O espírito da juventude em São Josemaria

O período fundacional do Opus Dei coincide em parte com uma fase histórica em que as novas gerações passam à vanguarda. O que concorda providencialmente com a preocupação que São Josemaria tem com a formação da juventude e, em especial, com a participação dos próprios jovens no amadurecimento dos seus contemporâneos.

Entre os fenômenos mais característicos e menos estudados do século XX — em que decorre toda a vida de São Josemaria — é de destacar o novo papel cultural e social que a juventude desempenha e assume.

Em linhas gerais, pode dizer-se que os jovens chegam a adquirir nesse século um caráter paradigmático, desconhecido até então. E o que se revela ainda mais insólito neste processo é que está associado a um ano e até um mês de referência: Maio de 1968.

O movimento que se situa em tais datas apresenta uma índole revolucionária, de modo que até costumamos referir-nos também a ele como a "revolução estudantil de 68". O estranho é que se trata de uma "revolução atrasada", que acontece quando a época revolucionária já chegara ao fim. E, ao mesmo tempo, pode notar-se o paradoxo — referido com lucidez por Fernando Inciarte — de que nalguns dos seus aspectos (o sexual, sobretudo) se trata da única revolução que corresponde ao modelo genuinamente marxista, segundo o qual se trata de uma mutação no tecido técnico-científico (estrutura) que dá origem a uma mudança drástica nas relações sociais (superestrutura).

Segundo Hannah Arendt, a ideia de revolução é tipicamente moderna, porque responde a um modelo linear e progressivo do tempo que só chega a penetrar na consciência europeia nos começos do Iluminismo. Mas também na época clássica, quando o esquema temporal apresentava um caráter circular, podem ver-se algumas expressões que aparecerão séculos mais tarde com significados gerais intrinsecamente revolucionários. E isto é, surpreendentemente, mais válido para Roma do que para a Grécia. Trata-se, sobretudo, da ininterrupta presença dos jovens (os neoi) na esfera pública, com todas as mudanças de mentalidade que tal irrupção acarreta. Contudo, a própria concepção cíclica do devir temporal dá oportunidade para que as novidades que a juventude apresenta sejam previsíveis e repetitivas. A juventude é para os clássicos uma espécie de doença — caracterizada pela imaturidade e pela falta de experiência — que a própria passagem do tempo que a provoca acaba por curar.

Somente a novidade associada à moderna ideia de revolução implica uma inovação radical, vinculada à originalidade e emergência que se associam com o futuro. Assim como para Platão o ótimo se encontrava sempre no princípio, agora o futuro é que é a época do melhor, e os seus protagonistas são precisamente os jovens. Não é só o tempo passado que é obsoleto, mas também até o presente já nasce velho, porque é mais um filho póstumo do pretérito do que um gérmen do futuro. Se bem que o início de tal avaliação modernista se possa já detectar no Romantismo, a concepção tradicional continua a ser sociologicamente válida em muitos aspectos até, por assim dizer, meados do século XX. A partir dessa época, tais noções gerais do historicismo voltado para o pretérito serão destronadas pelo futurismo de Heidegger, em quem a primazia da preposição 'desde' é substituída pela superioridade da preposição 'para'. Se o fim desta projeção para o futuro não era para Martin Heidegger outro senão a morte (o Dasein como Sein zum Tode), Herbert Marcuse, o pensador que mais diretamente influi na revolução de 68, afirma que a meta é o final da utopia, não no sentido do seu desaparecimento ou fim, mas na sua efetiva realização e, portanto, na suspensão do seu caráter utópico.

Na linha marxista mais clássica, nos anos setenta observa-se que a utopia se realizará pela abundância dos bens de consumo, de modo que já não faz falta o domínio do homem pelo homem, substituído agora pelo domínio que o homem exerce sobre a natureza. Estamos, portanto, face ao consumismo hedonista, unido à permissividade sexual facilitada pela difusão dos meios anticonceptivos e a crise da formação ética em muitos centros educativos. Esta última é provocada pela perda de autoridade de que gozavam as gerações maduras, as quais se consideram incapazes, pela sua própria mentalidade, de estabelecer a ligação com as novas tendências que apontam para um futuro totalmente novo.

Se estas linhas de pensamento continuam agressivamente presentes até os dias de hoje, por que constitui um lugar comum a ideia de que "o Maio de 68 fracassou"? A resposta a esta interrogação aponta para o fato de se esperar de uma revolução cujo desenvolvimento e desenlace foi completamente atípico, o mesmo que se havia verificado nas revoluções convencionais. São estas e não aquela as que realmente fracassaram, o que é especialmente certo para o caso da Revolução Francesa, à qual se pode aplicar plenamente o axioma de que a revolução devora os seus próprios filhos, ainda que talvez fosse mais exato dizer que devora os seus próprios pais. Em troca, o Maio de 68 opera uma profunda mudança de mentalidade que perdura reforçada até os nossos dias. Os que participavam naquelas jornadas de protesto não tinham de modo algum a intenção de mudar a política e a economia, mas sim a pretensão de colocar a política e a economia no lugar que lhes compete, e abrir caminho a um modo mais livre e espontâneo de viver a própria existência. Começava a aparecer um aspecto da cultura pós-moderna que por vezes se denomina de "nova sensibilidade". Naturalmente, esta mudança de fundo era entendida de maneira muito diferente pelos seus diversos protagonistas, e alguns de nós pensamos até ao dia de hoje que as tendências que prevaleceram não foram precisamente as mais positivas do ponto de vista cristão. Mas não é propósito desta comunicação desenvolver um juízo de tal tipo.


O que aqui nos interessa realçar é que o período fundacional do Opus Dei, que decorreu entre 1928 e 1975, coincide — ao menos em boa parte — com uma fase histórica em que as novas gerações passam a ir à vanguarda da atividade social e cultural. (Recorde-se, por exemplo, a influência significativa e equívoca do Jugendbewegung). O que coincide providencialmente com a especialíssima preocupação que São Josemaria tem com a formação da juventude e, em especial, com a participação dos próprios jovens no amadurecimento cristão dos seus contemporâneos. Como em muitas outras facetas do espírito do Opus Dei, tais noções gerais não correspondem, de modo algum, a um oportunismo histórico, já que começam muito antes que o mencionado fenômeno se tivesse manifestado às claras e permanecesse sem variações substanciais até ao momento presente, quando — apesar da sobrevivência virtual daquelas mutações — são poucos os que atualmente guardam memória delas.

Por outro lado, já em entrevista concedida em 1967 a uma revista universitária, São Josemaria prevenia os estudantes quanto às limitações de uma inquietação superficial pela solidariedade social e dos riscos que acarreta a politização da Universidade: “Muitas vezes, esta solidariedade esgota-se em manifestações orais ou escritas, quando não em algazarras estéreis ou prejudiciais. A solidariedade, meço-a eu por obras de serviço: conheço milhares de casos de estudantes de muitos países, que renunciaram ao seu pequeno mundo privado, dando-se aos outros mediante um trabalho profissional que procuram fazer com perfeição humana, em obras de ensino, de assistência, sociais, etc., com espírito sempre jovem e cheio de alegria”[1]. Especial atualidade apresentavam em Espanha dos fins dos anos sessenta estas suas palavras: “Se num país não existisse a mínima liberdade política talvez se produzisse uma desnaturalização tal da Universidade, que, deixando de ser a casa comum, viesse a converter-se em campo de batalha de facções opostas.

Penso, não obstante, que seria preferível dedicar esses anos a uma preparação séria, à formação de uma mentalidade social, para aqueles que mais tarde houvessem de mandar — os que agora estudam — não caíssem nessa aversão à liberdade pessoal que é verdadeiramente patológica. Se a Universidade se converte no lugar onde se debatem e se decidem problemas políticos concretos, é fácil que se perca a serenidade acadêmica e que os estudantes se formem num espírito de partidarismo; e assim, a Universidade e o país arrastarão sempre esse mal crônico que é o totalitarismo, seja qual for o seu sinal”[2].

A preocupação de Josemaria Escrivá pela formação cristã da juventude é uma resposta decisiva à sua consciência fundacional do chamamento universal à santidade, sem distinção de profissões, condições sociais ou idades.

A preocupação de Josemaria Escrivá pela formação cristã da juventude é uma resposta decisiva à sua consciência fundacional do chamamento universal à santidade, sem distinção de profissões, condições sociais ou idades. Não considera que a idade juvenil seja exclusivamente uma época de preparação para uma fase de maturidade na qual se deverão exercitar as virtudes humanas e sobrenaturais. É preciso praticar tais virtudes já, desde que o uso da razão começa a permitir um tomar as rédeas da própria existência. A chamada à santidade pessoal começa a encontrar eco nos nossos ouvidos desde a adolescência, inclusive desde a infância. Quando me aproximei pela primeira vez da sede de um Centro do Opus Dei, aos treze ou catorze anos, ouvi pela primeira vez falar de santidade cristã, não como um ideal que alguns — muito poucos — chegariam a alcançar na sua maturidade ou velhice, mas como uma exigência peremptória que se apresentava a mim mesmo quando mal começava a considerar que já não era exatamente uma criança, ainda que quase todos os que me rodeavam me tratassem como alguém sem responsabilidades especiais.

Comecei a adquirir pouco a pouco consciência de que os cristãos leigos têm uma responsabilidade na vida pública dos respectivos países.

Foi então, para dar um exemplo, quando um rapaz da minha idade me falou de que fazia todos os dias quinze minutos de oração mental — seguindo de perto os Evangelhos ou alguns pontos de Caminho — e me animou a praticar eu mesmo esse piedoso costume, não por tradição, pelo menos esquecida entre os jovens naqueles anos. Estávamos nos meados dos anos cinquenta. Devido ao regime autoritário em que a Espanha vivia naquele tempo, não era frequente que se falasse em público — nem sequer em pequenos grupos — de questões políticas, ideológicas ou simplesmente culturais. Entusiasmou-me que naquele pequeno apartamento da Rua Padilla, quase na esquina com a Serrano, no coração do bairro madrileno de Salamanca, se comentassem com toda a liberdade e respeito pelas opiniões pessoais alguns temas — como, por exemplo, a então nascente Comunidade Europeia e a possível integração de Espanha — dos quais eu nada sabia. De um ponto de vista quase exclusivamente devocional do cristianismo, bem enraizado no ambiente da minha família e do colégio, comecei a aproximar-me das suas dimensões históricas e sociais, e muito especialmente a adquirir pouco a pouco consciência de que os cristãos leigos têm uma responsabilidade na vida pública dos respectivos países. Passado quase meio século desde essa época, posso afirmar que aquelas sementes que então recebia com curiosidade surpreendida tiveram uma importância chave na formação da minha personalidade.

Ainda recordo naquele ambiente de grande nível intelectual alguns comentários prudentes acerca dos incidentes universitários que ocorreram em 1956, e que podem considerar-se como os primeiros avisos da explosão de incidentes estudantis que ocorreriam na segunda metade dos anos sessenta e primeira dos anos setenta, em conexão com a problemática menos crispadamente política de outros países europeus e americanos, a que fiz inicialmente referência. Sem pedantismo nem pretensões dogmáticas, jovens que contavam poucos anos mais que eu, participavam — não sem risco pessoal — naqueles acontecimentos, e expunham pontos de vista sociais que me surpreendiam pela sua maturidade e ponderação.

Era um trabalho apostólico e cultural dirigido aos jovens e dirigido por jovens, e evidentemente que não eram manipulados por pessoas mais velhas, como se representassem um papel que, no fundo, todos conheciam que era puramente decorativo, como tinha sucedido durante as minhas experiências anteriores em alguns movimentos católicos.

Poderia sintetizar a vivência do meu primeiro encontro com o trabalho apostólico do Opus Dei, como o encontro com um ambiente em que os próprios jovens levavam a sério a si próprios.

Em poucas palavras, poderia sintetizar a vivência do meu primeiro encontro com o trabalho apostólico do Opus Dei, na segunda metade dos anos cinquenta, como o encontro com um ambiente em que os próprios jovens levavam a sério a si próprios.

Era isto um acaso? De modo algum, ainda que só chegasse a compreender os motivos fundamentais anos mais tarde.

O grande e especial valor que São Josemaria dava aos jovens não era, de modo algum, oportunista ou táctico. Não pretendia com ele ganhar a nossa simpatia. De fato, boa parte dos rapazes que entravam em contacto com o trabalho apostólico do Opus Dei durante aqueles anos — como continua a acontecer até aos dias de hoje — sentia que lhes era exigido muito porque os situava muito claramente face às suas próprias obrigações pessoais e sociais, e alguns deles não repetiam a experiência de voltar a um centro do Opus Dei. Não podiam aguentar o peso da responsabilidade que se lhes lançava sobre os ombros logo que entravam em contacto com os meios de formação do Opus Dei. Pediam a eles, nem mais nem menos, que fossem eles mesmos a procurar o encontro com Deus através de um relacionamento pessoal com Jesus Cristo na oração e nos sacramentos; que não considerassem o estudo ou o trabalho como uma imposição penosa que vinha de fora; e que se convertessem em apóstolos dos seus próprios amigos e companheiros. E, sobretudo, que o aceitar ou não esse conjunto de desafios dependia exclusivamente da sua própria liberdade; que ninguém os ia pressionar para os assumirem; e que eram eles próprios que saíam perdendo se não conseguiam dar valor ao tesouro de formação completa que, sem pressão alguma, lhes era oferecido. "Realidade em demasia" — diria Eliot — para uma juventude superprotegida e, no fundo, infantilizada, devido ao ambiente que a rodeava.

Mas tal exigência — que excluía radicalmente condescendências e mimos — era apenas a outra face de uma capacidade de atração cujo cerne residia numa dimensão sobrenatural que não excluía, mas que implicava, um entusiasmo humano tão brilhante que não seria exagerado aplicar-lhe o termo "fascínio".

A atitude que melhor pode definir esse forte atrativo é uma expressão de Teresa de Ávila que se liga, também, a essa componente juvenil a que me refiro: "arriscar a vida".

Ainda o Opus Dei estava apenas a completar os seus primeiros trinta anos, São Josemaria, que vivia entre nós como Santa Teresa quando convidava a juventude do seu tempo a empreender um caminho incerto e emocionante, insistia em algo óbvio para quem tivesse conhecimentos históricos básicos: que três décadas são muito pouco tempo para uma instituição que medirá a sua vida por séculos, melhor, que durará enquanto houver homens sobre a terra, segundo a profunda fé no caráter sobrenatural da empresa que São Josemaria nos incutia com uma empatia tão espontânea como convincente. Estávamos, portanto, nos começos: éramos os primeiros daquela reação em cadeia a que tínhamos que comunicar um garbo humano que acompanhasse o garbo sobrenatural que na sua essência ele possuía.

A primeira coisa que chamava a atenção a quem cruzava a porta de Padilla, era uma espécie de alegria contida, uma alegria silenciosa que encontrava um eco perceptível nos sorrisos abertos com que o recém-chegado se encontrava.

Josemaria Escrivá tinha então uns cinquenta e cinco anos e entre os que já eram fiéis do Opus Dei, os que o seriam pouco depois, predominavam os que ainda não tinham completado os vinte e cinco. Esta combinação de idades traduzia-se num ambiente juvenil inconfundível, na sede dos centros do Opus Dei, e em nítido contraste com a atmosfera levemente tristonha e acanhada que predominava nas sedes dos movimentos apostólicos da época. A primeira coisa que chamava a atenção a quem cruzava a porta de Padilla, 1, primeiro esquerdo, era uma espécie de alegria contida, uma alegria silenciosa que encontrava um eco perceptível nos sorrisos abertos com que o recém-chegado se encontrava nos corredores, e na serenidade de quem trabalhava na sala de estudo ou rezava no pequeno oratório daquele apartamento, instalado com móveis tão modernos como sóbrios, segundo o estilo que hoje chamaríamos "minimalista" e que contrastava com o horror vacui da decoração típica dos apartamentos burgueses do bairro de Salamanca.


Nós demorávamos semanas, e mesmo meses, em começar a captar as profundas raízes dessa alegria, que – segundo Caminho, o livro essencial que nos guiava naqueles primeiros passos – “não é essa que poderíamos chamar fisiológica, de animal são, mas uma outra, sobrenatural, que procede de abandonar tudo e te abandonares a ti mesmo nos braços amorosos do nosso Pai-Deus”[3]. Também a consciência da filiação divina que se reflete numa atitude — que vinha também em Caminho — e que manifesta o selo inconfundível da autenticidade e da admiração: “‘Padre’ — dizia-me aquele rapagão (que será feito dele?), bom estudante da Central — ‘estava pensando no que o senhor me falou..., que sou filho de Deus! E me surpreendi, pela rua, de corpo emproado e soberbo por dentro... Filho de Deus!’. Aconselhei-o, com segura consciência, a fomentar a soberba[4].

O estilo deste pequeno livro a que me refiro, Caminho, é por si só uma das melhores mostras desse ar novo que se respirava nos primeiros centros do Opus Dei. Os que então o líamos e meditávamos naquele ambiente não reparávamos no fato de que o "mundo vital" que reflete este clássico da espiritualidade é majoritariamente o estudantil e universitário. Suponho que era para nós evidente que se tratava de um livro dirigido precisamente a nós, que então frequentávamos as aulas da Universidade Central, chamada já então Universidade de Madrid. Por isso, pouco depois, não deixou de me surpreender o interesse com que a minha mãe, uma dona de casa culta mas não propriamente intelectual, lia esse mesmo livro, e que a própria cozinheira asturiana — Azucena — que trabalhava em casa dos meus pais demonstrava uma vontade insólita de aprender a ler para conseguir um conhecimento direto de Caminho! Por certo que, numa clara demonstração do que Tomás de Aquino chama "conhecimento por conaturalidade", Azucena explicava-me os pontos que ela acabava de ler pela primeira vez com uma profundidade e uma perspicácia que foram decisivas quando me decidi a pedir a admissão no Opus Dei.

Vezes sem conta, ao longo destes anos, pude verificar que este espírito de juventude não é circunstancial nem conjuntural no temperamento humano e cristão de São Josemaria. Do ponto de vista bibliográfico, bastaria remetermo-nos a duas das obras publicadas postumamente — Sulco e Forja — cujo ritmo e tonalidade (com peculiaridades próprias) são muito semelhantes aos de Caminho. Para não falar do tratamento profundo e intimista do espírito de infância que fica patente em Santo Rosário e, em todos os seus escritos, da consideração intensa e pormenorizada da santificação das coisas pequenas no trabalho profissional corrente.

Mas tal espírito passa da letra para a vida e confere à própria experiência histórica do Opus Dei um estilo evangélico que resulta evidente para nós que o vivemos de perto. O conteúdo da pregação de São Josemaria centrava-se quase sempre em encenar com extraordinária plasticidade e vivacidade cenas da vida de Jesus. Mas o que dava àquela catequese — informal, contínua — realismo e verossimilhança incomparáveis era precisamente que nela se revivia o mesmo que se contava: um grupo de jovens rodeava o mestre pouco mais velho que eles, que lhes falava com simplicidade e autoridade do Reino de Deus e do papel que a eles lhes cabia na sua realização na terra. “O Senhor, lê-se em Sulco, depois de enviar os seus discípulos a pregar, reúne-os na volta e convida-os a ir com Ele a um lugar solitário para descansar... Que coisa não lhes perguntaria e contaria Jesus! Pois bem..., o Evangelho continua a ser atual.”[5].

A vida do jovem mestre e dos seus discípulos refletia-se até nos pormenores de uma pobreza extrema dignamente assumida e nunca proclamada, ao ponto de, por várias vezes, também lhes suceder não terem onde reclinar a cabeça quando a noite chegava. E não há duvida que um dos motivos das perseguições que acompanharam a quase totalidade da vida de São Josemaria se apoiava na sua respeitosa valentia quando era preciso enfrentar os costumes eclesiásticos obsoletos e demasiado humanos que, como em outros tempos, provocavam injustiças e discriminações.

A atitude inovadora de São Josemaria é radical. Não precisamente porque tente ser original, mas porque procura sempre o genuíno, o original, aquela raiz vital que confere solidez e sentido aos costumes e estruturas.

A atitude inovadora de São Josemaria é radical. Não precisamente porque tente ser original com o intuito de mudar os usos em voga, mas porque procura sempre o genuíno, o original, aquela raiz vital que confere solidez e sentido aos costumes e estruturas. Por isso as suas palavras soam sempre a novidade. Não fala de coisas sabidas, de coisas ouvidas a outros e cansativamente repetidas. E deseja explicitamente levar esse modo de se exprimir aos jovens que participam no trabalho apostólico: “Procuremos conseguir que, na boca dos jovens, esteja a extraordinária palavra sobrenatural que remove, que desafia, que é a expressão de uma disposição vital comprometida: nunca a repetição grotesca e gasta de frases e palavras, que não podem ser de Deus”[6]. Espontaneidade no falar que se traduz também em liberdade ao atuar: “Não quis nunca atar-vos, mas sim, pelo contrário, procurei que atueis com grande liberdade. Na vossa ação apostólica deveis ter iniciativa, dentro dos limites amplíssimos que o nosso espírito aponta, para encontrar — em cada lugar, em cada ambiente e em cada tempo — as atividades que melhor se adaptem às circunstâncias dos jovens com quem se lida”[7].

Nada de inércia. Na dinâmica do espírito não vigora essa lei física que exprime a monotonia inútil da matéria. Aqui tudo é novidade: a vida começa a cada passo, sai continuamente do previsível graças à função inovadora do pensamento, e brilha de novo em virtude da modulada autossuficiência da vontade. Daí que o lema de São Josemaria para cada ano que começa seja um incisivo "luta nova" e não um diluído "vida nova". Em cada instante dessa batalha interior, é preciso dizer para consigo: Nunc coepi!, agora começo. E é muito revelador que se alegrasse ao saber que em português se chame "os novos" aos jovens.

Cada momento presente concentra o peso das recordações e abre-se às expectativas dos projetos existenciais. Daí que a juventude não seja uma espécie de tempo de espera, o resultado daquilo que as circunstâncias e o destino nos virá a apresentar. É uma época densa, cheia de sentido em si própria e carregada de potencialidades que apontam para o futuro. E, se se vive a presença de Deus, o espírito da juventude acaba por colorir todo o curso da vida terrena, já que — de uma perspectiva de eternidade — estamos sempre começando, e a batalha decisiva é sempre a última, como São Josemaria gostava de sublinhar. De maneira que, do ponto de vista teológico, sempre tem sentido invocar o Altíssimo, com as palavras do Salmo 42, como "o Deus que alegra a minha juventude", incluídas antigamente no início da Missa.

Este sentido do recomeço, inconfundivelmente bíblico e especificamente cristão, atravessa todo o espírito do Opus Dei e encontra-se, sem dúvida, na base da sua historicamente insólita valorização da juventude — do trabalho, da arte, do esporte — e inclusive da infância e do jogo (ludens in orbe terrarum). O próprio Fundador, referindo-se à juventude das pessoas do Opus Dei que — mal chegada a maioridade — enviava a começar o trabalho em cidades e países costumava dizer que ‘Deus fez a Obra brincando com crianças’.

Como alguns teólogos já afirmaram, estamos perante uma espiritualidade batismal, para a qual os sacramentos da iniciação cristã contêm em si o gérmen do chamamento divino — primitivo e universal — à santidade no meio do mundo, seja qual for a idade ou a capacidade de discernimento racional da pessoa em cada momento da sua vida. (Sob este ponto de vista não se deviam colocar restrições ou dúvidas em geral sobre a canonização de crianças ou deficientes psíquicos com o uso da razão, chamados — do mesmo modo que qualquer outro fiel — à plenitude da vida cristã. Felizmente, a Santa Sé tem dado recentemente passos positivos em tal sentido).

De um ponto de vista filosófico, o ambiente conceptual em que se inscreve esta visão da vida cristã é o da metafísica criacionista, da qual se exclui tanto a inclinação para certa memória ontológica em que o passado continua latente no presente, como é o caso da dialética hegeliana, como a crispada descontinuidade da "criação contínua" de sinal cartesiano. Adapta-se, em troca, sem violência à visão tomista do ser como ato emergente do posicionamento do ente concreto.

As repercussões funcionais desta valorização positiva do espírito da juventude consideram-se em muitos aspectos da vida diária e da atividade apostólica dos fiéis do Opus Dei. É evidente que o trabalho com a juventude — que São Josemaria quis pôr sob o patrocínio do Arcanjo São Rafael — apresenta um caráter prioritário para todos os que pertencem à Prelazia, independentemente da sua idade, estado civil e profissão. E é assim que, já a 9 de Janeiro de 1935, São Josemaria recomendava a todas e a todos que, “vendo em vossas mãos essa juventude, esperança da Obra, entendereis a necessidade de vos sacrificardes com academias e residências, para conseguir, com gente apta, o desenvolvimento da Obra que Jesus nos pôs em nossas mãos”[8]. E como nos poucos anos de existência do Opus Dei, até então decorridos, já se tinha dado conta das dificuldades extraordinárias que — por motivos externos — este trabalho com a juventude podia apresentar, acrescenta logo a seguir: “Trabalhai, cheios de esperança: Plantai, regai, confiando em que Ele, Deus, dá o incremento, (I Cor. III, 7). E, quando o desalento surgir, se o Senhor permitir essa tentação; perante os fatos aparentemente adversos; ao considerar, em alguns casos, a ineficácia dos vossos trabalhos apostólicos de formação; se alguém, como Tobias, pai, vos perguntar: ubi est spes tua?, onde está a tua esperança?, levantando os olhos sobre a miséria desta vida, que não é o vosso fim, dizei-lhe com aquele varão do Antigo Testamento, forte e cheio de esperança quoniam memor fuit Domini in toto corde suo (Tob. I, 13), porque sempre se lembrou o Senhor e o amou de todo o coração: filii sanctorum sumus, et vitam illam expectamus, quam Deus daturus est his, qui fidem suam nunquam mutant ab eo somos filhos de santos, e esperamos aquela vida que Deus há-de dar a quem nunca abandonou a sua fé n'Ele (Tob. II, 18)”[9]. Em caso algum, se deve descuidar esse trabalho de formação integral dos jovens.

Se, na vida de uma pessoa do Opus Dei, a tarefa apostólica com a juventude nunca termina, tampouco pode dar por concluída a sua própria formação, quer seja no campo profissional e cultural, quer no campo teológico e de aprofundamento no próprio espírito do Opus Dei, no qual — por sua profundidade sobrenatural e humana — sempre se podem descobrir novos matizes e aspectos.

Segundo o Fundador do Opus Dei, ter o espírito da juventude não equivale ao lugar comum "ser jovem de espírito". Para São Josemaria o espírito da juventude consiste em exercitar sempre uma generosidade inconformista.

Em conclusão, segundo o Fundador do Opus Dei, ter o espírito da juventude não equivale ao lugar comum "ser jovem de espírito", expressão que muitas vezes esconde um resignado conformismo, que acaba por aceitar como irremediáveis os diagnósticos coincidentes de Gogol e Martin Amis, segundo os quais a idade "não acrescenta nada". Para São Josemaria o espírito da juventude consiste em exercitar sempre uma generosidade inconformista, que não adota uma postura conservadora nem para com os próprios defeitos nem para com as injustiças da sociedade que nos rodeia.

“És calculista! — Não me digas que és jovem. A juventude dá tudo quanto pode; dá-se a si própria sem medida”[10].

Alejandro Llano é Professor de Filosofia e Diretor do Departamento na Universidade de Navarra, da qual foi também Reitor. Além dos seus trabalhos sobre a Filosofia do idealismo alemão, estudou questões de Ontologia e Teoria do Conhecimento em Aristóteles e Tomás de Aquino, relacionando-as com proposições da análise lógico-linguística. Também tratou de problemas de filosofia política e teoria da cultura.

Alejandro Llano

Atas do Congresso "La grandeza de la vida corriente", Vol. VIII Juventud: construir el futuro, EDUSC, 2003


[1] Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 75.

[2] Ibidem, 77.

[3] Caminho, 659.

[4] Ibidem, 274.

[5] Sulco, 470.

[6] Carta, 24-X-1942, n. 58.

[7] Ibidem, 24-X-1942, n. 46.

[8] Instrução, 9-I-1935, n. 4.

[9] Ibidem, 9-I-1935, n. 19.

[10] Caminho, 30.