Cor Mariae dulcissimum, iter para tutum!

“O Fundador do Opus Dei”, biografia escrita por Andrés Vázquez de Prada

O Padre teve de passar em Roma o verão de 1951. As circunstâncias obrigaram-no – é expressão sua – a permanecer ao pé do canhão. Isso representava para ele um sacrifício notável, pois estava extenuado de pois de todo um ano acadêmico de muito trabalho, com a casa semiconstruída e a ameaça dos rigores estivais do ferragosto romano. A isso somavam-se as alterações próprias da diabete: já naquela época, os padecimentos tinham-se tornado tão intoleráveis que – levando para a brincadeira – o Padre dizia que lhe traziam continuamente à lembrança o Purgatório. Por outro lado, havia já um certo tempo que observava uma mudança quase imperceptível de atitude em algumas pessoas da Cúria. Um dia chegava aos seus ouvidos um comentário levemente crítico; outro, um Cardeal, seu velho conhecido, negava em público ter-se relacionado com ele[46].

Por esses e outros indícios, começou a suspeitar que se vinha tramando alguma coisa, sem que conseguisse definir nem saber realmente em que consistia. Tais sinais, referidos à Obra e centrados nela, indicavam-lhe a presença de algo suspeito. Sem dúvida, uma grave ameaça pairava sobre o Opus Dei. E, ainda que fossem mais pressentimentos difusos do que notícias, um singular rebate acabou por dominar as suas reflexões, hábitos e até gestos, deixando-o alegre e preocupado ao mesmo tempo. Fazia brincadeiras, mas insistia muito em que se rezasse pelas suas intenções na oração. O seu estado de ânimo refletia-se numa inquietação muito especial, num desassossego interior que transparecia no seu olhar e até no seu modo de caminhar.

“Como sempre – testemunha Encarnación Ortega –, recorreu à oração e à mortificação. Passava dias inteiros sem comer nada ou praticamente nada, coisa que nos fazia temer pela sua saúde. Também sabíamos que dormia muito pouco. E cada dia era mais premente a urgência com que nos fazia rezar, e mais intenso o modo como ele próprio rezava. Um dia, mandou-nos interromper todas as atividades que nos ocupavam e ir durante meia hora ao oratório para «forçar» o Senhor com a nossa oração [...]. Parece-me que foi uma das vezes em que, em toda a nossa vida, mais pusemos o coração para pedir a Deus que ajudasse o nosso Padre”[47].

Num desses dias – estava-se na primeira metade do verão de 1951–, o Padre Josemaria passeava pelo jardim de Villa Tevere, concentrado, com passo rápido, e tomando notas numa agenda de bolso, quando se aproximou dele um dos seus filhos, Javier Echevarría:

– Como está, Padre?, perguntou-lhe.

Cheio de paz e com fortaleza santa: como um leão, disposto a defender esta Obra de Deus que o Senhor me confiou. Reza e ajuda-me[48]. Essa foi a sua resposta.

Apesar de desconhecer o teor concreto do problema, o Padre intuía uma nova contradição para a sua pessoa e para toda a Obra. Esse obscuro pressentimento chegava até à medula do seu ser[49]. Vislumbrava um sério perigo, mas de uma maneira tão vaga que não podia libertar-se da impalpável sensação que lhe produzia pressentir um perigo próximo, sem conseguir saber de que lado viria o golpe. Sentia a invisível ameaça, em tensão, com todos os sentidos em atitude de alerta, à espera de ser atacado:

Sinto-me como um cego que tem que se defender – dizia-lhes o Padre –, mas não pode senão dar bengaladas ao ar; porque não sei o que acontece, mas alguma coisa acontece...[50]

Esse pressentimento, porém, ainda que o trouxesse inquieto, era uma graça divina que empurrava toda a Obra para a Cruz de Cristo, com o Fundador à frente. O Senhor permite tais escuridões para que nos santifiquemos e para que a Obra se fortaleça mais[51], escrevia pouco depois.

Em anteriores campanhas de calúnias, intrigas e vilanias, sabia a quem recorrer, como responder e a quem replicar. Agora teria de lutar contra sombras impalpáveis. Perante a “contradição dos bons”, os amigos costumavam aconselhar-lhe dois tipos de comportamento. Uns diziam que o melhor era calar-se e deixar que caluniassem, envolto numa capa de humildade; assim, encaixando os golpes em silêncio, os inimigos não teriam oportunidade de armar um escândalo. Outros, pelo contrário, eram partidários de que proclamasse a verdade aos brados; e, portanto, animavam-no a defender-se: responder, refutar e rebater os detratores. O Padre Josemaria pensava que as duas opiniões eram razoáveis e cristãmente compatíveis. Não era fácil, contudo, adivinhar o justo modo de fazer as coisas, porque, refletindo sobre a forma como devia conduzir-se, e ainda que tivesse a melhor boa vontade, sempre levava a pior. Mas a culpa não era sua, como resume ao registrar a história das perseguições sofridas:

Os acontecimentos sempre me demonstraram que eu me encontrava, na realidade, na mesma situação que se relata no apólogo do pai, do filho e do asno. Fizesse o que fizesse, surgiam murmurações[52].

(Tudo eram objeções e tergiversações. Acontecia-lhe a mesma coisa que ao lavrador que voltava do campo com o filho[53]. Ia ele feliz, montado sobre o seu asno, satisfeito da vida, quando deparou com um vizinho, que criticou a sua conduta: – Veja só, como vai satisfeito!; e o filho que o parta um raio!

Apeou-se o velho e montou o filho no asno. Um pouco mais adiante, uma mulher encarou-os: – Como!, exclamou indignada. É o pai que vai a pé? O filho devia ficar envergonhado!

O garoto desceu do burro, e pai e filho caminhavam ao lado do animal quando alguém lhes lançou uma indireta: – Cuidado, que o asno vai cansar-se!

Não sabendo o que fazer, montaram os dois. No último trecho do caminho, o burro avançava já meio trôpego quando alguém lhes gritou:– Mas como vocês são bestas! Não veem que o pobre animal já não aguenta mais?)

A situação em que o Padre se encontrava era muito confusa; e a ameaça, invisível. A quem poderia rebater?; e acerca de quê? Não podia permanecer inativo. Interiormente, sentia que uma força misteriosa o impelia a defender a Obra com unhas e dentes: – Meus filhos – costumava comentar aos que tinha ao seu redor naqueles momentos –, estou como um leão que ruge, tamquam leo rugiens, em vigília, para que o diabo não nos morda[54].

Tinha a impressão de que andava sobre areia movediça. O Pe. Álvaro, para apaziguar as suas inquietações, apresentava-lhe argumentos de alegria: Padre – dizia-lhe –, se tudo corre bem, se há muitas vocações e, graças a Deus, há muito bom espírito por parte de todos![55] Mas o Padre insistia em que era preciso fazer alguma coisa. Uma força divina arrastava-o, por necessidade sobrenatural, a agarrar-se ao manto de Nossa Senhora, como explicaria depois aos seus filhos: Como não encontro na terra quem de verdade e decididamente nos ajude, dirigi-me à Nossa Mãe Santa Maria[56].

Em 9 de agosto escreveu a toda a grande família do Opus Dei, dizendo-lhes que na festa da Assunção celebraria a Santa Missa em Loreto:

E ali, dentro daquela casinha da Sagrada Família, Jesus, Maria e José, farei a consagração do Opus Dei ao Coração Imaculado de Maria.

Depois, todos os anos, com a fórmula que vos enviarei, renovaremos esta consagração em todas as nossas Casas e Centros.

Vai ser uma consagração ambiciosa, porque consagraremos também os povos e nações que estão longe do seu Filho Divino.

É bem próprio do nosso espírito! Uni-vos a mim, especialmente nesse dia![57]

Por essas datas, exortava os seus filhos a repetir incessantemente, incansavelmente, uma jaculatória que estava sempre nos seus lábios: Cor Mariae dulcissimum, iter para tutum![58], para que o Coração Dulcíssimo de Maria protegesse o caminho da Obra.

Na manhã de 14 de agosto, sob um sol terrível, o Padre e o Pe. Álvaro, acompanhados por outros dois membros da Obra, partiram de Roma de carro. Tomaram a Via Salaria e depois foram até à costa adriática. Sem parar no caminho, chegaram à Basílica de Nossa Senhora de Loreto e marcaram a missa para o dia seguinte, no altar da Santa Casa. A meio da tarde, foram até Ancona, onde passaram a noite.

No dia seguinte, festa da Assunção, o Padre estava em Loreto antes das nove da manhã, com a basílica cheia de gente vinda dos arredores. A Santa Casa, onde celebrou a missa, é um pequeno recinto no meio do templo, onde se comprimia uma multidão fervorosa que tinha ido ali precisamente por ser a festa de Nossa Senhora. O Padre tentava celebrar a missa com todo o recolhimento, mas as manifestações espontâneas de piedade dos assistentes não o deixavam concentrar-se:

Assim, enquanto eu beijava o altar, nos momentos prescritos pelas rubricas da Missa, três ou quatro camponeses beijavam-no ao mesmo tempo. Distraía-me, mas estava emocionado. E também me atraía a atenção o pensamento de que naquela Santa Casa – que a tradição assegura ser o lugar onde viveram Jesus, Maria e José –, em cima da mesa do altar, se tinham gravado estas palavras:Hic Verbum caro factum est [“Aqui o Verbo se fez carne”]. Aqui, numa casa construída pelas mãos dos homens, num pedaço da terra em que vivemos, habitou Deus![59]

Depois de voltar à sacristia, enquanto o Pe. Álvaro celebrava a missa às nove e meia, o Padre conseguiu refugiar-se no corredor que passa por trás do altar da Santa Casa. Ali fez a Consagração ao Coração Dulcíssimo de Maria, imagem perfeita do Coração de Jesus. Em nome de todo o Opus Dei, dizia à Virgem Maria:

Nós Vos consagramos o nosso ser e a nossa vida; tudo o que é nosso: o que amamos e somos. Para Vós os nossos corpos, os nossos corações e as nossas almas; vossos somos nós e os nossos apostolados[60].

Permaneceu de joelhos durante todo o tempo que durou a missa do Pe. Álvaro. Estava sozinho, absorto em oração, sem notar os encontrões e pisadelas do povo que desfilava continuamente pelo corredor, implorando graças ao Coração de Maria:

Inflamai os nossos pobres corações para que amemos com toda a alma a Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo; infundi-nos um amor grande à Igreja e ao Papa, e fazei-nos viver plenamente submissos a todos os seus ensinamentos; dai-nos um grande amor à Obra, ao Padre e aos nossos Diretores; fazei com que, fiéis à nossa vocação, tenhamos zelo ardente pelas almas; elevai-nos, Senhora, a um estado de perfeito amor de Deus e concedei-nos o dom da perseverança final[61].

Ao sair, o Padre percebeu que trazia a batina pisoteada. Depois de tomar o café da manhã, empreenderam o regresso a Roma. O calor era forte, mas ia muito contente. Fazendo oração. Metido em Deus. Em silêncio. Dando graças. Naquela mesma tarde, esteve com as suas filhas e com os seus filhos. Contou-lhes de onde vinha e que a consagração à Virgem Maria lhe dava a certeza de que uma vez mais Nossa Senhora tomaria o Opus Dei sob o seu amparo. E encarregou--os de continuar a suplicar ao Coração Dulcíssimo de Maria: iter para tutum[62] [“prepara um caminho seguro”].

Cheio de paz e confiança, fez novas peregrinações a diversos Santuários marianos para agradecer os benefícios recebidos, e em todos esses lugares renovou a Consagração feita em Loreto. Em 21 de agosto, foi em peregrinação a Pompéia; e no dia 22 ao Divino Amore. No mês de outubro, foi a Lourdes no dia 6 e celebrou a missa ali no dia 7. No dia 9, foi de Lourdes a Saragoça e ali prostrou-se aos pés da Virgem do Pilar. A seguir, depois de atender pessoas relacionadas com os apostolados da Obra em Madri, visitou os seus filhos de Portugal e no dia 19 renovou a consagração em Fátima[63].

* * *

Com a costumeira bênção do Padre e uma imagem de Nossa Senhora, a 8 de dezembro de 1949 tinham partido para Milão os primeiros membros da Obra, para começar de modo estável, in paupertate et laetitia, o trabalho apostólico nessa capital. Nesse mesmo mês, juntara--se a eles Juan Udaondo, como sacerdote do Centro. Umas semanas depois, o diretor e o sacerdote do Centro tinham visitado o Cardeal Schuster.

– O senhor é um sacerdote que pertence a uma instituição de direito pontifício e eu sou o Bispo desta diocese – dissera o Cardeal a Juan Udaondo –. Como vamos fazer para acertar o passo?

– O nosso Fundador – explicara-lhe o sacerdote – sempre nos ensinou a servir a Igreja como a Igreja quer ser servida, e a puxar da carroça na direção que o Bispo marcar. Desejamos mantê-lo informado do nosso trabalho, pelo menos tanto como os párocos das suas respectivas paróquias, se não mais[64].

No verão de 1951, as pessoas da Obra que residiam em Milão passaram o mês de agosto numa casa perto de Roma, em Castelgandolfo, onde assistiram a um curso de formação.

Regressaram a Milão em setembro e, ao cabo de uns dias, visitaram o Cardeal, que os acolheu como se estivesse impaciente por vê-los: Onde estiveram durante todo este tempo?, perguntou-lhes. Mandara o pároco avisá-los de que queria vê-los, mas o pároco encontrara a casa fechada. Tinha alguma coisa para lhes dizer. Haviam-lhe relatado coisas incríveis, calúnias grosseiras, a respeito da Obra. Mas podiam ficar tranquilos, porque ele estava muito contente de tê-los na sua diocese. Acrescentou, porém, com um ar de quem refresca a memória: Quem foi que me disse?, quem foi que me disse?... Alguém que está muito alto disse-me!... E deixou a frase em suspenso[65].

Transmitiram imediatamente ao Padre a conversa mantida com o Cardeal. Passados dois dias, em 28 de setembro, o Padre indicou-lhes que visitassem novamente o Cardeal e, depois de o terem considerado na oração, lhe contassem, ponto por ponto, e de maneira precisa e concreta, o que tinha acontecido na Espanha: ataques do púlpito em 1940, consequentes falatórios, informações falsas a alguns Bispos, panfletos caluniosos, denúncias à autoridade civil, visitas às famílias, etc.[66] O Cardeal escutou-os com atenção, repetindo-lhes que estava muito contente com o trabalho da Obra em Milão.

* * *

Em 5 de janeiro de 1952, o Procurador Geral do Opus Dei, Pe. Álvaro del Portillo, recebeu um documento oficial do Secretário da Sagrada Congregação para os Religiosos, Mons. Larraona, em que cortesmente lhe pedia “cópia das Constituições do Opus Dei e do Regulamento interno da Administração, com um relatório escrito – doutrinal e prático – sobre o regime do Instituto nas suas duas Secções, bem como o modo concreto de levar a cabo a singular colaboração sancionada pelas Constituições”[67].

O Pe. Álvaro respondeu com toda a urgência; a sua carta de resposta ao Secretário tem a data de 6 de janeiro. Com ela, enviaram-se anexas cópias dos Estatutos do Opus Dei e do Regulamento interno da Administração doméstica, além de um documento de dez páginas em que se explicava minuciosa e fundamentadamente a separação existente entre as duas Secções da Obra, o seu regime e relações.

“Para poder entender e enquadrar retamente, seja in iure ou de facto, as relações que existem entre os dois ramos do Opus Dei começava por dizer o documento –, seja-nos permitido sublinhar que é preciso ter presente e avaliar, no seu justo peso, o que a Constituição Apostólica Provida Mater Ecclesia sancionou definitivamente na ordem doutrinal dos princípios jurídicos e na ordem prática da vida”[68].

Para que pedir uma cópia do Direito particular do Opus Dei? Ainda que o Pe. Álvaro não fizesse explicitamente essa pergunta no seu escrito, a sua resposta e o seu raciocínio exalavam um leve espanto. Com efeito, os argumentos expostos pelo Procurador Geral deixavam pairar no ar uma interrogação: por acaso esse Direito particular do Opus Dei não fora escrupulosa e acuradamente examinado, estudado, aprovado e sancionado? Porque era evidente que os Estatutos tinham obtido o nihil obstat do Santo Ofício em outubro de 1943 e, ainda em 1943, por ocasião da ereção diocesana, tinham sido submetidos a um rigoroso e exaustivo exame pela Sagrada Congregação para os Religiosos; e outra vez, em 1947, quando se concedera o Decretum laudis; e de novo em 1950, quando se solicitara a aprovação definitiva do Opus Dei[69]. E esse serviço doméstico, realizado pelas mulheres nas Administrações das casas do Opus Dei, não fora porventura expressamente louvado e enriquecido com indulgências por Pio XII, no Breve pontifício Mirifice de Ecclesia, de 1947?[70]

Era evidente que tinha chegado à Cúria algum tipo de denúncia, em particular acerca da unidade jurisdicional dos dois ramos do Opus Dei, e alguém se tinha encarregado também de que a manobra surtisse efeito. Estando as coisas nesse pé, o Fundador recebeu poucos dias depois uma carta dos seus filhos de Milão e um relatório de Juan Udaondo acerca da visita que acabava de fazer ao Cardeal Schuster:

“Milão, 15 de janeiro de 1952.

Esta manhã, fui com Juan Masiá visitar o Cardeal Schuster. Perguntou-nos como andavam as nossas coisas: dissemos que iam bem e imediatamente depois perguntou-nos se o nosso Presidente – referindo-se ao Padre – tinha alguma Cruz. Respondi-lhe que nunca faltavam cruzes ao Padre, mas que para nós a cruz era sinal de alegria e predileção divina e que o Padre nos diz muitas vezes que «um dia sem cruz é um dia perdido e que Jesus Cristo, Sacerdote Eterno, abençoa sempre com a Cruz». Então o Cardeal disse--nos que tínhamos de estar preparados, porque certamente as perseguições continuariam e que ele, lendo a história das obras de Deus e as vidas dos seus fundadores, tinha percebido que o Senhor sempre permitira contradições e perseguições, e que até tinham sido submetidas a visitas apostólicas, e o Fundador deposto do seu cargo de Superior. Falava-nos com carinho; via-se que estava preocupado com a Obra e com o Padre e dizia-nos que não desanimássemos se nos acontecesse alguma dessas coisas, que devíamos continuar a trabalhar com muito empenho e repetiu várias vezes: Continuate a lavorare, avanti, coraggio, etc.

Tanto Juan como eu escutamo-lo muito tranquilos e dissemos--lhe que não se preocupasse, que a Obra era de Deus e que o Senhor tinha acostumado o Padre e todos nós à perseguição; que em todas estas coisas o Padre nos tinha feito ver sempre a mão de Deus e que a Obra superaria todas as perseguições, que para nós são um motivo de alegria e nos ajudam e nos estimulam a ser santos e a trabalhar unicamente pelo Senhor”[71].

Com isso, o Fundador ficava informado da origem da contradição, mas não dispunha de dados concretos e suficientes para acusar quem quer que fosse ou para organizar uma defesa apropriada. Pensou, contudo, que seria conveniente reforçar o escrito de 6 de janeiro sobre o regime das duas Secções da Obra. O Pe. Álvaro del Portillo, como Procurador Geral, escreveu pela segunda vez, em 3 de fevereiro, ao Secretário da Sagrada Congregação para os Religiosos, Pe. Larraona, homem justo e reto, que conhecia o lado jurídico do Opus Dei, como já vimos. No fundo, o novo escrito vinha mostrar como era imprudente e injusto semelhante modo de proceder da Cúria, e o risco que corria a fama de toda uma Instituição ao submetê-la, repentinamente, a um processo investigativo. Se vinha funcionando sem escândalo, sem incidentes, com eficácia, durante quase um quarto de século, por que pensar agora em mudar a sua estrutura? O fato de que se reexaminassem os seus Estatutos não levantaria necessariamente suspeitas infundadas, que os caluniadores se encarregariam de difundir aos quatro ventos, como se se estivessem tomando medidas contra o Opus Dei por causa de algum oculto escândalo?[72]

Perante uma operação tão improcedente, o Fundador, confiado na intercessão de Nossa Senhora, recuperou o otimismo:

Eu espero – escrevia a Madri, em 9 de fevereiro – que, com a graça de Deus e porque é de justiça, isto tudo fique em águas de bacalhau. Cor Mariae dulcissimum, iter para tutum![73]

Enquanto aguardava o desenlace dos acontecimentos, chegou-lhe de Milão um aviso urgente. O Cardeal Schuster estava sobre brasas nessa temporada. Quando as pessoas da Obra o visitaram de novo em 18 de fevereiro de 1952, mal trocaram os primeiros cumprimentos, o Cardeal perguntou imediatamente pelo Fundador:

– “Não tem nestes momentos uma grande Cruz?

– Se for assim, deve estar muito contente, porque sempre nos ensinou que, se estamos junto da Cruz, estamos muito perto de Jesus – responderam-lhe.

– Não, não é isso – interrompeu-os –. Conheço a cruz do vosso Fundador. Dizei-lhe da minha parte que se lembre do seu conterrâneo São José de Calasanz, e que se mexa”[74].

Quando a carta de Milão chegou às mãos do Padre, o papel já tinha absorvido as lágrimas de quem a escrevera. O Padre Josemaria compreendeu perfeitamente a mensagem do Cardeal, e em que consistia a tenebrosa trama armada contra a Obra. Pretendiam dividi-la em duas instituições separadas e alheias uma à outra, uma para homens e outra para mulheres. Para isso, bastava decapitá-la. Removido o Padre, ficava desfeita a sua unidade: “Percutiam pastorem et dispergentur oves[75] [“Ferirei o pastor e as ovelhas dispersar-se-ão”].

O Fundador agiu com rapidez. Procurou o Secretário da Congregação para os Religiosos e disse-lhe:

Saibam que, se me tiram do cargo de Presidente Geral sem me explicarem os motivos, a minha dor durará apenas quatro segundos; até me farão um favor, porque pedirei a admissão e serei o último no Opus Dei, como sempre desejei. Mas se me afastam da Obra, saibam que cometem um crime, porque me assassinam[76].

Indagou qual era o motivo daquele rebuliço. Informaram-no de que não havia nenhum. O que havia, sim, era uma forte pressão por parte de certas pessoas. (Era óbvio que estava de permeio o segredo de ofício. Nem lhe disseram nem ele tentou averiguar o nome dos ocultos promotores).

O passo seguinte foi falar com o Cardeal Tedeschini que, em 24 de fevereiro de 1952, tomara posse do cargo de Cardeal Protetor do Opus Dei[77].

Nessa ocasião, o Padre Josemaria preparou uma carta, vazada em estilo firme e sincero, e, acompanhado pelo Pe. Álvaro, foi visitar o Cardeal, a quem entregou a carta, que lhe estava dirigida. O Cardeal leu-a com calma e prometeu que o seu conteúdo chegaria ao conhecimento do Santo Padre. A carta estava datada de 12 de março de 1952[78]. Todo o Opus Dei se encontrava nesses dias entregue a uma intensíssima oração, enquanto o Padre, com a alma em suspenso, deixava entrever aos seus filhos um coração angustiado:

Meu filho – dizia a um deles –, quantas vezes não me ouviste dizer que teria gostado de não ser da Obra para pedir imediatamente a admissão e obedecer a todos e em tudo, ocupando o último lugar? Tu bem sabes que não quis ser fundador de nada. Foi Deus quem assim o quis. Viste como querem destruir a Obra e como me atacam? Querem expulsar-me da Obra [...]. Meu filho, se me expulsam, matam-me; se me expulsam, assassinam-me. Já o disse a eles: ponham-me no último lugar, mas não me expulsem; porque, se me expulsam, cometem um assassinato[79].

Na véspera de São José, 18 de março, Tedeschini obteve uma audiência com o Papa e leu a Pio XII a carta que o Padre Josemaria lhe dirigira na semana anterior. O tom da exposição era elevado, sincero e familiar. Evidentemente, podia-se empregá-lo com o Cardeal Protetor, em total abertura de alma; mas os conceitos, mesmo convenientemente envoltos em delicadeza de linguagem, eram duros tratando-se do Sumo Pontífice. Impunha-se, no entanto, que a mensagem chegasse ao Papa de forma clara e direta, porque eram muitas as razões para suspeitar que os que moviam os fios daquele tenebroso assunto tinham acesso direto ao gabinete do Pontífice.

O Cardeal Tedeschini lia, pois, em voz alta, e o Papa seguia-o com atenção:

Roma, 12 de março de 1952.

Eminência Reverendíssima:

Depois de tantos anos como amigo e protetor de facto [...] e agora, por disposição soberana do Sumo Pontífice, Protetor de iure do Opus Dei, e sendo pessoa que sempre seguiu com vigilante interesse e paternal afeto o processo interno e o desenvolvimento externo da nossa Obra, ninguém melhor do que Vossa Eminência poderá compreender e apreciar o nosso assombro, repleto de pena e de profunda dor, ao recebermos a carta da Sagrada Congregação para os Religiosos que traz a data de 5 de janeiro de 1952. Do seu conteúdo e da resposta à referida carta Vossa Eminência tem conhecimento pelas cópias dos dois documentos (6 de janeiro; 3 de fevereiro de 1952) que lhe foram remetidos no momento oportuno. Surpreende-nos e aflige-nos que se queira voltar novamente a uma questão tão profundamente discutida, examinada e decidida, juntamente com todo o ordenamento do Opus Dei.

Seja-nos permitido indicar, Eminência, que este comportamento da Sagrada Congregação para os Religiosos não pode ter outra origem senão as denúncias contra o Opus Dei. E em tal caso, animados por um vivo sentimento de justiça e de amor pela verdade, atrevemo-nos a expor o desejo de que tais denúncias nos sejam manifestadas abertamente, e respeitosamente exigimos que se aduzam as provas.

Seguia-se a lista de mexericos e falsidades contra a Obra. Finalmente, para concluir, o Fundador submetia ao bom critério do Cardeal Protetor a conveniência de proceder à redação de um novo Regulamento interno da Administração para garantir ainda mais quanto se contempla no Regulamento atual, porque deste modo se evitaria, por um lado, a possível preocupação da Santa Sé; e, por outro, a difamação com que se caluniam muitos milhares de almas.

O Papa seguia atentamente a leitura do Cardeal. De vez em quando, levantava as mãos, como que para sublinhar as palavras com um gesto. E, assim que a carta acabou de ser lida, exclamou impaciente e surpreso: “Ma chi mai ha pensato a prendere nessun provvedimento?”[80]

À pergunta sobre a quem ocorrera tomar alguma medida contra o Opus Dei, o Cardeal respondeu com o silêncio. O Papa ficava de sobreaviso, e fora de jogo os que esperavam o momento propício para desfazer o Opus Dei. O Fundador tinha chegado a tempo de paralisar a manobra[81].

[46] Cfr. Carta 25/01/1961, n. 44.

[47] Encarnación Ortega Pardo, RHF, T-05074, pág. 152.

[48]Javier Echevarría, Sum., 2401.

[49] Desde antes, desde bastante tempo antes da festa da Assunção de 1951, eu sentia uma aflição imensa na minha alma, porque o Senhor me fazia intuir que algo muito grave se tramava contra a Obra (Carta 24/12/1951, n. 230). Cfr. também Carta 25/01/1961, n. 44.

[50] Álvaro del Portillo, Sum., 421.

[51] Carta 24/12/1951, n. 230.

[52] Carta 7/10/1950, n. 31.

[53] Trata-se de um dos contos narrados pelo Infante Dom Juan Manuel, no Libro de los enxiemplos del Conde Lucanor et de Patronio. Anos depois, La Fontaine popularizaria essa história nas suas fábulas.

[54] Álvaro del Portillo, Sum., 421.

[55] Cfr. Carta 14/09/1951, n. 27.

[56] Carta 24/12/1951, n. 230; Não sabendo a quem dirigir-me aqui na terra, dirigi--me, como sempre, ao céu, escreve em Carta 25/01/1961, n. 44.

[57] Carta às suas filhas e aos seus filhos, em EF-510809-1. O Fundador já estivera com o Pe. Álvaro em Loreto, em 3 e 4 de janeiro de 1948.

[58] Cfr. Joaquín Alonso, Sum., 4680; Juan Udaondo Barinagarrementería, Sum., 5038 [Cor..., “Coração dulcíssimo de Maria, preparai um caminho seguro” (N. do T.)].

[59] É Cristo que passa, n. 12; sobre a viagem de Roma a Loreto: cfr., em alguns pontos, Francisco Monzó Romulado, RHF, T-03700, pág. 23; e Alberto Taboada del Río, RHF, T-03358, n. 1334.

[60] PR vol. XVII, Documenta, vol. II, Opus Dei, Consagrações, pág. 9. Durante a missa, fez a consagração com as palavras ardentes que lhe brotavam da alma, e renovou-a durante a ação de graças, em nome de toda a Obra. Cfr. AGP, P01 1976, pág. 1231.

[61] Ibid., pág. 10.

[62] Ao celebrar a missa naquele 15 de agosto, o Padre “colocou na patena, junto com a Hóstia, a fidelidade de todos os seus filhos” (Encarnación Ortega Pardo, RHF, T-05074, pág. 152).

[63] Cfr. “Dados de duas viagens a Portugal (janeiro e outubro-1951)”, em RHF, D-15459; e Álvaro del Portillo, Sum., 422. Posteriormente, o Padre esteve em Loreto em várias ocasiões: 7/11/1953; 12/05/1955; 8/05/1960, 8/05/1969; 22/04/1971.

[64] Cfr. Juan Udaondo Barinagarrementería, Sum., 5036.

[65] Cfr. ibid., 5039.

[66] Cfr. “Relato de Juan Udaondo sobre a visita ao Cardeal Schuster (15/01/1952)”, em RHF, D-15460. Ainda no mês de outubro, tornaram a visitar o Cardeal e convidaram-no a ir à casa da Rua Carlo Poerio, 16, onde residiam. E umas semanas mais tarde, voltando de uma visita pastoral, encontrando-se próximo desse Centro da Obra, o Cardeal tornou a estar com eles. Todos estavam ausentes, exceto Juan Masiá, que lhe mostrou a casa; o Cardeal ficou impressionado com a limpeza, dignidade e decoro do oratório. Também deve ter percebido que se vivia a pobreza sem ostentação, porque algum tempo depois enviou-lhes um saco de arroz pelo motorista (cfr. Juan Masiá Mas-Bagá, RHF, T-05896, pág. 3).

[67] “Documentação relativa à contradição que deu lugar à Consagração do Opus Dei ao Coração de Maria, do dia 15/08/1951”, em RHF, D-15001.

[68] Ibid.

[69] Ibid.

[70] No escrito, continuava-se o estudo e a exposição sumária do regime das duas Secções da Obra: diversas, totalmente separadas (penitus separatae). Unem-se somente quanto ao espírito que as anima; e, quanto ao regime, dependem unicamente do Presidente Geral, que é sempre um sacerdote, assistido no governo por três sacerdotes (o Secretário Geral, o Procurador Geral e o Sacerdote Secretário Central); e para o governo provincial ou regional, o Presidente Geral serve-se do sacerdote Conselheiro, que atua “nomine et vice Praesidis Generalis semperque ad ipsius mentem” [“em nome e representação do Presidente Geral e sempre segundo a sua mente”].

São tantas e tais as medidas de prudência, cautela e bom senso tomadas pelo Fundador e estabelecidas nas Regulae internae pro Administrationibus, que nenhuma casa ou instituição eclesiástica dispõe, na teoria e na prática, de uma separação tão rigorosa. E, chegado a este ponto, o mencionado escrito examina em detalhe a situação real do serviço prestado pelas mulheres, que nunca poderiam ser substituídas por homens. Por outro lado, não se dá a menor promiscuidade ou sequer proximidade de nenhum tipo, pois nas residências, casas de retiro etc. existem, de iure e de facto, duas casas completamente separadas, com entradas diferentes da rua, sem que as pessoas que vivem nesses dois Centros se falem, se conheçam ou se relacionem: “Familiarem administrationem habeant omnium domorum Instituti, in loco tamen penitus separato commorantes, ita ut de iure et de facto duae sint domus in unoquoque domicilio”.

Cfr. AGP, Secção Expansão Apostólica, Itália VI, doc. 2.

[71] “Relato de Juan Udaondo sobre a visita ao Cardeal Schuster (15/01/1952)”, em RHF, D-15460.

[72] Cfr. carta do Pe. Álvaro del Portillo ao Pe. Arcadio María Larraona Saralegui, de 3/02/1952: em “Documentação relativa à contradição que deu lugar à Consagração do Opus Dei ao Coração de Maria, do dia 15/08/1951”, em RHF, D-15001; e AGP, Secção Expansão Apostólica, Itália, VI, doc. 4. A separação existente entre os dois ramos da Obra era absoluta e total, sob todos os pontos de vista. E o Padre, com a energia com que se expressava, repisava-a, ao falar do ministério sacerdotal, com uma peremptoriedade física: Se digo sempre, de uma maneira gráfica, que a Secção de homens vive a cinco mil quilômetros de distância da Secção feminina, vós, os sacerdotes, deveis viver a dez mil. E ao mesmo tempo, deveis conciliar essa distância santa com a mais viva preocupação por servir, com o vosso trabalho sacerdotal, as vossas irmãs (Carta 8/08/1956, n. 43).

[73] Carta aos seus filhos do Conselho Geral, em EF-520209-2.

[74] Juan Udaondo Barinagarrementería, Sum., 5041; cfr. Carta 25/01/1961, n. 44.

[75] Cfr. Juan Udaondo Barinagarrementería, Sum., 5041.

[76] Álvaro del Portillo, Sum., 422.

[77] Álvaro del Portillo, PR, pág. 562.

[78] Era assinada pelo Presidente Geral e pelo Procurador Geral. O Pe. Álvaro pediu ao Padre que lhe permitisse pôr também a sua assinatura, para mostrar assim que estava de pleno acordo com o Padre a respeito do conteúdo do escrito. Cfr. carta a Mons. Federico Tedeschini, em EF-520312-1 e Carta 25/01/1961, n. 44.

[79] Juan Udaondo Barinagarrementería, Sum., 5041.

[80] Carta 21/01/1961, n. 45; cfr. também Álvaro del Portillo, Sum., 423 e 802; Mario Lantini, Sum., 3630; e Joaquín Alonso, Sum., 4680.

[81] Meses antes de que o Fundador escrevesse ao Cardeal Tedeschini (carta, em EF-520312-1, lida ao Papa), a 3 de dezembro de 1951, um Cardeal da Cúria avisara o Padre Josemaria do grave perigo que corria. Talvez se tratasse da pessoa que avisara também o Cardeal Schuster. O Fundador fez-se eco implicitamente desses avisos quando, em Carta 24/12/1951, n. 230, escreveu: Todas as calúnias, que vão calando pouco a pouco na Cúria Romana – onde trabalham muitos homens santos, que nos compreendem muito bem –, vêm das mesmas pessoas, e da minha Espanha: melhor dizendo, de alguns espanhóis, incitados por esses outros.