Eu vi lobos selvagens

“Raul: você é um rebelde. Procura uma resposta racional para cada pergunta. O seu lugar é a Igreja Católica”. Depois de receber este conselho de um amigo protestante, este músico bateu à porta da Igreja Católica.

Eu tinha dez anos. Estava entediado na casa da minha avó e comecei a mexer em armários e gavetas até que encontrei um livro bem grosso. Chamava-se A Bíblia.

— O que é isso, vovó?

— Um livro antigo – disse-me, rindo. Mas não o abra e deixe-o onde estava. Tenha cuidado, pois um rapaz da minha cidade leu este livro e ficou louco!

Esse foi meu primeiro encontro com o cristianismo. Não é muita coisa, mas a maioria dos meus colegas das juventudes comunistas de Tallin não tiveram nem isso.

Tentei ler aquele livro, mas, como não entendi nada, deixei-o de lado. Não queria ficar como o rapaz da cidade da minha avó, a única pessoa da família que acreditava em um ser superior. O resto de nós éramos bons comunistas, ateus convictos e materialistas práticos.

Sempre fui amigo do perigo e, quando era pequeno adorava subir nas árvores, quanto mais altas, melhor. Com onze anos, estava subindo pelo tronco de uma árvore enorme e, quando cheguei ao topo, da altura de um prédio de três andares, caí no chão.

Mais que as fraturas e contusões causadas, o que me machucava por dentro era o pensamento que me assaltou durante os breves momentos em que me vi à beira da morte. Pensei: será que irei para o Céu? Era uma pergunta estranha: meus pais e professores tinham me falado que depois da morte não havia nada. No entanto, a partir desse momento, essa pergunta permaneceu no fundo da minha alma.

Meu pai faleceu em 1983, quando eu tinha 12 anos. Com a sua morte, a sensação do absurdo da vida foi crescendo dentro de mim até tornar-se pavorosa. Nascíamos, vivíamos, morríamos: era só isso? Um sentimento de vazio começou a arrastar-me, como uma maré, em direção às margens da angústia, onde cresce esse galho negro cantado por Bob Dylan: Isaw a newborn baby... ...with wild wolves all around it / I saw a high way of diamonds with nobody on it, / I saw a black branch with blood / that kept drippin....[*]

Só a música me sustentava e, aos 16 anos entrei como guitarrista em uma banda de rock muito boa. Logo ficamos populares na Estônia. Triunfamos! E triunfar aos 18 anos pode ser a sua pior desgraça. Inclusive nos concederam vistos para tocar na Finlândia, fora do país, algo impensável naquela época!

Na Finlândia, além de tocar rock, beber vodca e tomar várias substâncias até perder o conhecimento, dediquei-me a uma série de atividades das que não me orgulho. O mais leve que posso dizer é que “perdi o rumo”. Introduzi-me no mundo do álcool, das drogas, das mulheres fáceis. Fiz coisas que prefiro nem falar porque ninguém gosta de lembrar o seu passado criminoso.

Ficamos famosos. As moças ficavam histéricas em nossos concertos. Para muitos éramos o “número 1” da Estônia. Isso significa que com 20 anos eu ganhava cinco vezes mais que qualquer profissional classe média. É fácil imaginar as consequências...

Numa ocasião nos ofereceram bicicletas russas bem baratas. E decidimos conseguir o dinheiro através da compra e venda de um carro roubado. Foi uma operação rápida. Compramos em Võru um Ford americano de um sujeito suspeito e o vendemos por um preço muito maior, com documentos falsos, para uns delinquentes russos. Depois o carro cruzou rapidamente a fronteira.

Às 7 da manhã bateram à porta de casa e me deparei com uns jovens chechenos que me disseram que eram os guardiães do carro e que, se não o devolvesse em dois dias, cabeças começariam a rolar.

Contratamos mercenários russos para nos protegerem, mas perdemos o controle da situação: os chechenos e os mercenários começaram a brigar, houve vários tiros e a polícia acabou informada do assunto. Se eu tivesse caído nas mãos dos chechenos eles me matariam. E se a polícia tivesse me prendido, eu acabaria contando tudo depois dos interrogatórios e, quando me soltassem, os outros me matariam. Ameaçaram a minha família e, pela primeira vez na minha vida, senti um medo indescritível.

Refugiei-me na casa da minha tia, onde passei vários meses confinado, sem aparecer na rua, usar o telefone ou assomar-me à janela. “Quantos degraus temos que descer até chegar ao fundo?”, perguntava o personagem de um filme. “O inferno não tem fundo”, respondia-lhe o outro. Não é verdade: o inferno tem fundo: você vai descendo e descendo, até que um dia você chega ao limite, a um ponto em que você não aguenta mais a tristeza e o desespero. Eu pensava: “se continuar assim, vou ficar louco”. Não suportava ficar escondido o dia todo e, uma noite, tive uma sensação parecida àquela da minha infância, quando caí do alto da árvore.

Sinto-me incapaz de descrevê-la. Estava na cama, profundamente abatido, quando entendi que não termina tudo aqui: existe alguma coisa maior. O que estou fazendo com a minha vida?, perguntei-me. E concluí, com uma estranha lucidez, que as coisas materiais, em vez de saciar, aumentam a sensação de vazio. E decidi procurar um sentido para a minha existência.

Minha tia tinha uma Bíblia em casa e comecei a lê-la pela segunda vez. Não entendi nada e deixei-a de lado de novo. Quando a situação ficou insustentável, consegui chegar até a Inglaterra, onde eu tinha um tio avô.

Fiquei lá durante três meses, e naquele tempo, não sei por que, comecei a rezar. A Quem? A Deus? Não sabia nada sobre Ele. Mas tinha a certeza, no fundo da minha alma, que Alguém me escutava.

Não serão fantasias?, eu me perguntava. No entanto, precisava rezar para continuar respirando, continuar vivendo. Numa ocasião, enquanto rezava, compreendi que a vida é muito linda para desperdiçá-la em noites de sexo e álcool.

Arrisquei uma volta à Estônia. O comunismo já tinha caído e, com ele, todo o mundo da minha infância e juventude. A antiga União Soviética tinha deixado de existir. Houve grandes mudanças políticas e sociais: novas legislações, anistias... Diante da polícia eu estava limpo. Mas não perante a minha consciência.

A única coisa que ainda tinha era a música. Eu a considerava culpada de ter me levado para aquele inferno (naquela fase da minha vida a culpa sempre era dos outros), mas foi ela que me salvou. Senão, o mais provável seria que eu já estivesse morto. Ou na prisão, como a maioria dos meus amigos daquela época. Tinha 27 anos e consegui encontrar um trabalho, o primeiro emprego completamente honesto da minha vida.

Comecei a ler livros de esoterismo, até desistir. Depois me interessei pela filosofia dos Hare Krishna, com a teoria do karma, o bhajan e o canto de mantras.... Não, não era isso. Talvez a resposta estivesse no xamanismo, zelosamente guardado pelas antigas culturas americanas... Li um autor que misturava misticismo e religião com rituais toltecas e estudos sobre alucinógenos. Também não estava lá. Do xamanismo passei às religiões orientais. E depois de ler muito, no fim de dez anos, eu me encontrava no mesmo ponto de partida: desorientado, sozinho e sem razão para viver.

Procurava Deus fora e longe. Isso era consequência da educação que eu tinha recebido: não podia imaginar que Deus pudesse estar dentro de mim e perto, e no meu próprio país. O cristianismo tinha má fama na Estônia comunista e desde que eu era pequeno tinham me falado que era uma superstição, um conjunto de mitos nos que ninguém acreditava, salvo três ou quatro velhinhas.

Mas as minhas leituras mostravam o contrário. Havia milhões de cristãos no mundo. Pensei em tantos grandes músicos, artistas e compositores cristãos: Bach, Beethoven, Michelangelo... até Tolkien, que estava no auge do sucesso naquela época com O Senhor dos Anéis. Como isso era possível? Valia a pena pesquisar sobre o que se tratava. Fui a uma livraria.

— Quero um livro sobre o cristianismo.

— Mas... ortodoxo, protestante ou católico? – Perguntou-me a atendente.

Fiquei desconcertado. Não sabia tanto. Procurei nos fóruns da internet e comecei a distinguir entre uns e outros. Mas os que intervinham nesses fóruns não me ajudaram muito a esclarecer as ideias. Uns defendiam o Papa, outros o chamavam de anticristo. O que é isso?, pensei.

Comecei a frequentar algumas igrejas, sem saber que eram de confissões diferentes. Sentia-me fora de lugar, desorientado. Por outro lado, meus familiares e amigos ateus riam de mim. “Esqueça, Raul!”, diziam-me, pensando que, algum dia, as minhas inquietações espirituais se desvaneceriam no ar.

O tempo passava. E cheguei à conclusão de que encontrar o sentido da minha existência era uma questão suficientemente importante para dedicar-me a isso com mais seriedade. No começo do ano 2000 eu já estava assentado profissionalmente no mundo da música e decidi procurar outro caminho. Matriculei-me na universidade e comecei a estudar o cristianismo sob a direção de professores especialistas. A maioria eram luteranos e batistas. Não havia nenhum católico.

Nas aulas, eu encontrei um velho amigo, que se preparava para ser pastor protestante. Até que enfim teria alguém com quem conversar! Disparava-lhe milhões de perguntas e ele me respondia como podia. Em meio a minhas dúvidas e lacunas, as peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar e compreendi que a mensagem de Cristo dava sentido a tudo.

Até que um dia, o meu amigo protestante fez um comentário surpreendente:

— Raul: você é um rebelde. Procura uma resposta racional para cada pergunta. O seu lugar é a Igreja Católica.

Fui conversar com dom Philippe, o bispo de Tallin. Descobri os ensinamentos da Igreja, cheios de amor à razão. Conheci algumas pessoas do Opus Dei, que me ajudaram a aprofundar na fé. Depois de pouco tempo, decidi me batizar.

Contei para minha esposa. Estávamos juntos há vinte anos e ela também tinha participado daquela longa peregrinação a Deus. Bem, na verdade o que realmente aconteceu foi o contrário: era Deus quem esteve me procurando e fazendo-se encontrar em nosso caminho. Em 2010 nos casamos pela Igreja e batizamos nossos filhos.

Atualmente continuo me dedicando à música, embora também faça outros trabalhos para sustentar a minha família, sempre relacionados a esta maravilhosa arte. De vez em quando participo em concertos de rock e música pop, tocando o estilo que me apaixona, o blues.

Agora penso que a minha avó tinha razão: quem lê a Bíblia corre o risco de ficar louco.

Mas de alegria.

Tradução: Mônica Diez

Testemunho de Raul Ukareda, publicado no livro “El baile tras la tormenta”.


[*] Vi um recém-nascido cercado por lobos selvagens / Vi uma estrada de diamantes sem ninguém sobre ela / Vi um galho negro que pingava sangue.

Pablo J. Ginés/ ReL