"Debaixo do caminhão encontrei a Deus"

Celia é de Málaga (Espanha), tem 20 anos e estuda na Universidade de Navarra. Em dezembro do ano passado, ia a caminho da biblioteca para revisar a matéria antes da última prova. Eram 08h32min da manhã quando um caminhão deu marcha à ré e a atropelou. Quase morreu. O acidente marcou sua vida, não como uma desgraça, mas como um renascer.

No dia 15 de dezembro passado, no início da manhã, ia à biblioteca, quando passei por trás de um caminhão, que começou a dar marcha à ré, e me derrubou completamente, passando por cima de mim. Poucos segundos depois, havia muita gente ao meu redor, olhando, paralisados, sem saber o que fazer. Eu só queria me levantar e sair correndo para estudar, porém não conseguia me mexer. Tinha a perna totalmente virada e dobrada. Ao ver os rostos das pessoas, soube que estava muito mal e comecei a gritar para que me tirassem dali.

Até que, nesse momento, fui consciente de que minha vida estava indo embora, eu estava morrendo

Quando a ambulância chegou perguntei a uma enfermeira se ia poder voltar a andar e ela me respondeu: “Claro que não, você acabou de quebrar a sua coluna”.

Comecei a desmaiar, a apagar, tinha perdido muito sangue. Porém, apesar da agitação dentro do veículo, senti uma paz imensa. Quando somos jovens, pensamos que viveremos 100 anos, que a morte é algo muito longínquo. Pelo menos eu pensava. Até que, nesse momento, fui consciente de que minha vida estava indo embora, eu estava morrendo.

Meus pais, do outro lado do país

Do hospital ligaram para os meus pais para avisá-los de que eu sofrera um acidente. Primeiro disseram que tinha quebrado a perna e, com o passar das horas, conforme iam tendo mais dados, voltavam a ligar acrescentando mais coisas. A viagem de trem de Marbella a Pamplona para eles foi eterna. Iam ficando mais nervosos a cada momento, já que as notícias chegavam a conta-gotas. Disseram que foi como se tivessem colocado uma venda nos olhos que impedia de ver a gravidade em que me encontrava. E, ao entrarem no hospital, caíram na realidade.

22 dias na UTI, quatro operações e mais de 12 fraturas. A dor ensina a colocar cada coisa no seu lugar.

Ao chegar, minha mãe fez uma pergunta ao médico e este respondeu que aquilo não era relevante nesse momento, porque o que estavam fazendo era tentar salvar a vida de sua filha. Deram-lhes duas bolsas de plástico: uma com as minhas pulseiras e outras com os meus pertences. Meu pai pensou que receberia uma terceira bolsa comigo dentro. E de fato foi um milagre não ter sido assim.

A vida numa cama de hospital

22 dias na UTI, quatro operações e mais de 12 fraturas. A dor ensina a colocar cada coisa no seu lugar. Há coisas insignificantes que, de repente, você começa a valorizar muitíssimo. Por exemplo, lembro-me que, desde que entrei na ambulância, fiquei pedindo um copo de água e não me davam. Ao acordar na UTI o mesmo, e nada. Até que um dia me deram e o vi como “O COPO D’ÁGUA”. É uma coisa muito simples, porém como o valorizei... E assim foi acontecendo com tudo, desde o menor ao que realmente é importante, como a amizade ou a minha família.

Acreditamos que a vida se reduz a planos, a tempo. Mas não; a vida é acima de tudo amar, servir, desfrutar.

Descobri o valor de “perder o tempo” pensando. Quem sou, o que quero, o que tenho; uma reflexão sobre a vida que nunca tinha feito e que me levou a conhecer-me melhor e a definir metas para mim mesma. Metas que estou curtindo muito. Aprendi a olhar para frente e ver que há muita gente que está como eu, ou em situações piores, que posso ajudá-las e que podem me ajudar, e isso é muito gratificante. Acreditamos que a vida se reduz a planos, a tempo. Mas não; a vida é acima de tudo amar, servir, desfrutar.

Três coisas que começam com a letra “A”

Embora minha família seja cristã, sempre tinha considerado a religião como algo imposto, alheio a mim, sem o sentido profundo que tem. Desde o acidente isso mudou.

O relacionamento com Deus é algo muito pessoal. Cada um tem seu momento para encontrar-se com Ele e eu O encontrei debaixo de um caminhão. Quando estava no chão, entre as rodas, me senti sustentada por Deus e comecei a rezar. Mais adiante, na ambulância, percebi que estava morrendo. E foi aí quando disse a Deus que me abandonava n’Ele e que acontecesse o que Ele quisesse; que eu queria viver, porém se Ele queria que eu morresse, não tinha problema porque me sentia com uma grande paz, sustentada em seus braços, e não tinha medo de morrer.

O relacionamento com Deus é algo muito pessoal. Cada um tem seu momento para encontrar-se com Ele e eu O encontrei debaixo de um caminhão

Durante os dias na UTI, o capelão do Colégio Maior onde moro veio ver-me todos os dias e me trazia a Comunhão. Quando me deram alta e saí do hospital, percebi o muito que me ajudara poder comungar, algo que nunca havia valorizado.

Agora, ir à Missa todo dia é uma necessidade que tenho. O fato de que seja algo que sai de mim e não do exterior, faz com que o meu relacionamento com Deus seja mais íntimo, mais sólido que antes. Agora falo com Ele cara a cara.

A partir daquele dia, minha vida deu uma guinada enorme. Procuro viver fazendo três coisas que começam com a letra “A”: Adorar (a Deus), alentar (elogiar a todas as pessoas que cuidam de mim, me visitam e estão perto de mim) e agradecer (todos os serviços grandes ou pequenos que me prestam).

Minhas cicatrizes são uma recordação do que sou

Se o primeiro milagre foi sobreviver, o segundo foi que não tenho sequelas, nem uso muletas. Recuperei-me tão rápido que inclusive pude viajar a Tel Aviv no mês de junho com alguns colegas da universidade, como prêmio de um concurso de empreendedorismo e inovação.

Celia teve a oportunidade de cumprimentar ao prelado do Opus Dei, em Pamplona.

A vida é um presente que não nos pertence. Por isso é preciso desfrutá-la e viver com paixão cada momento, porque não sabemos até quando viveremos. Quem me diria que ia ser atropelada por um caminhão dentro da universidade! Era algo impensável. Mas ocorreu. Não me alegro de ter passado por isso, porém dou graças a Deus pelo que aprendi graças ao acidente.

Há uma tradição japonesa, Kintsugi, que consiste em consertar com ouro os grandes vasos de cerâmica que quebram. As fraturas tem mais valor, dão ao vaso uma história, levam-no para o passado. Isso são as minhas cicatrizes. E afinal esse passado faz parte de mim e é o que me faz ser como sou, o que dá valor a como sou. Como um grande vaso de porcelana fina que cai ao chão, me quebrei em pedaços e renasci de cada uma das minhas cicatrizes.