A saúde de uma sociedade está diretamente vinculada à vitalidade de suas famílias, já que é na família que se aprende primariamente o amor, a solidariedade e a responsabilidade para com os outros. A família não é apenas um núcleo particular, e sim uma realidade que, transcendendo o plano individual, tem impacto no bem comum, tornando-a insubstituível na construção de uma sociedade justa. A família atua, além disso, como elemento de resistência diante das crescentes fragmentações e crises culturais que as sociedades contemporâneas estão enfrentando.
Desde a segunda metade do século passado, deram-se passos significativos na compreensão da realidade familiar: por exemplo, hoje valorizamos mais o papel do amor pessoal e a liberdade na constituição das relações conjugais, assim como a igual dignidade e responsabilidade de mulheres e homens na família. A vida das pessoas parece, paradoxalmente, ter-se afastado de seus fundamentos antropológicos mais profundos: a vocação do ser humano para estabelecer vínculos duradouros de comunhão com os outros, saindo de si mesmo. Muitos países – especialmente no Ocidente, com uma influência mais ou menos ampla no resto do mundo – vivem sob uma espécie de “tirania da artificialidade”[1], na qual as leis tentam redefinir o que é ser família segundo as ideologias do momento. Estamos imersos no que se poderia denominar um “apagão antropológico”[2], marcado por um grande desconhecimento sobre quem é o ser humano e qual é seu destino. Bento XVI referiu-se a este fenômeno como uma grande “emergência educativa”[3], na qual se evidencia uma crescente dificuldade para transmitir às novas gerações os valores fundamentais da existência humana.
Desafios culturais da família
Ao lado desta realidade, cabe assinalar a rapidez com que, nas últimas décadas, nossas sociedades estão mudando. Com a cultura, estão mudando o modo de vida das pessoas e das famílias, que hoje são hoje muito diferentes das de vinte ou trinta anos atrás. A crescente irrupção da tecnologia nos lares está desafiando as relações familiares. Os celulares permitem que, estando fisicamente presente, se esteja ao mesmo tempo, mental e emocionalmente ausente, permanecendo cada um imerso em um mundo separado. Outra mudança importante tem a ver com a plena incorporação das mulheres ao mercado de trabalho e com a implementação das políticas de igualdade, que estão influindo não apenas nas propostas da conciliação do trabalho com a vida familiar, mas também estão transformando a própria dinâmica das famílias. As diferenças entre ser mulher e ser homem tendem, hoje, a diluir-se. Por um lado, é mais difícil entendê-las em sua vertente positiva, como elementos de uma complementariedade que enriquece a relação. Por outro lado, são uma realidade em muitos lugares as chamadas “novas paternidades”: homens que estão mais envolvidos no lar e na educação dos filhos. Ao mesmo tempo, as mães e os pais mais jovens, em geral, não têm preconceitos e estão abertos à redescoberta da verdade[4].
Todas estas mudanças culturais não vieram acompanhadas de uma mudança na maneira de ajudar as famílias, de acordo com a nova mentalidade e novas circunstâncias. O contexto atual pede uma mudança do olhar para a família. A cultura pós-moderna caracteriza-se, entre outras coisas, pela crença de que o ser humano o ser humano é autossuficiente e não necessita dos outros para alcançar a plenitude. Uma das principais consequências desta visão é a solidão, que, como recordava o Papa Bento XVI, representa uma das piores enfermidades de nosso mundo[5], porque Deus não nos fez para a solidão, mas para a comunhão. O primeiro relato da criação afirma que “não é bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18). No contexto da antropologia personalista, a noção de acompanhamento já está abrindo passagem há algumas décadas. Deus quer que nós, pessoas, alcancemos nossa plenitude no encontro com outros. Cabe afirmar que o ser humano vive “a partir de outros” o que implica ser acompanhado; e vive “para outros”, o que implica acompanhar. Nós, homens e mulheres do nosso tempo, precisamos, mais do que nunca, descobrir que estamos destinados a acompanhar e a ser acompanhados[6].
A solidão que o ser humano experimenta de um modo radical é uma solidão que também afeta agora as famílias, pelo que, do mesmo modo que afirmamos que não é bom que o homem esteja só, caberia dizer que não é bom que as famílias estejam sozinhas, e por isso precisam ser acompanhadas. O ponto de partida para compreender a importância atual do acompanhamento familiar é saber como são hoje as famílias em um contexto cultural que tende a se estender globalmente. Carlo Caffarra[7], grande incentivador de uma nova cultura da família, indicava a importância de mudar o olhar “tirando de nossos olhos a catarata das ideologias”, para redescobrir as “evidências originárias sobre a família”[8]. Remover a catarata das ideologias significa identificar os elementos da cultura pós-moderna que puseram progressivamente em dúvida os fundamentos das relações familiares.
A primeira destas “cataratas ideológicas” é uma visão pessimista do projeto familiar, visto frequentemente como um obstáculo para o sucesso pessoal e profissional, ou como um projeto com escassas probabilidades. Com esta ótica, as dificuldades e as crises não são percebidas como parte da normalidade no desenvolvimento das relações pessoais, e sim como patologias ou fracassos. As dificuldades, que no devir da vida de família e do relacionamento do casal eram enfrentadas como “crises de crescimento”, são consideradas hoje como motivos irremissíveis de ruptura. A experiência mostra, no entanto, que as principais causas pelas quais se desfazem muitas famílias não são, na realidade, irreparáveis.
Boa parte deste pessimismo antropológico provém da tendência a apresentar um “modelo ideal” de família que não existe na verdade[9]. O que há no mundo real são pessoas de carne e osso, com limitações e imperfeições, que tentam viver da melhor maneira possível sua vocação familiar[10]. É preciso, portanto, partir da compreensão sobre como são e do que necessitam as famílias reais, e recuperar um olhar otimista e esperançoso diante das dificuldades de realizar o projeto familiar, confiando na força intrínseca dos vínculos familiares e propondo modelos próximos e realistas.
Devemos também eliminar, com o pessimismo, a “catarata” do individualismo. Muitos países estão imersos num contexto social em que o ser humano se entende como independente e autossuficiente. Essa visão individualista implica o desconhecimento, tanto no plano intelectual como no vital, da verdade do homem como “ser familiar”, chamado à existência por amor e destinado a amar, através do dom de si[11]. Isso leva a uma rejeição inconsciente da relacionalidade como meio para o desenvolvimento e a felicidade das pessoas. Custa igualmente aceitar a situação de dependência e de vulnerabilidade que toda relação humana pressupõe. Não podemos ignorar que o individualismo está profundamente presente em nossos modos de vida cotidiana. Ninguém é imune à sua influência. Muitas famílias, nas quais não há esse individualismo como pressuposto teórico, foram, no entanto, adotando – talvez inconscientemente – formas de vida individualistas, profundamente contrárias à essência do amor familiar. Assim, não é raro, por exemplo, comprovar nos casais – especialmente nos mais jovens – uma dificuldade objetiva para traçar um projeto real de vida comum. Muitos encaram o fato de casar-se “a partir de sua individualidade”, como se fosse somá-lo ou acrescentá-lo ao próprio ser, que pode melhorar a vida pessoal e talvez tornar feliz, sem compreender que o casamento é um projeto “co-biográfico” através da comum entrega e aceitação dos esposos. Algumas manifestações desta mentalidade, forjada em modos de vida concretos, podem ser vistas hoje em muitos lares: mal se compartilham tempos comuns na vida em família, não se preveem e nem se valorizam as refeições em conjunto, as festas ou o cuidado dos doentes, idosos, crianças, etc., Os esposos desenvolvem frequentemente relações profissionais e sociais paralelas: não compartilham amigos, não põem em comum os bens materiais, etc. Vai assim desvirtuando-se e tornando difícil ou quase impossível uma autêntica comunidade de vida e amor. Custa, em suma, compreender a importância dos vínculos que constituem os pilares fundamentais da família[12]. Ao que ficou dito deve-se acrescentar o obstáculo da falta de ferramentas para comunicar a verdade sobre a família. Continua sendo habitual utilizar uma linguagem voluntarista para explicar o processo de amar, idioma que hoje dificilmente se compreende, já que – sobretudo os jovens – “raciocinam com os afetos” mais do que com as faculdades intelectuais[13].
O acompanhamento como estilo formativo
A urgência educativa para transmitir os valores fundamentais da existência às novas gerações[14], ao lado das atuais circunstâncias culturais, reclama uma reflexão sobre a necessidade de formar de um modo, com uma metodologia e estilo de acordo com a cultura em que vivemos que, como já dissemos, mudou significativamente nas últimas décadas. O Papa Francisco sublinhou desde o início de seu pontificado a necessidade de estar perto das famílias, de modo próximo e realista[15]. Há poucos anos, oferecer às famílias, “uma formação” para ajudá-las, podia ser suficiente. Esquecíamos talvez que formar não é apenas dar ou receber informação. A formação integral requer contar com a liberdade que torna viável que cada pessoa – cada família – descubra seu protagonismo único. A formação, neste sentido mais racional e discursivo, continua, evidentemente, sendo necessária, cabe, porém, afirmar que hoje já não é suficiente.
O documento Itinerários catecumenais para a vida matrimonial, do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, aborda as modalidades da formação para as famílias, destacando que “não se trata tanto de transmitir noções ou de adquirir competências, mas muito mais de orientar, ajudar e estar próximo dos casais ao longo de um caminho a trilhar juntos”[16]. O documento se refere à necessidade de formar as famílias acompanhando-as, que é uma proposta de grande riqueza, cujo alcance ainda não se alcançou. De acordo com a terminologia dos Itinerários, o acompanhamento é um “estilo” (quer dizer, uma forma de atuar mais vital do que conceitual ou racional) que é preciso aprender. Por isso encoraja a todos que acompanham que “tenham uma formação e um estilo de acompanhamento adequados ao percurso catecumenal”. Referindo-se ao acompanhamento, utilizam-se termos como “gradualidade”, “acolhida”, “apoio”, “testemunho”, “estar presentes”, e além disso fala de criar um “clima de amizade e confiança”. Cita, além disso, o “tom” geral que se deve empregar no acompanhamento: “deveria ir muito além das ‘advertências moralistas’ e ser, em vez disso, propositivo, persuasivo, estimulante e totalmente orientado para o ‘bem’ e para o ‘belo’ que se pode viver no matrimônio[17]. Esta proposta é um bom ponto de partida que exige continuar avançando — em amplitude e profundidade — para mostrar, na prática, o que significa acompanhar as famílias na Igreja[18].
É conhecida a afirmação de São Paulo VI, que dizia que “o homem contemporâneo escuta com mais vontade aqueles que dão testemunho do que aqueles que ensinam” e que “se escutam os que ensinam, é porque eles dão testemunho”[19]. O prelado do Opus Dei, Fernando Ocáriz, citava este texto, acrescentando que “na cultura contemporânea são necessários rostos que façam uma mensagem ser plausível”[20]. É por isso necessário dar ao acompanhamento um valor teológico e antropológico forte. O protótipo de todo acompanhamento é aquele que Jesus realiza com os discípulos de Emaús[21], em que se vê a transformação de suas vidas. O acompanhamento é uma exigência intrínseca do amor cristão; não é uma estratégia ou um método, mas a participação “na própria força do Espírito Santo, ‘Caridade incriada’[22], porque Cristo quer acompanhar todo homem e o faz através dos cristãos[23].
O que significa acompanhar?
Acompanhar significa, etimologicamente, compartilhar espaço e tempo com outras pessoas. O termo vem do latim cum-panis, que significa partir o pão. Indica entrelaçar as coisas cotidianas da existência na construção de uma vida, o que denota em primeiro lugar que, para acompanhar, é preciso compartilhar a vida[24]. A essência do acompanhamento radica na presença consciente para proporcionar apoio a outra pessoa, sem impor, controlar, nem dirigir sua experiência, respeitando sua autonomia. Caberia destacar, entre outros, quatro aspectos essenciais na ação de acompanhar, que podem ajudar a compreender melhor seu significado e alcance:
1. Acompanhar requer estar. O acompanhamento é uma ação que pode ser realizada de forma proeminente nos locais onde as famílias se reúnem, atuam e estão presentes. Ou seja, nas escolas, nas associações, nos espaços de lazer e descanso, etc.
2. Acompanhar implica estabelecer um vínculo. Não há acompanhamento sem se vincular e sem se tornar vulnerável no vínculo. Este é o fundamento antropológico do acompanhamento[25]. Por isso o acompanhamento não pode ser confundido com uma tática, com uma metodologia para realizar programas de sucesso, ou um recurso para resolver os problemas alheios. Acompanhar consiste em estabelecer uma relação pessoal que, como tal, se baseia na confiança, que não pode ser imposta, mas sim oferecer as condições para que seja possível.
3. Acompanhar não é dirigir, nem tomar as decisões pelo outro, tentando resolver seus problemas. Até poucos anos atrás pensávamos que, para ajudar as famílias, bastava oferecer uma ideia de como as coisas devem ser feitas, com estilo que poderíamos chamar “diretivo”. Talvez alguma vez tenhamos esquecido que a formação requer contar com a liberdade das pessoas. Acompanhar é mostrar, é ensinar a fazer, é também ajudar a descobrir os próprios recursos para resolver as dificuldades.
4. Finalmente, acompanhar não é uma necessidade só para os momentos de crise. O acompanhamento deve ser visto como tarefa que leva a atuar de maneira preventiva nas situações de conflito. Apesar de tudo, haverá momentos em que as dificuldades se acentuem ou em que uma família passe por circunstâncias especialmente difíceis. Acompanhar, então, requer partir da base de que a crise não é necessariamente um fracasso irreparável. As crises são sempre uma ameaça, mas são também um desafio e uma oportunidade de melhorar, ocasião de melhorar e de descobrir novas facetas nas pessoas e nas relações.
A Igreja como espaço de acompanhamento
O acompanhamento familiar é um chamado urgente para todos, especialmente na Igreja, que quer chegar às famílias para que possam descobrir a melhor forma de superar as dificuldades que encontram em seu caminho[26]. Já foi dito que acompanhar não consiste em realizar programas eficazes, mas em compreender que Deus quer que ninguém se sinta sozinho, o que constitui a missão fundamental da Igreja[27]. O Evangelho foi-nos transmitido mediante testemunhas, mediante outras pessoas que nos acompanharam na vida. A primeira evangelização realizou-se, além disso, na domus ecclesiae, nas igrejas domésticas como o lugar de acolhida dos cristãos, onde encontravam um ambiente familiar. A pastoral da família parece, às vezes, limitar-se a oferecer uma série de “serviços espirituais”, quando na realidade os fiéis precisam, acima de tudo, de referências com credibilidade e espaços onde compartilhar a fé. São João Paulo II entendeu muito bem que não bastava dizer aos casais o que tinham que fazer, mas que era preciso acompanhá-los. Criou, por isso, um grupo de casais (Srodowisko), como “ambiente” de acompanhamento, procurando compartilhar algum tempo com eles; e nessa convivência aprendiam muito uns dos outros. Para poder acompanhar com eficácia, a Igreja precisa mostrar que é realmente família[28].
O Opus Dei, como parte da Igreja, é um instrumento querido por Deus para acompanhar as pessoas e as famílias em seu caminho de vida cristã. Os ensinamentos de são Josemaria destacam várias características e elementos em clara sintonia com a essência do acompanhamento. São Josemaria compreendeu, em primeiro lugar, que a Obra é uma pequena família dentro da grande família da Igreja. O espírito de família está profundamente enraizado no coração do espírito e dos modos de evangelização próprios do Opus Dei. A experiência de ser família torna possível que nos acompanhemos, pois ajuda a criar autênticos vínculos pessoais de confiança entre os fiéis da Obra. Além disso, a consideração da Obra como família constitui uma das chaves para a interpretação dos ensinamentos de São Josemaria sobre a formação que é proporcionada e, mais especificamente, sobre o acompanhamento espiritual [29]. De certa forma, todos os meios de formação e o próprio relacionamento fraterno entre os membros da Obra e as pessoas que participam de seus apostolados, constituem um acompanhamento de tipo familiar. De fato, o ambiente de amizade e fraternidade que se gera nessas atividades promove o crescimento pessoal e espiritual, fortalecendo também as relações familiares. Ao mesmo tempo, esse mesmo clima pode e deve se expandir em outros círculos mais amplos nos quais as famílias se acompanham entre si, em processos de crescimento espiritual e humano.
No início do novo milênio, São João Paulo II insistia em que todas as iniciativas apostólicas que surgissem no futuro seriam “meios sem alma” se não fossem capazes de ter seu centro em amar sinceramente a todas as pessoas, em “compartilhar as suas alegrias e os seus sofrimentos, para intuir os seus anseios e dar remédio às suas necessidades, para oferecer-lhe uma verdadeira e profunda amizade”[30]. O contato pessoal é um aspecto relacional que está no centro do modo de fazer apostolado que São Josemaria encontrou nos relatos evangélicos[31]. Os ensinamentos de São Josemaria sobre a amizade e confidência trazem luz ao significado real do acompanhamento cristão. “Num cristão, num filho de Deus, amizade e caridade fazem uma só coisa: luz divina que dá calor”[32]. São Josemaria entende a amizade como uma relação sincera “de tu a tu, de coração a coração”[33]. “Por vocação divina viveis no meio do mundo, compartilhando com os outros homens – iguais a vós – alegrias e dissabores, esforços e sonhos, preocupações e aventuras (...). O homem necessita, todos necessitamos, minhas filhas e filhos, apoiar-nos uns nos outros, para assim percorrer o caminho da vida, tornar realidade nossos sonhos, superar as dificuldades, desfrutar do fruto de nossos esforços. Daí a enorme importância, não só humana, mas também divina, da amizade”[34]
A família é o primeiro lugar de acompanhamento, e seu âmbito natural por excelência. A tarefa dos esposos cristãos consiste em acompanhar um ao outro e acompanhar seus filhos no caminho da vida. Esta ótica implica uma mudança de mentalidade ao planejar a educação familiar: não se trata tanto de “fazer coisas”, mas de compartilhar realmente a vida. A família é igreja doméstica na medida em que é capaz de realizar este acompanhamento cristão de seus membros, fazendo com que ninguém se sinta só. Por outro lado, a família está acompanhada e é capaz de acompanhar quando ela mesma se torna consciente de sua própria vocação: ser, como comunhão de pessoas, uma luz para o mundo[35]. São Josemaria foi um instrumento decisivo para a redescoberta da vocação cristã em e através da vida familiar, ajudando a compreender que os vínculos pessoais que constituem a família são autêntico caminho de encontro com Deus. “Os casados estão chamados a santificar o seu matrimônio e a santificar-se a si próprios nessa união; por isso, cometeriam um grave erro se edificassem a sua conduta espiritual de costas para o lar, à margem do lar. A vida familiar, as relações conjugais, o cuidado e a educação dos filhos, o esforço necessário para manter a família, para garantir o seu futuro e melhorar as suas condições de vida, o convívio com as outras pessoas que constituem a comunidade social, tudo isso são situações humanas, comuns, que os esposos cristãos devem sobrenaturalizar”[36].
A família é o âmbito natural para que a pessoa possa chegar a crescer em todo seu dinamismo: é escola de amor e o “método” com que ensina o que é a vida compartilhada, as próprias relações familiares[37]. Saber-se amado incondicionalmente é o melhor método para aprender a dinâmica do dom, que é tão desconhecida dos homens e das mulheres de hoje: o amor de esposos que fundamenta a família, é também a melhor preparação remota dos filhos para empreender o caminho matrimonial[38].
São Josemaria se refere ao acompanhamento familiar quando afirma que os pais são os principais educadores de seus filhos, sabendo, sobretudo, amá-los e dando bom exemplo, já que educam fundamentalmente com seu comportamento. O que os filhos e filhas procuram em seu pai ou em sua mãe, não são apenas conhecimento ou conselhos mais ou menos acertados, e sim um testemunho do valor e do sentido da vida encarnado em uma existência concreta. O fundador do Opus Dei convida, por isso, os pais a serem amigos de seus filhos, a quem confiam as inquietações, consultam os problemas, dos quais se espera uma ajuda eficaz e amável. É necessário para isso que os pais encontrem tempo para estar e falar com eles[39]. Este estilo educativo tem como pressuposto o respeito por sua legítima liberdade. “Os pais devem precaver-se contra a tentação de se quererem projetar indevidamente nos filhos — de construí-los segundo as suas próprias preferências — devem respeitar as inclinações e as aptidões que Deus dá a cada um. Se há verdadeiro amor, isto, em geral, torna-se simples. Inclusive no caso extremo, quando o filho toma uma decisão que os pais têm fortes motivos para julgar errada e até para prever nela a origem de uma infelicidade, a solução não está na violência, mas em compreender; e — mais uma vez — em saber permanecer ao lado dele, a fim de ajudá-lo a superar as dificuldades e, se necessário, ajudá-lo a extrair desse mal todo o bem possível”[40].
Famílias que acompanham outras famílias
São Josemaria recorria frequentemente ao exemplo dos primeiros cristãos. Ele gostava de referir-se àquelas famílias que viveram de Cristo e o deram a conhecer. “Pequenas comunidades cristãs, que atuaram como centros de irradiação da mensagem evangélica. Lares iguais aos outros lares daqueles tempos, mas animados de um espírito novo, que contagiava os que os conheciam e com eles se relacionavam. Assim foram os primeiros cristãos e assim havemos de ser nós, os cristãos de hoje: semeadores de paz e de alegria, da paz e da alegria que Jesus nos trouxe”[41]. Numerosas iniciativas, fruto de seus ensinamentos e de seu impulso, surgiram e continuam surgindo. Entre elas há, por exemplo, escolas promovidas por famílias[42]. O acompanhamento familiar nestes espaços educativos tem particular repercussão. Por um lado, estes centros são um “ponto de apoio” para as famílias, a partir dos quais podem ser ajudadas a redescobrir seu protagonismo educador e promover uma formação familiar transversal. Também se pode oferecer a partir do âmbito escolar, apoio às famílias para que os filhos não só triunfem no campo profissional mas para que sejam capazes de levar a cabo com sucesso um plano muito mais importante: o projeto familiar. A escola é, ao mesmo tempo um âmbito natural em que as famílias podem acompanhar outras famílias. Mas uma iniciativa de destaque são os centros e atividades de orientação familiar, que oferecem formação, assessoramento e apoio prático aos casais; procuram fortalecer a unidade familiar mediante o diálogo e a compreensão mútua, promovendo a construção de lares capazes de irradiar valores cristãos na sociedade. Essas e outras iniciativas, como associações familiares, constituem espaços nos quais se pode propiciar o acompanhamento entre as famílias.
De fato, o acompanhamento familiar não deve ser visto como um “método” ou uma simples ação, e sim antes como uma mudança de perspectiva de amplo espectro, que pode ser realizada em âmbitos muitos diversos e admite concretizações muito diferentes, dependendo da situação das famílias, da rede de relações que elas têm, etc. Como não existem famílias ideais nem famílias perfeitas na realidade todos nós precisamos ser acompanhados. Está ao alcance de cada pessoa acompanhar no cotidiano com pequenas ações que sempre dão fruto. E também se pode aproveitar os espaços de acompanhamento que cada tem ao seu alcance, promovendo a confiança na eficácia dos “muitos poucos”. Do mesmo modo que a cultura do fracasso familiar e do divórcio não se impôs na base de ideias, mas de práticas (de más práticas, poderíamos dizer) uma genuína cultura da família deve ser reconstruída mais com boas práticas – com estilos devida – do que com ideias abstratas.
No futuro, continuarão surgindo, sem dúvida, muitas outras iniciativas pela família, fruto da criatividade e da caridade cristã que, inspirando-se nos ensinamentos de São Josemaria, procurarão ser lugares de encontro de famílias, onde elas se sintam acompanhadas e sejam por sua vez, capazes de acompanhar outras famílias.
Artigo publicado no boletim Romana, nº 79.
Montserrat Gas Aixendri
Instituto de Estudios Superiores de la Familia
Universitat Internacional de Catalunya (Barcelona, España)
[1] Carlo Caffarra, “Fede e cultura di fronte al matrimonio”, em H. Franceschi (ed.), Matrimonio e famiglia. La questione antropologica, EDUSC, Roma, 2015, p. 26.
[2] Utiliza-se esta expressão em contraposição à “apagão analógico” iniciada a partir de 2005, que consiste na cessação das emissões analógicas dos operadores de televisão, para passar a transmitir unicamente mediante sinais digitalizados.
[3] Bento XV, Discurso na abertura dos trabalhos da assembleia diocesana de Roma, 11/06/2007.
[4] Cfr. Pierpaolo Donati, Manual de sociología de la familia, Eunsa, Pamplona 2003, pp. 121-156.
[5] Bento XVI, Enc. Caritas in veritate, (29-6-2009), n. 53.
[6] O acompanhamento pode-se realizar em diversos âmbitos (espiritual, terapêutico, educativo, etc.,). Neste texto ele é aplicado ao âmbito especifico da família e das relações familiares.
[7] Carlo Caffarra, (Itália, 1938 – 2017) era um cardeal italiano, especialista em teologia moral da família e da vida. Por encargo do Papa, em 1981 fundou e presidiu o Pontifício Instituto João Paulo II para os Estudos sobre o Matrimônio e a Família.
[8] Carlo Caffarra, Fede e cultura di fronte al matrimonio, cit., p. 27.
[9] Como sublinha o Papa Francisco, não existe “o estereótipo da família ideal, mas um interpelante mosaico formado por muitas realidades diferentes, cheias de alegrias, dramas e sonhos”. Francisco, Exort. apost. Amoris laetitia (19/0/2016), n. 57.
[10] Com efeito “muitas famílias, que estão longe de considerar-se perfeitas, vivem no amor, realizam sua vocação e seguem em frente, embora caiam muitas vezes ao longo do caminho”. Ibid.
[11] Cfr. São João Paulo II, Exort. apost. Familiaris Consortio (22/11/1981), n. 11
[12] Cfr. Montserrat Gas Aixendri – M.Pilar Lacorte Tierz, La famiglia quale realtà originaria:mostrare, educare, accompagnare, em H. Franceschi (ed.), Matrimonio e famiglia, cit., pp. 290-291.
[13] Cfr. Ibid., p. 301.
[14] Cfr. Bento XVI, Discurso 11/06/2007, cit.
[15] Cfr. Francisco, Exort.apost. Amoris laetitia, n.208
[16] Dicastério para os leigos, a família e a vida, Itinerários catecumenais para a vida matrimonial. Orientações pastorais para as igrejas particulares, Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 2022, n. 20.
[17] Ibid.
[18] Cfr. Ibíd.
[19] São Paulo VI, Discurso aos membros do Consilium de Laicis, 2/10/1974
[20] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 14/02/2017, n. 18
[21] Lc 24, 13-35.
[22] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 14/02/2017, n. 9
[23] Cfr. Juan José Pérez-Soba, “Que tipo de acompanhamento familiar abre uma esperança?”, Quaderns de Politiques Familiars, vol.8 (2022).
[24] Ibid.
[25] Ibid.
[26] Cfr. Francisco, Exort. Apost. Amoris laetitia, n. 200
[27] Cfr. Juan José Pérez-Soba, Qué tipo de acompañamiento familiar abre una esperanza?, cit.
[28] Cfr. Ibid.
[29] Cfr. Guillaume Derville, “Dirección espiritual’ em Diccionario de San Josemaría Escrivá de Balaguer (coord. José Luis Illanes), Monte Carmelo – Instituto Histórico San Josemaría Escrivá, Burgos 2013, p.339.
[30] São João Paulo II, Carta apost. Novo Millenio ineunte (6/01/2001). n. 43.
[31] Cfr. Fernando Ocáriz, Carta pastoral 14/02/2017, n. 9; São Josemaria, Carta 1, n. 11.
[32] São Josemaria, Forja, n. 565.
[33] São Josemaria, Sulco n. 191.
[34] São Josemaria, Carta, 24/10/1965, nn. 2 e 16.
[35] C fr. Juan José Pérez-Soba, El arte acompañar, una luz para la familia, conferência realizada nas II Jornadas sobre acompañamiento familiar, organizadas pela Universitat Internacional de Catalunya, Barcelona, 4-V-2024, pro manuscripto.
[36] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 23.
[37] Cfr. Beato Álvaro del Portillo, “La famiglia , vera scuola dell’ amore”, comentário à Carta a las Familias, Avvenire, 24-02-1994 (em Romana 10, 1994, pp 94-96).
[38] Cfr. Aquilino Polaino-Lorente, Família y autoestima, Ariel, Madrid, 2004, p. 106.
[39] Cfr. São Josemaria, É Cristo que passa, nn. 27-28
[40] São Josemaria, Entrevistas, n. 104
[41] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 30.
[42] Estas escolas prestam atenção em primeiro lugar nos “pais de família; depois, nos professores, e depois nos estudantes”, porque “a prioridade de qualquer família devem ser os próprios filhos”. São Josemaria, Anotações de uma tertúlia, 21/11/1972. Texto citado por Mons. Javier Echevarría na conferência La familia en las enseñanzas de San Josemaría Escrivá de Balaguer, conferência realizada por ocasião da clausula do Congresso Internacional sobre Familia y Sociedad na Universitat Internacional de Catalunya (Barcelona, 17/05/2008).

