OS APÓSTOLOS não conseguem aguentar a fome. Provavelmente estão há vários dias sem comer. Então, assim que passam por uns campos, arrancam algumas espigas, debulham-nas com as mãos e comem. O gesto em si não parece ser problemático, mas é sábado. E a lei diz que nesse dia a semeadura não pode ser colhida. Por isso, alguns fariseus, observando o descuido desses discípulos, buscam explicações: “Por que fazeis o que não é permitido em dia de sábado?” (Lc 6,2). Não são os apóstolos que respondem, mas Jesus: “Acaso vós não lestes o que Davi e seus companheiros fizeram, quando estavam sentindo fome? Davi entrou na casa de Deus, pegou dos pães oferecidos a Deus e os comeu, e ainda por cima os deu a seus companheiros. No entanto, só os sacerdotes podem comer desses pães” (Lc 6,3-4).
O Senhor frequentemente omitia algumas das práticas habituais do povo judeu. Alguns escribas e fariseus o censuravam pelo fato de seus discípulos não lavarem as mãos antes de comer, sem mencionar as acusações de que Ele fazia milagres no sábado. E por que fazia isso? Para trazer a fé para o centro da prática religiosa. “E evitar um risco, que se aplica tanto àqueles escribas como a nós: observar formalidades externas, colocando o coração da fé em segundo plano. Com demasiada frequência, também nós ‘maquiamos’ a alma. É o risco de uma religiosidade da aparência: parecer bons por fora, negligenciando a purificação do coração. Há sempre a tentação de ‘agradar a Deus’ com alguma devoção externa, mas Jesus não se contenta com este culto. Jesus não quer exterioridade, Ele quer uma fé que chegue ao coração”[1].
Certamente, isso não significa que as obras externas não sejam importantes. De fato, muitas das tradições de qualquer judeu da época estão presentes na vida cotidiana do Senhor: Ele recita as orações habituais, vai à sinagoga com frequência, celebra as festas..., mas tudo isso não era feito para se exibir ou como forma de ganhar o respeito de Deus Pai ou dos outros, mas como expressão do amor que enchia seu coração. Dessa forma, “Ele nos lembra que a vida cristã é um caminho para percorrer, que consiste não tanto em uma lei a ser observada, mas na própria pessoa de Cristo, a quem devemos encontrar, acolher e seguir”[2].
JESUS está criticando não tanto o zelo de alguns dos escribas e fariseus em guardar a lei, mas a falta de amor deles. Dedicavam um tempo considerável à oração e ao jejum, mas, em contrapartida, negligenciavam os deveres mais elementares de caridade para com o próximo. Assim, não hesitavam em criticar quem não seguia seu padrão de vida, ou se preocupavam mais com o cumprimento dos preceitos do que em se alegrar com a cura de uma pessoa. De fato, não há nada mais oposto do que opor o cumprimento da lei divina ao desejo de querer o bem dos outros. “Prefiro as virtudes às austeridades, diz Javé com outras palavras ao povo escolhido, que se engana com certos formalismos externos. Por isso, temos de cultivar a penitência e a mortificação, como provas verdadeiras de amor a Deus e ao próximo”[3].
São Gregório Magno comentava que o jejum é santo quando é acompanhado de outros atos de virtude, especialmente a generosidade[4]. Nesse sentido, São Josemaria nos encorajava a praticar “Mortificações que não mortifiquem os outros, que nos tornem mais delicados, mais compreensivos, mais abertos a todos”. E acrescentava: “Não seremos mortificados se formos suscetíveis, se estivermos preocupados apenas com os nossos egoísmos, se esmagarmos os outros, se não nos soubermos privar do supérfluo e, às vezes, do necessário; se nos entristecermos quando as coisas não correm como tínhamos previsto. Pelo contrário, seremos mortificados se nos soubermos fazer tudo para todos, para salvar a todos”[5].
Cada dia nos oferece muitas oportunidades de agradar a Deus buscando o bem das pessoas ao nosso redor: sorrir quando estamos cansados, oferecer-se para fazer uma tarefa mais custosa, perdoar os pequenos atritos da convivência, compartilhar nosso tempo com quem mais precisa... Por meio desses gestos, estamos cumprindo os principais mandamentos da lei: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu pensamento e a teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10,27).
ÀS VEZES, os formalismos podem dar uma sensação de segurança. Em geral, todos nós precisamos de indicações precisas para saber se estamos fazendo algo certo. Se aplicarmos essa abordagem à vida cristã, o relacionamento com Deus pode acabar se tornando como o daqueles fariseus que Jesus denunciou: cheio de boas obras externas, mas com um coração que não vibra com o que vive. Por outro lado, quando cumprimos os mandamentos envolvendo nossas forças: vontade, afeto e intelecto, descobrimos uma alegria profunda e serena, porque saboreamos com nossos sentidos espirituais o amor de Deus em cada um de seus preceitos e em cada uma das circunstâncias da vida. O prelado do Opus Dei diz: “Sabermos que o infinito Amor de Deus é encontrado não só na origem de nossa existência, mas também em cada instante, porque Ele é mais íntimo para nós do que nós mesmos, enche-nos de segurança”[6].
Basear a luta cristã na filiação divina nos enche de otimismo. Hoje em dia, diz-se que as expressões de afeto que uma criança recebe de seus pais podem ter uma influência decisiva em seu futuro. Se ela se sentir amada e reconhecida desde cedo, quando crescer terá uma base sólida sobre a qual construirá todos os outros relacionamentos. Bem, algo semelhante acontece em nossas relações com Deus. “Saber que temos um Pai que nos ama infinitamente, nos permite ter uma vida alegre e plena, e também nos leva a iluminar todas as áreas da nossa existência, a partir desse amor, confiança e simplicidade, mesmo em meio às dificuldades ou quando vivenciamos nossos defeitos com mais força”[7]. A filiação divina também dá outra perspectiva ao cumprimento da lei: não somos súditos tentando contentar um rei, mas filhos que se esforçam por agradar ao Pai... mesmo que nem sempre consigam. Podemos pedir à Virgem Maria que saibamos sentir-nos sempre filhos amados de Deus.
[1] Francisco, Ângelus, 29/08/2021.
[2] Bento XVI, Audiência, 9/03/2011.
[3] São Josemaria, Sulco, n. 992.
[4] Cfr. São Gregório Magno, Regra Pastoral, 19, 10-11.
[5] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 9.
[6] Mons. Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 9/01/2018.