No âmbito existencial, que é o campo da ação e, portanto, da formação do eu e da pessoa, o primeiro princípio é a vontade, cujo núcleo dinâmico é a liberdade. Na energia primária da vontade está o próprio destino dos indivíduos, dos povos, e o sentido último da história.
A vontade move, ordena ou desordena - exalta ou deprime - todas as forças do homem: não só os sentidos e as paixões, mas também a inteligência e as faculdades superiores. E isto porque a vontade se move a si própria; quer porque quer querer e assim emboca na liberdade.
O pensamento moderno exaltou a liberdade como fundamento de si própria e como constitutivo irrevogável do homem. Por este caminho, a liberdade identificou-se com a espontaneidade da razão, ou do sentimento, ou da vontade de poder. E, com tensão alternante, submeteu o mundo ocidental a regimes totalitários ou ao caos de movimentos anarquistas. Faltando-lhe um fundamento transcendente, a liberdade constituiu-se em objecto e fim de si própria: uma liberdade vazia, uma liberdade da liberdade. Convertida em lei para si própria, desnaturaliza-se em liberdade dos instintos ou em tirania da razão absoluta, que se manifesta depois nos caprichos do tirano.
Com uma audácia que transcende a unilateralidade tanto do anarquismo como do totalitarismo, Tomás de Aquino afirmou que o homem é causa de si próprio, porque na ordem moral chega a ser aquele que quer ser, aquele que com a sua liberdade escolhe ser. Sem se deter na bondade exterior – e esta é a conclusão existencial decisiva na formação da pessoa - vê na bondade moral interior, que depende da liberdade, a perfeição do homem como sujeito.
O paradoxo radica em que o homem, criado livre para viver em harmonia com Deus pelo amor e pela obediência, usou – abusou – da sua liberdade para desobedecer ao Criador. Então a liberdade, separada de Deus, é adulterada, de cima, pela soberba, e, de baixo, pelas paixões. Deste modo, o homem, embora permaneça formalmente livre, no período existencial é "escravo do pecado", e a sua esperança de liberdade encontra-se no domínio das paixões e na vitória sobre o orgulho. "A verdade vos fará livres", promete Jesus. Só é verdadeira e completamente livre o cristão que é totalmente dócil à acção da graça. Assim, somos livres quando nos tornamos "servos de Cristo". É um paradoxo: o mais profundo da existência; mas no cristianismo tudo é paradoxal. A verdadeira liberdade do homem está na verdadeira obediência a Deus.
Esta mensagem evangélica é particularmente entendida na Igreja de Deus pelos fundadores, e brilha com uma luz especial nos ensinamentos de Josemaria Escrivá, como seguidamente veremos.
Antes de Cristo e fora do Cristianismo, a liberdade autêntica era desconhecida, como reconhece o próprio Hegel. Mas o grande filósofo erra profundamente quando situa a liberdade cristã ao nível da razão humana absoluta, e vê a sua realização no cumprimento da história universal suficiente em si mesma. Em contraposição, levantou-se a voz de Kierkegaard, com o seu projeto de recuperar a liberdade cristã, que tem Deus como fundamento. Certamente, Hegel não previa o aparecimento, a um século de distância, de Adolfo Hitler; mas não foi mera casualidade que o nacional-socialismo se apoiasse no pensamento de Hegel.
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Homem novo para os novos tempos da Igreja do futuro, Josemaria Escrivá ligado por natureza – e também por luz sobrenatural - à noção original de liberdade cristã. Imerso no anúncio evangélico da liberdade entendida como libertação do pecado, confia no crente em Cristo e, após séculos de espiritualidades cristãs que se apoiavam na prioridade da obediência, inverte a situação e faz da obediência uma atitude e consequência da liberdade. Como um fruto da sua flor, ou mais profundamente, da sua raiz.
Os seus ensinamentos intensificam-se e tornam-se cada vez mais claros com a passagem dos anos: "Sou muito amigo da liberdade, e precisamente por isso quero tanto a essa virtude cristã (a obediência). Devemos sentir-nos filhos de Deus, e viver com empenho de cumprir a vontade de nosso Pai. Realizar as coisas conforme o querer de Deus, porque nos dá na gana, que é a razão mais sobrenatural". E, como fazendo um balanço da sua vida, confessa com frontalidade: "O espírito do Opus Dei, que tenho procurado praticar e ensinar desde há mais de trinta e cinco anos, fez-me compreender e amar a liberdade pessoal". Vemos aqui uma consonância plena com aquela afirmação de Tomás de Aquino: "Quanto maior caridade se possui, de maior liberdade se dispõe".
Do interior desta experiência vivida – o primado existencial da liberdade do cristão como pressuposto para a sua participação na salvação mediante a graça de Cristo -, Josemaria Escrivá, como divisa de um estilo novo, mas antigo como a primeira apresentação do cristianismo ao mundo, afirma: "Deus não quer escravos, mas filhos, e respeita a nossa liberdade. A salvação continua e participamos nela. É vontade de Cristo que - segundo as palavras fortes de São Paulo- cumpramos na nossa carne, na nossa vida, o que falta à sua paixão, pro corpore eius, quod est Ecclesia, em benefício do seu corpo, que é a Igreja".
Em plena sintonia com o Concilio Vaticano II – mais ainda, poderia dizer-se que superando-o em audácia - Monsenhor Escrivá propõe, como primeiro bem a respeitar e a estimular, o empenho temporal do cristão, precisamente a liberdade pessoal. "Só se defender a liberdade individual dos outros com a consequente responsabilidade pessoal, poderá, com honradez humana e cristã, defender do mesmo modo a sua".
Esta atitude - nova na espiritualidade cristã - da prioridade essencial da liberdade, nasce em Monsenhor Escrivá, não por pretensão de originalidade ou de se adaptar ao espírito do tempo, mas de uma humilde e profunda aspiração de viver o Evangelho. Numa inspirada homilia com o sugestivo título A Liberdade, dom de Deus, de 10 de Abril de 1958, na plenitude da sua maturidade espiritual, confessa com ousadia digna dos primeiros Padres Apologistas, que a sua missão é a defesa da liberdade pessoal: "Durante ao meus anos de sacerdócio, não direi que prego, mas que grito o meu amor à liberdade pessoal"; e surpreende-o que alguns temam que isto seja um perigo para a fé.
E, antecipando-se novamente com espírito profético à mensagem do Vaticano II, mas evitando os recentes compromissos equívocos do indiferentismo religioso, proclama: "Defendo com todas as minhas forças a liberdade das consciências, que significa que não é lícito a ninguém impedir que a criatura tribute culto a Deus", e, mais adiante, "A nossa Santa Madre Igreja pronunciou-se sempre pela liberdade e recusou todos os fatalismos, antigos e menos antigos. Defendeu que cada alma é dona do seu destino, para bem ou para mal".
A homilia de Monsenhor Escrivá de 25 de Março de 1967 tem neste contexto uma expressão entre as mais arrojadas da literatura cristã de todos os tempos. "Nessa tarefa que vai realizando no mundo, Deus quis que fossemos seus cooperadores, quis correr o risco da nossa liberdade. Toca-me profundamente na alma contemplar a figura de Jesus recém-nascido em Belém. Um menino indefeso, inerme, incapaz de oferecer resistência. Deus entrega-se nas mãos dos homens, aproxima-se e desce até nós".
Intrepidez de presença cristã nos novos tempos, para uma fidelidade dinâmica à verdade divina: esta é a mensagem de Josemaria Escrivá. O segundo aniversário do seu falecimento constitui, portanto, uma ocasião de renovado encontro com os seus ensinamentos para o supremo bem do homem, libertado do pecado e da morte.