Na homilia Amar o mundo apaixonadamente – pronunciada em 8 de outubro de 1967 em Pamplona, no Campus da Universidade de Navarra – São Josemaria, remetendo-se à mensagem que vinha difundindo desde 2 de outubro de 1928, afirmou com força: “Ensinei-o constantemente com palavras da Santa Escritura: o mundo não é mau, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura dele, porque Javé o olhou e viu que era bom (cfr. Gn 1, 7 ss). Somos nós, homens, que o tornamos mau e feio, com nossos pecados e nossas infidelidades. Não duvideis, meus filhos: qualquer forma de evasão das honestas realidades diárias é para vós, homens e mulheres do mundo, coisa oposta à vontade de Deus” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 114).
Esta passagem está enraizada nas Escrituras, remontando ao relato do Gênesis onde se diz que, depois de ter criado o mundo, “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom” (2 Gn 1,31). De forma esquemática o ensinamento que ele contém pode ser estruturado da seguinte forma: 1) o mundo é bom; 2) é bom, porque foi criado; 3) não pode sair nada mau das mãos de Deus; 4) tudo o que é mau e deformado procede dos pecados e das infidelidades dos homens; 5) esta deformação e esta maldade não podem justificar a evasão para fora deste mundo; 6) além disso, nem tudo é mau, pois há muitas realidades e atividades cotidianas boas e honestas.
Amor ao mundo criado
A relação do homem com o mundo permaneceu teologicamente obscura nas culturas alheias à Revelação judaico-cristã. O mundo, submetido à lei da ananké, a um destino cego, estava abandonado a si mesmo por deuses incapazes de vencer a força do destino. A religião, ao prestar culto a uma divindade longínqua e anônima, ficava relegada ao ritualismo, graças ao qual a sociedade podia viver numa ordem que lhe trazia uma paz relativa. Não restava ao homem senão chorar sua sorte trágica e ‘divertir-se’ no sentido de Pascal, ou seja, fugir da dureza de sua condição através da caça, guerra ou de obras de arte com as quais exorcizava seu mal-estar por meio de canções.
Por sua vez, o povo da Bíblia, louvava a um Deus que se dirigia pessoalmente a eles através dos profetas, e finalmente, com a Encarnação do Verbo, tornando-se Ele mesmo presente e levando a revelação divina à plenitude. Deus se mostrava não apenas benévolo e atento ao homem, mas chegava até a dar seu Filho unigênito por amor: o “Verbo se fez carne” (Jo 1, 14) e assumiu plenamente nossa condição, indo até a morte. Tal é a realidade inaudita e revolucionária narrada pelo Evangelho. O mundo, que os pagãos acreditavam estar dominado por forças impessoais ou abandonado por deuses que habitavam no empíreo, foi visitado por seu Criador! Nada do que é humano, exceto o pecado, é estranho para Deus feito homem em Cristo. O mundo converteu-se no lugar de encontro entre o homem e Deus.
O contexto material dessa homilia de 1967 contribui para sublinhar esse sentido teológico da relação do homem com o mundo à luz da criação divina. Quando a pronunciou, São Josemaria estava celebrando a Missa num templo singular, tendo “um campus universitário como nave e a biblioteca da universidade como retábulo”. Nessa Missa, como em todas celebrava-se “o ato mais sagrado e mais transcendente” que os homens podem realizar nesta vida: a união com Deus mediante a comunhão com o Corpo e Sangue de Cristo. E isso aconteceu ao ar livre, no mundo, em meio a edifícios e lugares em que o homem trabalha.
Tendo dito – na mesma homilia – que “comungar com o Corpo e o Sangue do Senhor, vem a ser em certo sentido como que desligar-nos de nossos laços de terra e de tempo, para estar já com Deus no Céu, onde o próprio Cristo enxugará as lágrimas de nossos olhos e onde não haverá morte, nem pranto, nem grito de fadiga, porque o mundo velho já terá terminado (cfr. Ap 21, 4)”. (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 113), São Josemaria prossegue afirmando: “esta verdade tão consoladora e profunda, este significado escatológico da Eucaristia, como os teólogos costumam denominá-la, poderia, no entanto, ser mal-entendida: e o foi, sempre que se quis apresentar a existência cristã como algo somente espiritual – quero dizer, espiritualista – próprio de pessoas puras, extraordinárias que não se misturam com as coisas desprezíveis deste mundo, ou, no máximo, que as toleram como algo necessariamente justaposto ao espírito, enquanto vivemos aqui” (Ibidem).
Estas linhas transmitem uma mensagem de raiz teológica, precisa e densa. Evocam um duplo obstáculo que é preciso evitar: 1) pensar que a vida espiritual só pode ser desenvolvida fora do mundo, rejeitado como mau ou, pelo menos, como daninho ou pouco próprio para o desenvolvimento da espiritualidade; 2) decidir-se a viver no mundo, renunciando a toda vida espiritual, contentando-se com o imediato. Tanto num caso como no outro, afirma-se uma separação radical sem união possível entre o mundo, o homem e Deus. Essas duas atitudes opostas são superadas ao considerar o mundo como criado e, em consequência, bom e amado por seu Criador.
Evita-se assim um duplo mal-entendido: a) considerar o homem como um ser lançado em um mundo fechado em si mesmo e, consequentemente, sem sentido; b) compreender o mundo exclusivamente com base na queda do pecado, sem considerar que ele foi criado por Deus, que é infinitamente bom e dotou a criação de uma bondade que se pode ser danificada, mas não destruída. E, consequentemente, o cristão deseja “informar o mundo inteiro do espírito de Jesus, colocar Cristo no âmago de todas as coisas. Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Jo 12, 32), quando for levantado ao alto sobre a terra, tudo atrairei a mim. Cristo, com a sua encarnação, com a sua vida de trabalho em Nazaré, com a sua pregação e milagres pelas terras da Judeia e da Galileia, com a sua morte na Cruz, com a sua Ressurreição, é o centro da Criação, Primogênito e Senhor de toda criatura” (É Cristo que passa, 105).
Mundo, pecado e redenção
O pecado é, sem dúvida, uma realidade e as palavras de São João permanecem irrevogáveis: “Não ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai. Porque tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida – não procede do Pai, mas do mundo. O mundo passa com as suas concupiscências, mas quem cumpre a vontade de Deus, permanece eternamente” (1 Jo 2, 15-17). Esse mundo é – comenta Santo Agostinho – o mundo de quem não conhece a Cristo nem o cristão; mais radicalmente, o mundo que “não nos conheceu porque não conheceu Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo andou por ele. Ele foi Deus encarnado sob as aparências da fraqueza humana. Por que ele não foi conhecido? Porque ele censurou todos os vícios humanos” (Comentário à 1ª Carta de São João, IV, 4).
É um erro grave tentar compreender o mundo a partir do pecado; mas também é um erro grave tentar compreendê-lo sem levar em conta a realidade do pecado e suas implicações; ou sem olhar para Cristo e sua obra redentora. Em suma, a partir de uma perspectiva cristã deve-se compreender o mundo tendo em conta ao mesmo tempo a criação, o pecado e a graça, uma vez que essas três realidades constituem a estrutura da história que se desenvolve, sob a providência amorosa de Deus, desde o começo da criação.
Vamos reproduzir a esse respeito um texto de São Josemaria, semelhante em alguns aspectos à passagem da homilia de 1967 citado no começo: “Cristo, Nosso Senhor, continua empenhado nesta semeadura de salvação dos homens e de toda a criação, deste nosso mundo, que é bom porque saiu bom das mãos de Deus. Foi a ofensa de Adão, o pecado da soberba humana, que rompeu a divina harmonia da Criação. Mas Deus Pai, quando chegou a plenitude dos tempos, enviou o seu Filho Unigênito, que, por obra do Espírito Santo, tomou carne em Maria sempre virgem para restabelecer a paz, para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem filiorum reciperemus (Gl 4, 5), fôssemos constituídos filhos de Deus, capazes de participar da intimidade divina; para que assim fosse concedido a este homem novo, a esta nova estirpe dos filhos de Deus (cfr. Rm 6, 4-5), o poder de libertar todo o universo da desordem, restaurando em Cristo todas as coisas (cfr. Ef. 1,9-10), que os reconciliou com Deus (cfr. Cl 1,20). Foi para isso que nós, os cristãos, fomos chamados, essa é a nossa tarefa apostólica e a preocupação que deve consumir a nossa alma: conseguir que o reino de Cristo se torne realidade (...). Peçamos hoje ao nosso Rei que nos faça colaborar humilde e fervorosamente no divino propósito de unir o que se quebrou, de salvar o que está perdido, de ordenar o que o homem desordenou, de levar a seu termo o que se extraviou, de reconstruir a concórdia em toda a Criação” (É Cristo que passa, 183).
Na Sagrada Escritura a palavra “mundo” e outras análogas são usadas em diversos sentidos. Às vezes indicam o universo, a totalidade do que existe; mais especificamente, a totalidade do que foi criado por Deus, já que Deus transcende o mundo. Outras vezes designam o ambiente em que o homem vive, ou diretamente a sociedade humana. Outras vezes ainda, a partir do início da literatura apocalíptica, falam do mundo sob a perspectiva da dialética entre pecado e redenção. E assim falam “deste mundo” ou do “mundo presente” para referir-se à sociedade e à história humanas enquanto marcadas pelo pecado e destinadas, portanto, a desaparecer quando vier o Messias e se instaurar o “mundo futuro”. Com Cristo, as coisas e o modo de falar mudam, porque com Ele, Verbo de Deus feito homem, o mundo futuro e definitivo já começou. Distingue-se, portanto, não entre duas etapas uma depois da outra, mas – os escritos de São Paulo ou de São João são muito claros neste sentido – entre duas realidades coexistentes ou entre os dois níveis ou dimensões da realidade, já que o mundo do pecado, embora derrotado na Cruz, não desapareceu e continua fustigando o cristão, e o mundo futuro, embora presente, ainda não se manifesta com toda a sua plenitude. A situação do cristão – e do homem em geral – é, portanto, uma situação de tensão e de luta, uma vez que, participando de alguma forma do mundo futuro ou definitivo, deve enfrentar os ataques e as dificuldades que provêm da sobrevivência do mal e do pecado. Daí a petição que Cristo dirige a Deus Pai referindo-se a seus discípulos: “Não peço que os tires do mundo, mas sim que os preserve do mal” (Jo 17, 15).
A tradição teológica refletiu amplamente sobre essa doutrina neotestamentária. Às vezes, ela o fez a partir de uma perspectiva eclesiológica e de teologia da história, considerando a distinção e as relações entre a Igreja e o mundo. As formulações a que se chegou foram numerosas e variadas, mas podemos nos limitar a dois exemplos de particular importância: na época antiga, Santo Agostinho em sua De civitate Dei, e, na época contemporânea, do Magistério, a Const. Past. Gaudium et Spes, do Concilio Vaticano II.
No terreno da teologia espiritual também se manteve o modo de falar bíblico, embora no que diz respeito ao uso do termo “mundo”, ele seja utilizado no sentido negativo, deixando em segundo plano a tensão escatológica e recorrendo à palavra “mundo” para designar direta e formalmente a sociedade humana na medida em que nela está presente o pecado; mais ainda, na medida em que, em um ou em outro grau, essa sociedade está, em suas instituições e em seus modos de pensar, impregnada pelo pecado e a ele incitando. O mundo, assim entendido, será considerado como um dos “três inimigos da alma”, ou seja, como uma das fontes principais – com a carne e o demônio – de tentações e de incitação ao pecado.
São Josemaria retoma expressamente esta terminologia em certos momentos, como nesse ponto de Caminho: “ O mundo, o demônio e a carne são uns aventureiros que, aproveitando-se da fraqueza do selvagem que trazes dentro de ti, querem que, em troca do fictício brilho de um prazer – que nada vale – lhes entregues o ouro fino e as pérolas e os brilhantes e os rubis embebidos no sangue vivo e redentor do teu Deus, que são o preço e o tesouro da tua eternidade” (Caminho, 708). E pressupõe este uso em outros lugares onde recorre à palavra “mundo” para referir-se a ambientes onde imperam atitudes e comportamentos imorais ou, pelo menos, superficiais e frívolos (cfr. por exemplo, Caminho, 185, 482, 633).
Não é esse, no entanto, o uso da palavra “mundo” que predomina nos textos de São Josemaria. Importa sublinhar, sobretudo, que o pano de fundo espiritual no qual se situam suas referências ao tema, quer em seus escritos, quer em sua pregação não é constituído por sentimentos de retraimento ou de pusilanimidade, e sim, ao contrário, de responsabilidade e de apostolado; ou seja, pelo desejo de santidade, pela decisão de se esforçar, com base na vitória sobre o pecado obtida por Cristo sobre o pecado, em santificar-se, e não de qualquer forma, mas, precisamente, santificando o mundo. Em resumo: trata-se de permanecer no mundo, na vida normal dos homens, enfrentando a tentação ou o perigo da frivolidade (“sede homens e mulheres do mundo, mas não sejais homens ou mulheres mundanos”: Caminho, 939), e dando testemunho com a própria vida de que, também no meio do mundo – no meio da rua, como São Josemaria gostava de dizer – pode-se, ainda que não faltem defeitos e quedas, procurar e alcançar, com a graça de Deus, a santidade. “’Influi tanto o ambiente!’, disseste-me. E tive que responder: - Sem dúvida. Por isso é mister que seja tal a vossa formação, que saibais levar convosco, com naturalidade, o vosso próprio ambiente, para dar o ‘vosso tom’ à sociedade em que viveis. – E então, se aprendeste esse espírito, tenho a certeza de que me dirás com o pasmo dos primeiros discípulos, ao contemplarem as primícias dos milagres que se operavam por suas mãos em nome de Cristo: ‘Influímos tanto no ambiente!’” (Caminho, 376)
Mundo, graça, santificação e consciência de sentido
A criação é boa. As infidelidades e os pecados dos homens a deformam, mas nunca poderão converter em absolutamente perverso aquilo que, tendo sido criado por Deus, é bom por natureza. A Encarnação do Verbo – a graça de Cristo que é uma nova criação – pode devolver toda a bondade ao que estava danificado, até mesmo profundamente, pelo mal. A graça é intrinsicamente boa; podemos perdê-la, mas não se corrompe e pode vencer a corrupção.
São Josemaria referiu-se à Eucaristia como a “ação mais sagrada e transcendente que nós homens podemos realizar nesta vida” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 113) E insistiu sempre na transcendência infinita de Deus: “Considera o que há de mais formoso e grande na terra..., o que apraz ao entendimento e às outras potências..., o que é recreio da carne e dos sentidos... E o mundo, e os outros mundos que brilham na noite: o Universo inteiro.
E isso, mais todas as loucuras do coração satisfeitas..., nada vale, é nada e menos que nada, ao lado deste Deus meu! – teu! – tesouro infinito, pérola preciosíssima, humilhado, feito escravo, aniquilado sob a forma de servo no curral onde quis nascer, na oficina de José, na Paixão e na morte ignominiosa..., e na loucura de Amor da Sagrada Eucaristia” (Caminho 432). Palavras que, indo do plano espiritual ao metafisico, podem levar-nos a evocar um conhecido dito de São Tomás de Aquino: “o bem da graça inclusive de uma só pessoa é maior que o bem natural de toda a criação” (S.Th., 1-2, q. 113, a. 9, ad 2).
Com a graça, que nos é comunicada com os sacramentos, e de modo particular com a Eucaristia, é introduzida no homem uma “novidade divina”, com ela “foi-nos dado um princípio novo de energia, uma raiz poderosa, enxertada no Senhor” (É Cristo que passa, 155). O fundamento da existência cristã está na Encarnação do Verbo, no fato de que Deus se fez presente no mundo assumindo uma natureza humana. Jesus Cristo, narra São João, disse aos judeus: “vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima” (Jo 8, 23). Ele afirma não ser deste mundo, e o afirma estando neste mundo. Está no mundo sem ser do mundo, não só porque nele não há nada que tenha a ver com o pecado, mas porque é Deus: ao encarnar-se Deus não passa por uma metamorfose, mas continua sendo Deus, perfeito Deus, sendo ao mesmo tempo perfeito homem, perfectus Deus, perfectus homo, segundo a expressão do símbolo Quicumque citada com frequência por São Josemaria (cfr. por exemplo, É Cristo que passa, 13).
Isto quer dizer que Deus não se confunde com o mundo, porém, ao mesmo tempo, que podemos encontrar a Deus no mundo. Que Deus, que se fez presente no mundo, não se afastou do mundo. Cristo venceu o pecado e a morte, e, ressuscitado e sentado à direita do Pai, vem ao nosso encontro atuando na Igreja e na alma. Envia-nos o Espírito Santo e comunica-nos a graça, chamando-nos à comunicação com Ele a todo momento, hoje, agora, enquanto estamos no mundo e somos do mundo, que já não é um pano de fundo escuro e opaco que impede de chegar a Deus, mas contexto e matéria de nosso encontro com Ele. A teologia católica ensina que a natureza conserva, embora obscurecida, sua bondade nativa e que o dom da graça, totalmente gratuito, mas realmente comunicado, nos leva à vida de Deus. E faz isso tanto diante daqueles que afirmam que a natureza está totalmente corrompida pelo pecado de modo que a graça não a pode curar, como daqueles que sustentam que a natureza é a tal ponto perfeita, pura e completa, que não precisa receber de Deus seu aperfeiçoamento; tanto diante daqueles que postulam o absoluto predomínio da pecabilidade e da queda, como daqueles que vivem na superficialidade e na dispersão ou daqueles que conhecem a angústia do homem de Deus, ou daqueles que vivem o drama da separação da sua causa criadora, da solidão causada pela espessura de um mundo no qual está preso.
Em plena continuidade com a tradição católica, e aprofundando nela graças às luzes recebidas de Deus a partir de 2 de outubro de 1928, o fundador do Opus Dei prega que, sem menoscabo da referência a Deus, é possível um amor apaixonado ao mundo, já que, em Cristo e com Cristo, o mundo deixou de ser causa de separação e pode se converter em âmbito e matéria do encontro com Deus. “Há um algo santo, divino, escondido nas situações mais comuns, que cabe a cada um de vós descobrir” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 114). Esse algo divino é o próprio Deus, que espera em cada momento – em cada instante, em cada atividade – uma resposta que a graça torna possível descobrir e realizar.
Qual é o lugar da existência cristã? Pergunta-se o fundador do Opus Dei na mesma homilia. E em seguida responde: “Meus filhos, onde estão vossos irmãos os homens, onde estão vossas aspirações, vosso trabalho, vossos amores, está o lugar de vosso encontro diário com Cristo. É em meio das coisas mais materiais da terra, que devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 113). E um pouco mais à frente: “Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida normal, ou não o encontraremos nunca. Posso dizer, por isso, que nossa época precisa devolver à matéria e às situações que parecem mais comuns seu nobre e original sentido, pô-las a serviço do Reino de Deus, espiritualizá-las, fazendo delas meio e ocasião de nosso encontro contínuo com Jesus Cristo” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 114).
São Josemaria manifesta de muitos modos essa superação das propostas que, postulando uma absoluta heterogeneidade entre Deus e o mundo, decretam como impossível a união da criatura com seu Criador e Redentor. Por exemplo, em sua afirmação de que Marta e Maria, ação e contemplação, podem se harmonizar em virtude do vínculo que une o homem com Deus em Cristo, o Filho de Deus feito homem para que possamos nos tornar filhos de Deus. A realidade da filiação divina do cristão concilia Marta ativa com Maria contemplativa, a terra com o céu. E faz isso em virtude de uma espiritualidade encarnada no cotidiano. Nem estar-fechado-no-mundo, confinado na subjetividade nem estar-fora-do-mundo, separado do acontecer, mas estar no mundo estando ao mesmo tempo em Deus, atuar no mundo e saber-se amado por Deus e referido a Ele. “Devemos ter presente – escreve São Josemaria – a importância santificadora do trabalho e sentir a necessidade de compreender a todos para servir a todos, sabendo que somos filhos do Pai Nosso que está nos céus”, até unir “de uma forma que acaba por ser conatural, a vida contemplativa com a ativa” (Carta 1, 24/03/1930, n. 10; cfr. Amigos de Deus, 67, 149, 238, 296, 308-309, 316).
Divinizado pela graça, abrindo completamente a sua liberdade ao amor que vem de Deus, o homem santifica o mundo, de modo que em seu coração se unam o céu e a terra, e a vida inteira acabe por estar sob o sinal de uma unidade que deriva de Deus. Daí que São Josemaria proclame: “Não pode haver uma vida dupla, não podemos ser como que esquizofrênicos, se queremos ser cristãos: há uma única vida, feita de carne e espírito, e é essa que tem que ser – na alma e no corpo – santa e cheia de Deus: a esse Deus invisível nós o encontramos nas coisas mais visíveis e materiais” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 114).
Parte do pensamento moderno considerou o mundo, como sendo dobrado sobre si mesmo e isolado como um espaço fechado, ou pelo contrário, como uma abertura infinita na linha de um tempo sem fim. Tanto num caso como no outro, o homem submetido ao “destino”, ou livre para “projetar” uma existência que se fecha sobre si mesma, encontra-se sozinho, abandonado às suas forças. Existir no mundo reduz-se então a atuar, a trabalhar e a satisfazer as necessidades que o existir implica. A vida tem como limite o mundo que nos rodeia com tudo o que contém: desde as realidades mais comuns, utensílios, alimentos, etc., até os grandes espaços e os grandes abismos, tudo fica incluído numa falta de sentido. Vive-se para vier, come-se para continuar vivendo, sem finalidade, sem interioridade, sem um porquê. Tudo remete ao mero fato de existir ou a um desejo de existir que, em última análise, se identifica com a necessidade.
É grande o contraste entre a visão segundo a qual o homem foi “lançado” a um mundo sem sentido, e a concepção cristã do mundo como realidade criada por um Deus ao mesmo tempo onipotente e que ama, Criador e Pai. Para o cristão o mundo não é o horizonte intransponível de uma existência humana fechada à transcendência, mas caminho que, em virtude da graça de Cristo, pode levar à união com Deus.
À luz da fé cristã, da verdade exaltante e consoladora da filiação divina, o homem compreende a si mesmo como criatura chamada a santificar-se no mundo, santificando o mundo. O martelo remete, por um lado, ao prego, por outro, ao cabo, e o cabo à mão, que por sua vez remete à inteligência e à vontade. E a Deus, desde que, ao procurar a perfeição da própria tarefa, a pessoa procure a gloria divina, o amor e o serviço. “Asseguro-vos, meus filhos, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, aquilo transborda da transcendência de Deus. Por isso vos repeti, com um repetido martelar que a vocação cristã consiste em fazer endecassílabos da prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não, onde de verdade se unem é em vossos corações, quando viveis santamente a vida diária...” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 116)
Hervê PASQUA