Leigos: santos no meio do mundo

“O leigo é aquele que de modo natural está sempre em “saída”, porque é justamente assim que está onde os outros estão e esse é o seu primeiro e mais importante espaço de evangelização”. É o que afirma Mariano Fazio, num artigo publicado na revista Mundo Cristiano.

Baixe o artigo de Mundo Cristiano em pdf (em espanhol)

Só um milhão dos 1,3 mil milhões de católicos do mundo não são leigos. Mas ao longo da história talvez não se tenha pensado o suficiente sobre a condição da grande maioria dos fiéis.

Os bispos espanhóis convocaram em fevereiro o Congresso Nacional de Leigos, em Madri, com o lema “Povo de Deus em formação”. Como contributo para esta reflexão, oferecemos um texto sobre a condição dos leigos e a santificação no meio do mundo, por D. Mariano Fazio, vigário auxiliar do Opus Dei.


No início deste milênio, São João Paulo II definiu o plano pastoral da Igreja para os séculos futuros. Poderia resumir-se numa palavra: santidade. O Papa Francisco dedicou uma exortação apostólica inteira à santidade. Ambos olharam sempre para o Concílio Vaticano II que coloca o chamamento universal à santidade como um dos seus pontos mais importantes.

Todos estamos chamados a seguir Cristo, a imitá-Lo, porque é nisso precisamente que consiste a santidade. Esta chamada dirige-se a todos os batizados e, ao mesmo tempo, cada um tem uma missão específica na Igreja. Os membros da Hierarquia – bispos, sacerdotes, diáconos – têm como missão ensinar com autoridade a Palavra de Deus, apascentar os fiéis e celebrar o culto divino; os religiosos, recordar ao mundo as realidades escatológicas através da sua vida consagrada; os leigos, santificar-se no seio das estruturas temporais, no meio do mundo. Depois do Concílio e do magistério dos últimos papas, mais ninguém pode pensar que a santidade está reservada aos sacerdotes ou aos religiosos: todos recebemos, pelo batismo, essa vocação à plenitude da vida cristã.

Atualmente, falamos muito da necessidade de uma “Igreja em saída”. “Sair” tem múltiplos significados, bíblicos, espirituais etc., como, por exemplo, sair da própria terra, da zona de conforto, de estruturas enferrujadas, de uma atitude defensiva... e ir ao encontro das pessoas. Podemos perguntar-nos: onde estão as pessoas? A resposta é óbvia: na família, no ambiente de trabalho, no quadro das relações sociais... Deste ponto de vista, poderíamos dizer que o leigo é aquele que de modo natural está sempre “em saída”, porque é aí que estão as pessoas, e esse é o seu primeiro e mais importante espaço de evangelização. O leigo não tem necessidade de penetrar nas estruturas temporais, pois já está lá como no seu habitat natural.

Redescobrir o batismo

Numa carta escrita há alguns anos atrás, o Papa dizia que “olhar o povo de Deus é recordar que todos nós entramos na Igreja como leigos. O primeiro sacramento, aquele que sela para sempre a nossa identidade e do qual devemos sempre nos orgulhar, é o batismo. Por meio dele e com a unção do Espírito Santo, [os fiéis] ficam consagrados como templo de Deus e sacerdócio santo. A nossa primeira e fundamental consagração tem as suas raízes no nosso batismo” (Carta ao Cardeal Ouellet, 2016).

O batismo é força de salvação e envio. Como o Big Bang, quem o recebe inicia algo novo – a vida em Cristo – destinado a expandir-se para outros na História e na pequena história de cada um. O lugar de “expansão” dos leigos é o mundo em todas as suas dimensões, isto é, na vida familiar, nos ambientes de trabalho, nos espaços públicos. A graça do batismo é o que impulsiona esse movimento.

um potencial irrenunciável nos nossos anseios de levar Cristo a todas as pessoas

Naquela mesma carta, referindo-se a certos slogans, Francisco acrescentava: “Recordo agora a famosa expressão: 'é a hora dos leigos' mas parece que o relógio parou”. E é verdade, parece que a maioria dos fiéis leigos ainda não assume o protagonismo de serem filhos de Deus e a responsabilidade de iluminar com o Evangelho até os últimos cantos da sua vida cotidiana. Talvez nós, sacerdotes, ainda não tenhamos percebido completamente o imenso potencial de santidade e evangelização dos homens e mulheres leigos, que devem desenvolver com a sua liberdade e iniciativa; um potencial irrenunciável nos nossos anseios de levar Cristo a todas as pessoas. Redescobrir o papel dos leigos na Igreja requer uma grande mudança de mentalidade. O ponto de partida leva-nos a voltar ao batismo e à sua primeira consequência: a chamada a identificar-nos com Cristo, a ser santos.

Comentando a doutrina do Concílio Vaticano II, São Josemaria afirmava que “a participação específica dos leigos na missão da Igreja consiste precisamente em santificar ab intra (a partir de dentro) – imediata e diretamente – as realidades seculares, a ordem temporal, o mundo” (Entrevistas a São Josemaria). Às vezes, o “leigo” tende a ser considerado como o que tem algum cargo de responsabilidade nas estruturas eclesiais ou que desempenha algumas funções litúrgicas.

Ninguém duvida da importância e necessidade desses serviços, mas a sua missão na Igreja é fundamentalmente tornar Deus presente nas estruturas temporais, nas encruzilhadas sociais, no meio do mundo. Nesse processo de mudança de mentalidade, devemos estar sempre atentos à tentação de “clericalizar” o leigo, evitando os desafios de formação e acompanhamento que esse paradigma implica, para seguir caminhos mais curtos, mas talvez menos eficazes.

É impossível descrever todas as situações em que os leigos se encontram e onde tantos procuram Deus. Alguns terão funções na vida pública e política. A figura de São Thomas More, proclamada por São João Paulo II como padroeiro dos governantes e políticos durante o jubileu do ano 2000, é paradigmática de quão longe pode chegar o exemplo de um leigo na política: a sua integridade, a sua força, o seu bom humor são uma grande inspiração para muitos políticos e governantes dos nossos dias. Como estadista – recordou o Papa polonês – “sempre se colocava ao serviço da pessoa, especialmente dos fracos e dos pobres; honras e riquezas não o influenciaram, já que o guiava um profundo sentido de justiça. Acima de tudo, ele nunca aceitou agir contra a sua própria consciência, chegando mesmo ao sacrifício supremo para não ignorar a sua voz”.

A maioria dos leigos vive fora da política ou do governo em sentido estrito, mas não são – nem podem ser – indiferentes aos desafios da sociedade ou aos novos estilos de vida. Não são “figuras públicas”: são homens e mulheres comuns que tentam, nas suas famílias, profissões e esferas sociais nas quais trabalham, deixar a marca de Deus. Detenho-me brevemente em três dimensões próprias do laicato especialmente significativas: família, trabalho profissional e estilos de vida.

Família, trabalho, estilos de vida

Durante séculos, a família tem sido a maior força transmissora da fé. Constitui o primeiro espaço de responsabilidade dos leigos, onde a obra evangelizadora acontece fundamentalmente através do testemunho de uma vida de cristãos coerentes, e não tanto por meio de grandes raciocínios, embora também sejam necessários à medida que os filhos crescem. Além de alguns conteúdos formativos e dos costumes de piedade cristã, também é na família que se transmite uma imagem da pessoa humana, que, pelo menos nas sociedades secularizadas, aparece cada vez mais distorcida e minoritária.

Cristo dá a sua vida pelos outros e também assim devemos imitar Cristo

Em que consiste a imagem cristã da pessoa? Como ensina o Concílio Vaticano II, homem e mulher encontram a sua plena manifestação em Cristo e realizam-se no sincero dom de si. Cristo dá a sua vida pelos outros e também assim devemos imitar Cristo. A “verdade sobre o homem” inclui, entre outras coisas, o amor entendido como um dom, a aprendizagem do perdão, a afetividade e a sexualidade integradas num contexto de entrega mútua e fecunda, as modulações da justiça, a atenção preferencial aos pobres, doentes e idosos, e a gratuidade. Numa sociedade em que quase todos os vínculos são fluidos, a família cristã pode propor uma visão adequada da realização da pessoa humana através do dom sincero e fiel de si: mães e pais que partilham a responsabilidade de formar os seus filhos com amor, com entrega diária, ajudando-os a administrar a liberdade, porque sem liberdade não podemos formar nem ser formados. A família, enquanto igreja doméstica, é o ponto estratégico da nova evangelização, como apontaram os últimos romanos pontífices. É o viveiro das novas gerações de cristãos.

Outra grande área própria dos leigos é o trabalho, um vasto espaço que pode iluminar sociedades inteiras. Como disse São Josemaria, todo o cristão é chamado a “santificar o trabalho, santificar-se no trabalho e santificar os outros com o trabalho”. Diante de Deus, não há trabalhos de maior ou menor importância: isso dependerá da união com Deus que a pessoa alcançar, desenvolvendo na sua profissão todas as suas capacidades, postas ao serviço dos outros. O fundador do Opus Dei utilizava outra expressão muito gráfica para ressaltar a importância do trabalho na evangelização: os cristãos – e em particular os homens e mulheres no meio do mundo – têm que colocar “Cristo no cume de todas as atividades humanas”

A sociedade atual apresenta-nos muitos desafios. Os leigos são chamados a resolvê-los – ou pelo menos a tentar resolvê-los – com sentido cristão, com profissionalismo, movidos pela justiça e pela misericórdia. Normalmente, os problemas sociais exigem conhecimento técnico adequado. Ao mesmo tempo, as soluções propostas podem ser muito diferentes umas das outras. Os leigos que estão determinados a melhorar este mundo e torná-lo mais de acordo com o plano de Deus devem colocar todas as suas capacidades ao serviço do bem comum. Eles estarão muito unidos no desejo de imitar o Senhor e na sua decisão de tornar a luz do Evangelho presente na sociedade, mas evidentemente, não estarão necessariamente de acordo quanto às soluções técnicas que devem ser adotadas.

Ao tratar-se de questões temporais, as soluções normalmente não serão unívocas, mas múltiplas, estando em jogo a liberdade e a responsabilidade de cada um. Impor uma solução “católica” a problemas que oferecem muitas possibilidades de resposta seria um “clericalismo” intolerável, contrário à liberdade dos filhos de Deus. Estaríamos confundindo o dogmático com o opinável, com o risco de instrumentalizar a Igreja para fins temporais. Já em 1934, um grande pensador católico, Étienne Gilson, escreveu: “Todos os insultos que o ódio de Voltaire fez verter contra padres, estamos dispostos a repeti-los contra o clericalismo; nós somos talvez os únicos que podem até dar uma justificação teológica para isso” (Por uma ordem católica).

Estilos de vida

Família, trabalho. Dediquemos algumas palavras aos estilos de vida. Nos primeiros séculos do cristianismo, os leigos participavam com os seus concidadãos no curso da história sem sair do mundo. A sua influência na sociedade não era em primeiro lugar econômica, política, militar ou social. Em vez disso, o seu estilo de vida inspirado na caridade cristã causava em uns, atração e em outros, rejeição. Os primeiros cristãos deixaram-nos uma herança inspiradora sobre a experiência dos leigos numa sociedade que não conhece Cristo. Demonstraram que é possível ser consequente com a própria fé em qualquer circunstância e que também é possível, a partir de ocupações comuns no meio da sociedade, transformá-la.

Seguir a Cristo implica uma certa forma de encarar a vida deixando transparecer as propostas do Evangelho tais como amar os inimigos, levar uma vida austera, tratar os outros como gostaríamos de ser tratados, acolher o pobre e o estrangeiro, assumir compromissos familiares permanentes, ter esperança numa vida futura, etc. Servirão de inspiração para muitos, embora também encontrem rejeição de outros. O desafio do leigo é manter a coerência da fé face à pressão de outros comportamentos, talvez muito difundidos, e saber explicar, de maneira simples e alegre, a razão do seu estilo de vida e a felicidade que encontra nele: como São Pedro nos pede, nós, cristãos temos que “dar a razão da nossa esperança”.

A luz dos santos leigos

Como os nossos primeiros irmãos na fé, nas últimas décadas existem numerosos exemplos de outros leigos (canonizados ou não) que foram um reflexo de Cristo nos ambientes do trabalho, do esporte, da sociedade civil, da cultura, da família, no meio da sua vida cotidiana; pessoas que em nada de exterior se distinguiram dos seus concidadãos, mas souberam aprofundar a sua condição de batizados e foram fermento, incentivo e apoio para milhares de colegas. À sua maneira e no seu ambiente, eles foram grandes anunciadores do evangelho.

Seguir a Cristo implica uma certa forma de encarar a vida

Entre os que se encontram em processo de beatificação, gosto de recordar um empresário da minha terra chamado Enrique Shaw (1921-1962), cuja causa de canonização foi aberta quando o cardeal Bergoglio era arcebispo de Buenos Aires. Foi ótimo marido e pai de uma família numerosa e também empresário de sucesso que se dedicou ao bem-estar dos que trabalhavam com ele; lutava continuamente para melhorar as condições de trabalho dos seus empregados e tinha como missão própria “humanizar a empresa”, sobre a qual falava com frequência nas reuniões que organizava com os seus amigos da Ação Católica.

Era benevolente, paciente, amável, atento às necessidades de todos, tirando forças da sua intimidade com Deus; de fato, como muitos testemunharam, irradiava o amor de Cristo. A sua curta vida é uma lição extraordinária sobre o valor da doutrina social da Igreja com a legitimidade de quem a viveu por dentro, no mundo empresarial.

Recentemente, foi beatificada em Madri a química Guadalupe Ortiz de Landázuri (1917-1975). O Papa Francisco definiu-a como “um exemplo para as mulheres cristãs dedicadas ao trabalho social e à investigação científica”. Era uma pessoa alegre que colocou as suas “inúmeras qualidades ao serviço dos outros”, afirmou o Papa. Nas suas várias facetas como professora, amiga, pesquisadora, aproximou muitas pessoas da fé, em ambientes onde talvez um eclesiástico não tivesse chegado facilmente.

Há leigos que deixaram uma marca profunda, apesar da sua curta existência. Há o belo exemplo da romana Chiara Corbella Petrillo (1984-2012), entusiasta da música, casada com Enrico, que permanece como uma poderosa catequese sobre o namoro, o casamento e o amor à vida. Ou o do jovem milanês Carlo Acutis, que morreu com apenas 15 anos de idade de uma leucemia fulminante; a sua vida autenticamente cristã refletia-se em tudo o que ele fazia na Internet, onde se conectou com muitos jovens que, deste modo, levou a participar do seu amor pela Eucaristia e pela Virgem Maria. A sua alegria cristã gerava admiração entre seus conhecidos.

Enrique, Guadalupe, Chiara e Carlo são apenas alguns exemplos de como os leigos são a face visível da Igreja (face de Cristo) nos ambientes (no mundo do trabalho, da química, da tecnologia, da família) que lhes são próprios. São promotores de estilos de vida, evangelizadores de primeira ordem, de um modo diferente – às vezes complementar e sempre necessário – daqueles que exercem funções ministeriais ou outras na estrutura da Igreja. Na Igreja sempre será “a hora dos leigos”. Eles serão capazes de transformar o mundo, com a condição de aprofundarem a vida nova que receberam no batismo, que os enxertará n’Aquele que disse de si mesmo que é a Vida.

Mons. Mariano Fazio é vigário auxiliar do Opus Dei desde 2019, licenciado em História pela Universidade de Buenos Aires e doutorado em Filosofia pela Universidade Pontifícia da Santa Cruz.