madrid 1989, cols. 376-378


[1] São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, 12, q. 84, a. 4.

[2] São Josemaria, Caminho, nº. 332.

[3] São Josemaria, AGP, P10, nº. 266.

[4] São Josemaria, Caminho, nº. 372.

[5] Cfr. Ex 20, 9-11.

[6] Cfr. 2Tes 3, 6-15 e Ef 4, 23-28.

[7] 2Tim 3, 17.

[8] São Josemaria, Amigos de Deus, nº. 81.

[9] Ef 5, 16.

[10] 1Cor 7, 29.

[11] São Josemaria, Amigos de Deus, nº. 39.

[12] São Josemaria, Amigos de Deus, nº.62

[13] Cfr. São Josemaria, Amigos de Deus, nº.10

[14] 1Cor 15, 28.

[15] Cfr. Mt 25, 14-28.

[16] São Josemaria, Amigos de Deus, nº. 81.

[17] Santo Agostinho, De Civitate Dei, l. 19, c. 3.

[18] São Josemaria, Caminho, nº. 80.

Foto: Quintin Gellar (pexels)