- Dignidade humana e vocação divina do homem e da mulher.
- Igualdade e diferença.
- Homem e mulher na sociedade e na Igreja.
No começo do século XX desenvolveu-se no mundo ocidental uma ampla literatura sobre a distinção-relação entre homem e mulher, dando origem a abordagens antropológicas muito diversas. São Josemaria tinha conhecimento desse debate, mas sua doutrina sobre a vocação do homem e da mulher não se baseia nessas fontes, nem se desenvolve em diálogo com elas. Sua doutrina fundamenta-se nos ensinamentos da Sagrada Escritura e da Tradição da Igreja, e em sua experiência como fundador de uma instituição, o Opus Dei, destinada a promover a chamada à santidade e, portanto, também ao desenvolvimento da personalidade humana entre pessoas, homem ou mulher, de países e condições diversas.
1. Dignidade humana e vocação divina do homem e da mulher
São Josemaria, de acordo com a tradição judaico-cristã, ensinou que existe uma unidade fundamental entre homem e mulher. Ambos são iguais em dignidade como seres criados por Deus à sua imagem e semelhança (cfr. Gn 1, 22) e corresponsáveis, por mandato divino, da dupla tarefa de transmitir a vida e dar origem à história e à cultura (“crescei, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a”: Gn 1, 28). Essas afirmações do Gênesis, essa doutrina sobre a igualdade originária do homem e da mulher, completa-se na antropologia cristã com o conhecimento da filiação divina que Cristo nos ganhou na Cruz. “A mulher tem em comum com o homem sua dignidade pessoal e sua responsabilidade, e – na ordem sobrenatural – todos temos uma idêntica filiação divina adotiva (Gl 3, 26-28) ” (Carta 29/07/1965, n. 4: AGP, série A.3, 94-4-1).
Todo batizado deve saber-se membro da família universal dos filhos de Deus, à qual são chamados todos os seres humanos. Na terra, há apenas uma raça: a raça dos filhos de Deus, ensina São Josemaria (cfr. É Cristo que passa, 13). Todas as pessoas – homens e mulheres, anciãos, sãos e enfermos – iguais em dignidade, merecem respeito e amor. Todos, mulheres e homens de qualquer idade, condição, estado ou ofício, nas circunstâncias em que se acham, no exercício de suas diversas atividades podem, apoiados na graça de Deus que é nosso Pai, alcançar a plenitude de vida, a santidade. Para tornar isso viável, Cristo estabeleceu a Igreja, que conserva e transmite sua doutrina e comunica a graça que torna possível o viver cristão. Essa é a grande tarefa dos filhos de Deus: santificar-se e contribuir, entregando-se como Cristo o fez, até a Cruz, para santificação dos outros. Neste horizonte da chamada universal à santidade, São Josemaria enquadrou a consideração da dignidade e do valor de toda pessoa.
Ensinou que o homem e a mulher possuem condições para realizar – segundo suas aptidões pessoais – todos os trabalhos que contribuem para o bem comum e dignificam a pessoa que os realiza. Por isso, desde o início de seu trabalho pastoral, abriu horizontes para as mulheres e os homens para que empreendessem com garbo e confiança em Deus o trabalho profissional que escolhessem livremente (Intelectual, manual, de gestão, etc.). E apresentou tanto aos homens como às mulheres que se incorporavam ao Opus Dei, um horizonte de vida espiritual e de formação doutrinal-teológica que lhes permitiria realizar com sentido cristão a tarefa profissional, familiar ou social que cada um deveria levar a cabo e nesse contexto dar vida a um profundo apostolado do testemunho e da doutrina.
Cumprir a vontade de Deus no dever de cada instante, santificando a própria ocupação ou ofício, requer o exercício das virtudes cardeais e morais. São Josemaria viu isso feito realidade em seus próprios pais, no lar em que Deus o fez nascer. Com convicção realista supera princípios gerais que limitam algumas virtudes ao homem ou à mulher: “Mais forte a mulher do que o homem, e mais fiel na hora da dor” (Caminho, 982); “Quem te disse que fazer novenas não é varonil? – Serão varonis essas devoções, sempre que as pratique um varão...” (Caminho, 574); “quem caluniou a mulher dizendo que a discrição não é virtude de mulheres?” (Caminho, 652).
As virtudes não constituem qualidades instintivas, é preciso que se criem raízes na alma com determinação, vencendo os obstáculos que o ‘eu’ ou as circunstâncias opõem. São Josemaria ensina que para se santificar é preciso partir da realidade de quem somos, com os pés na terra e a cabeça no céu. E adverte: “Somos homens e mulheres, não anjos. Seres de carne e osso, com coração e paixões, com tristezas e alegrias” (É Cristo que passa, 103). Ensina por isso a amar a Deus com a capacidade afetiva que, no plano humano, todos temos: “com o mesmo coração com o qual quero a meus filhos, com aquele que quis a meus pais”. Vai, ao mesmo tempo, ao encontro das possíveis dificuldades que se pode encontrar no caminho: expõe com clareza aos casados os meios que devem empregar para continuar fiéis até o fim, renovando o amor que os uniu; aos que não puderam ter filhos orienta para cuidar dos que os rodeiam, com a dedicação que possam assumir; aos solteiros impulsiona a amar a Deus com o coração indiviso; aos que ocupam posições relevantes na sociedade recorda sua responsabilidade; aos que realizam tarefas sem relevo aparente faz ver que nada está oculto aos olhos de Deus. A todos homens e mulheres convoca a alcançar uma profunda personalidade humana e cristã.
A igualdade fundamental do homem e da mulher, pregada por São Josemaria, manifesta-se na igualdade espiritual, moral e jurídica que caracteriza o Opus Dei. Há um mesmo espírito, uma única vocação e meios iguais para vivê-la: “O espírito é único, o mesmo para todos, aquele que Deus quis para esta Obra que é dele” (Carta 29/07/1965, n. 2: AGP, série A.3, 94-4-1). “Por essa identidade do espírito e do modo de fazer o apostolado, é norma geral estabelecida em nossas leis – precisava São Josemaria – que tudo quanto te escrevo está dirigido, normalmente, tanto a meus filhos quanto a minhas filhas, desde que, de alguma forma, não se diga claramente o contrário” (Carta 29/07/1965 n. 2: AGP, série A.3, 94-4-1).
2. Igualdade e diferença
São Josemaria entende a igualdade total: “Em um plano essencial – que deve ter reconhecimento jurídico, tanto no direito civil como no eclesiástico – (...) a mulher tem, exatamente como o homem, a dignidade de pessoa e de filha de Deus (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 87). Ele observa a igualdade no nível da natureza humana e no nível do ser pessoal e cita expressamente São Paulo: “já não há distinção de judeu, nem grego; nem de servo, nem livre; nem de homem, nem mulher” (cfr. Gl 3, 26-28). (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 14). Esta afirmação radical da igualdade reflete-se também em sua linguagem; é notável a frequência com que seus escritos acentuam expressamente – com o uso de expressões – que a doutrina que transmite dirige-se a todos: tanto cristãos como cristãs (cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 112), “cada homem, cada mulher” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 99), “homem – ou mulher – de uma só peça” (Sulco, 443), “de um homem de Deus, de uma mulher de Deus” (Sulco, 60; F, 649), “um varão católico – uma mulher católica” (F, 859), “cavalheiro cristão, mulher cristã” (F, 450), “não esqueças que cristão (...) significa homem – mulher – que tem a fé de Jesus Cristo” (F, 642), “a autêntica existência do homem cristão, da mulher cristã” (Amigos de Deus, 205).
A igualdade do homem e da mulher não suprime as diferenças entre eles. Com olhar realista, que se eleva do que é mais evidente aos sentidos a uma projeção do psíquico e espiritual, afirma: “a partir dessa igualdade fundamental, cada um deve alcançar o que lhe é próprio” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 87). Ao tratar o tema do homem e da mulher afirma basicamente, nesse sentido, a continuidade entre as dimensões biológica, psicológica e espiritual que se refletem na feminilidade e na masculinidade.
Às vezes alude a essas diferenças. Sobre a mulher diz que “está chamada a levar à família, à sociedade civil, à Igreja, algo característico que lhe é próprio e que só ela pode dar: sua delicada ternura, sua generosidade incansável, seu amor pelo concreto, sua agudeza de engenho, sua capacidade de intuição, sua piedade profunda e simples, sua tenacidade” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 87). Do homem, sua dedicação ao trabalho e sua capacidade para assumir com responsabilidade e iniciativa as tarefas que tem em mãos, que se destacam por exemplo, na figura de São José (cfr. Amigos de Deus, 40). Embora fale de diferença, detém-se, porém, com frequência para indicar que a dupla contribuição do homem e da mulher contribui para enriquecer o patrimônio comum. São Josemaria recorda a cada pessoa as virtudes do outro. Anima homens e mulheres a conquistar qualidades que, se bem que costumem destacar-se em um dos dois sexos, são objetivos de ambos: “Hás de ser, como filho de Deus e com sua graça, varão ou mulher forte (F, 792), propriedades que ajudam a viver uma “entrega – sacrificada e alegre – de tantos homens e mulheres que souberam ser fieis” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 71). Ele destaca que a mulher, “junto com o que tem em comum com o homem, leva à família, à sociedade civil, à vida da Igreja, algo peculiar, algo que lhe é próprio que só ela pode levar (...). Assim, feminilidade quer dizer a riqueza e a formosura e a necessidade de sua contribuição própria e insubstituível” (Carta 29/07/1965, n. 2: AGP, série A.3, 94-4.1).
São Josemaria proclama nitidamente a radical igualdade entre homem e mulher, mas rejeita ao mesmo tempo a uniformidade. Nem o homem deve imitar a mulher, nem a mulher o homem: “seria uma perda para a mulher: não porque seja mais ou menos que o homem, mas porque é diferente” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 87). A diferença é querida por Deus (cfr. Forja, 866): “não foi em vão que Deus os criou homem e mulher. Tal diversidade não se deve compreender em um sentido patriarcal (...) tanto o homem como a mulher devem sentir-se protagonistas da história da salvação, mas ambos de forma complementar” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá). Em suma, como diz João Paulo II: “Os recursos, pessoais da feminilidade não são sem dúvida menores que os recursos da masculinidade, são apenas diferentes” (Mulieris Dignitatem, 10).
3. Homem e mulher na sociedade e na Igreja
Da consideração precedente sobre igualdade e diferença entre homem e mulher se deduzem consequências práticas no campo da atividade humana. Os ensinamentos contidos nos escritos de São Josemaria levam, a nosso parecer, às seguintes afirmações: homem e mulher têm capacidade para cumprir as mesmas tarefas na sociedade, se bem que por suas diferenças específicas como mulher ou homem têm mais facilidade para algumas atividades ou capacidades diversas no desempenho de variadas tarefas; esta diferença não impede, porém, que possam realizar as mesmas funções, embora de modo diferente e complementar (cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 90). Ele nos situa assim diante de um critério que permite acolher eficazmente a diversidade pessoal como homem ou como mulher. São Josemaria fala concretamente deste possível ganho nos dois âmbitos principais em que atuam os seres humanos: a família e a sociedade civil.
“Da mesma forma que na vida do homem, embora com matizes bem peculiares, o lar e a família ocuparão sempre um lugar central na vida da mulher: é evidente que a dedicação a tarefas familiares representa uma grande função humana e cristã” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 87). Na mulher destaca-se o conjunto de qualidades ligadas à maternidade, que se podem resumir na sensibilidade, no cuidado das pessoas, imprescindível nas famílias e extensível a toda a sociedade.
Em virtude dos dotes naturais que lhe são próprios, a mulher pode estar presente também na vida civil, com particular eficácia: “Isto salta à vista, se olhamos para o vasto campo da legislação familiar ou social. As qualidades femininas serão a melhor garantia de que os autênticos valores humanos e cristãos serão respeitados quando se devem tomar medidas que de alguma forma afetem a vida da família, o ambiente educativo, o porvir dos jovens” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 90).
São Josemaria supera a divisão entre esfera privada e esfera pública, entendidas como mundos separados e reservados cada um a um tipo de pessoa. Em qualquer um dos dois âmbitos, os homens e as mulheres desenvolvem sua personalidade e contribuem para o progresso. Ele ensina que a dedicação às pessoas no lar é uma das tarefas de maior projeção social (cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 106); que os filhos são “mais importantes que os negócios, que o trabalho, que o descanso” (É Cristo que passa, 27); e aconselha, com relação à educação dos filhos, que tanto os meninos como as meninas devem aprender a colaborar nas tarefas do lar (cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 89). Esposos e esposas, pais e mães devem viver uma entrega reciproca que traz consigo idêntica série de esforços e tarefas (cfr. É Cristo que passa, 23, 25; Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 107), embora sejam realizadas do modo peculiar de cada sexo (cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 90)
Com relação à participação na vida social e pública, São Josemaria insiste especialmente no papel da mulher, que é o que mais mudou. Como o homem, a mulher deve formar-se para desempenhar qualquer trabalho – todos gozam de igual dignidade – e defende concretamente a presença dela na atividade política (cfr. Entrevistas comMons. Josemaria Escrivá, 87, 90). Mencionemos ainda o alento dado às iniciativas apostólicas desenvolvidas pelo Opus Dei para a promoção social da mulher (cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 27).
Sua reflexão sobre o laicado dá-lhe oportunidade para comentar que a igualdade essencial de homens e mulheres tem repercussão na vida da Igreja (cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 14). Assim ele o manifesta num texto claro no qual, tendo mencionado essa exceção do acesso ao sacerdócio ministerial, que por direito divino positivo é reservado ao homem, acrescenta que em todo o resto “penso que, à mulher, deve-se reconhecer plenamente na Igreja – em sua legislação, em sua vida interna e em sua ação apostólica – os mesmos direitos e deveres que aos homens: direito ao apostolado, a fundar e a dirigir associações, a manifestar responsavelmente a opinião própria em tudo o que se refira ao bem comum da Igreja, etc. (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 14). Quanto ao resto São Josemaria não só insiste muitas vezes na colaboração imprescindível da mulher no apostolado, fazendo-se eco das afirmações de São Paulo a esse respeito (cfr. Caminho, 980), mas ainda insiste na plena participação da mulher na vocação e na missão da Igreja.
Ao tratar deste tema, comenta que, apesar da clara fundamentação teológica desta realidade, trata-se de uma afirmação que encontra resistência em algumas mentalidades. Refere-se a quais mentalidades? À falta de entendimento sobre a missão dos leigos e aos preconceitos acerca da capacidade da mulher. Ocupa-se deste tema no estudo sobre a Abadesa de Las Huelgas, onde analisa historicamente – e critica – uma série de doutrinas de teólogos e canonistas que punham em dúvida a capacidade das mulheres para desempenhar tarefas de governo, ao mesmo tempo que louva os que intervieram no debate sustentando opinião contrária (cfr. La Abadesa de Las Huelgas, pp. 82, 84, 85, 90, 93, 112). Com relação à época contemporânea basta aludir – num texto amplamente conhecido – à sua grande contribuição para a teologia do laicado, e concluir com uma citação na entrevista concedida à revista espanhola Telva 1968: “Dediquei minha vida a defender a plenitude da vocação cristã do laicado, dos homens e das mulheres comuns que vivem no meio do mundo e, portanto, a procurar o pleno reconhecimento teológico e jurídico de sua missão na Igreja e no mundo (...). Cristianizar o mundo inteiro a partir de dentro, mostrando que Jesus Cristo redimiu toda a humanidade: essa é a missão do cristão. E a mulher participará dela do modo que lhe é próprio, tanto no lar, como nas outras ocupações que tenha, realizando as virtualidades peculiares que lhe correspondem” (Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 112).
Aurora Bernal Martínez De Soria