Ser famoso não é nem um pouco simples: as pessoas procuram você por toda parte, e às vezes não há meio de esconder-se para ter um pouco de calma. Isso acontecia frequentemente com Jesus. Por isso que, às vezes, Ele evitava as cidades ou se retirava com seus apóstolos para lugares onde era menos conhecido, embora nem sempre isso funcionava. Como quando foram a Fenícia, à região de Tiro e Sidônia, esperando que ninguém os reconhecesse...
Uma corrente de mútua confiança
Nos arredores dessa região, encontram uma mulher cananeia, que sofria muito por causa de sua filha, possuída por um demônio especialmente nocivo. Esta mãe necessita de ajuda e ouviu falar de Jesus, de modo que pede ao Senhor com gritos que tenha compaixão dela. Mas Jesus, diz o Evangelho, “não lhe respondeu palavra alguma” (cfr Mt 15, 23-25).
Os discípulos não conseguem entender como Jesus pode ignorar uma petição tão insistente. Uns momentos depois, aproximam-se dele e dizem: “Despede-a, ela nos persegue com seus gritos”. Mas o Senhor não só não cede à sua petição, mas parece desprezá-la totalmente: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. A mãe, com dor e amor por sua filha, não desanima. Prostra-se diante dele e o detém. Não aceita que o Senhor passe ao largo: “Senhor, ajuda-me!” (Mt 15, 23-25).
A situação dramática talvez faça os apóstolos pensarem que agora Jesus vai atendê-la. Sua resposta, no entanto, é ainda mais surpreendente e inesperada. Estando ela ainda prostrada, Jesus lhe diz: “Não convém jogar aos cachorrinhos o pão dos filhos”. A mulher, diante desta negativa, também não desanima. Em sua resposta não há aborrecimento, nem despeito, mas uma profunda humildade: “Certamente, Senhor, mas os cachorrinhos ao menos comem as migalhas que caem das mesas de seus donos” (Mt 15, 26-27).
Uma corrente de mútua confiança palpita no fundo do diálogo entre esta mulher e Jesus. O Senhor conhece a audácia de sua fé e ela confia plenamente na bondade do coração de Jesus... Ela não sabe, mas, além de conceder-lhe esta graça que está pedindo, Deus vai apoiar-se nela para formar seus discípulos. Através desta mulher, Jesus está preparando os corações dos doze para os horizontes apostólicos que se abrirão a eles dentro de pouco tempo. Aqueles que receberam o mandato de ir pregar o evangelho por todo o mundo estão descobrindo como uma mulher pagã pode ter mais fé em seu coração do que um rabino, ou, inclusive, do que eles mesmos, que estão o tempo todo com Jesus.
Essa mulher vai nos mostrar, além disso, ao longo de seu diálogo com Jesus, algumas das disposições chave da oração, como a humildade de saber-nos necessitados de ajuda, ou a confiança inquebrantável no amor que Deus tem por nós, apesar de seu aparente silêncio. Talvez Evagrio Pôntico pensasse nela quando escreveu: “Não te aflijas se não receberes de Deus imediatamente o que pedes: é Ele quem quer te conceder bens ainda melhores mediante tua perseverança em permanecer com Ele em oração”[1].
Mas voltemos ao clímax da conversa. Jesus manteve essa “tensão pedagógica” com a mulher e com seus discípulos tanto quanto foi possível. Agora, diante da simplicidade com que ela lhe fala das migalhas sob a mesa, Jesus desvela seus verdadeiros sentimentos: “Ó mulher, grande é tua fé! Seja-te feito como desejas. E na mesma hora sua filha ficou curada” (Mt 15, 28). A fé desta mãe, sua oração cheia de perseverança e de humildade, deixarão sem dúvida uma marca profunda nos apóstolos.
Por outro lado, esta mulher, mesmo sendo estrangeira, simboliza todo o Povo de Deus. Nela está se realizando mais uma vez aquele misterioso combate entre Jacó e Deus. Como fruto desta luta, Jacó “arranca” de Deus a benção; e recebe, com a benção, o nome de Israel, que significa “aquele que lutou com Deus” (cfr Gn 32, 25-30) e lhe outorga uma nova missão na vida. Entre Jesus e a mulher também acontece uma espécie de resistência mútua, uma luta, um combate que põe à prova sua fé e sua perseverança. O gesto de prostrar-se diante do Senhor para bloquear seu caminho é uma expressão maravilhosa de oração perseverante, que não esmorece diante das dificuldades. E, como aconteceu com o antigo patriarca, esse forcejar termina com a benção de Deus, que louva a fé da mãe e livra sua filha.
Em uma conversa permanente
Lemos no Catecismo que “o ‘combate espiritual’ da vida nova do cristão é inseparável do combate da oração”[2]. A mulher cananeia obteve graças abundantes por meio desse combate: a sua relação pessoal com Deus se intensificou, e desta relação só podem sair coisas boas. Por isso, o caminho para a santidade consiste mais em estender o diálogo com o Senhor a tudo o que fazemos do que em alcançar uma série de desafios ou níveis de virtudes que não são necessariamente para nós, ou que, em todo caso, não se darão de hoje para amanhã[3]. Na realidade, talvez uma coisa acabe por levar à outra, mas entre elas há uma clara primazia da graça e, portanto, da oração[4]. “Porque sem mim”, diz o Senhor, “não podeis fazer nada” (Jo 15, 5).
Imaginemos, por exemplo, que alguém tenha decidido colocar um pouco mais de ordem em sua vida. Propôs-se deitar-se mais cedo a fim de descansar suficientemente para render mais no trabalho, ser mais bem-humorado e dedicar alguns minutos para rezar todas as manhãs. Isso é muito bom e provavelmente terá sucesso por um ou dois dias mas depois falhará ou se deixará absorver pelo caos... Como acontece com todo projeto que se empreende, haverá vitórias e derrotas. Mas o decisivo não são os resultados. O importante não é tanto o balanço de vitórias diante das derrotas, mas sim como lutamos ou, mais precisamente, com quem lutamos. Podemos travar a batalha sozinhos, contando principalmente ou quase exclusivamente com as próprias forças; ou abrir-nos, pelo contrário, à relação com Deus, convertendo esse objetivo em tema de conversa com o Senhor: “Senhor, creio que você também quer que eu me deite mais cedo, mas você tem que me ajudar...”; “Jesus, coloque amor e esperança no meu coração... ajude-me a entusiasmar-me... se eu for um pouco mais organizado posso fazer muito bem”; “Senhor perdoe-me porque hoje o caos me venceu; ajude-me mais”; “Jesus, vou oferecer isso pelas pessoas que estão nessa luta também...”.
Neste caso estamos assistindo a uma luta centralizada em Deus, quando o diálogo com o Senhor vai se alimentando do que temos nas mãos. E vice-versa: as coisas de cada dia vão se abrindo à nossa relação com Deus. Para que um propósito particular de melhora seja eficaz, o Evangelho mostra que, inicialmente ele deve se converter em tema de muita conversa com Deus. Trata-se de abrir todos os nossos âmbitos de atuação a esse grande horizonte de sentido que é a nossa relação com o Senhor. “Se trabalharmos com Cristo, todos os nossos esforços terão sentido, inclusive quando não vemos os resultados esperados, porque o eco das obras feitas por amor chega sempre ao Céu”[5].
O que de verdade alegra o coração de um pai ou de uma mãe não é tanto ver o filho pequeno fazer tudo bem, mas sim que ele os olhe de vez em quando, lhes sorria e compartilhe com eles suas batalhas. As crianças, mesmo que se esforcem, costumam errar com facilidade; mas procuram sempre o diálogo com os pais, através de um olhar ou de um gesto e sempre com o coração. E esta corrente de amor e de comunicação é o que seus pais mais desejam. Nosso Pai Deus também espera a mesma coisa de nós: uma corrente de confiança, de amor e de comunicação. E a vida inteira é o ambiente em que essa relação confiada com nosso Pai Deus deve se desenrolar. São Josemaria convidava todos a avançar por esse caminho: “Fale, fale com o Senhor: ‘Eu me canso, Senhor, não posso mais. Senhor, não consigo fazer isso; como Você o faria?’”[6].
Viver dessa relação
Os apóstolos, talvez sem perceber, viviam com o Senhor em diálogo contínuo, que se alimentava das circunstâncias mais comuns do dia a dia. Os Evangelhos trazem uma infinidade de situações em que Jesus e os seus conversavam confiadamente. Faziam-lhe perguntas, demonstravam sua perplexidade ou seu entusiasmo. Os doze, pois, além de discípulos e testemunhas, eram amigos com os quais Jesus compartilhava a intimidade (cfr Jo 15, 15). A personalidade de Jesus cativava-os e ao mesmo tempo enchia-os de assombro: para eles Jesus era um grande amigo mas também um grande mistério.
Uma das coisas que mais chamava a atenção era a relação de Jesus com o Pai. Percebiam com que frequência ele se afastava para rezar. Pouco a pouco foram percebendo que Jesus estava sempre em conversa íntima com seu Pai Deus. O próprio Jesus diz-lhes que o que ele diz e faz brota de sua relação com o Pai: “Em verdade, não falei por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, ele mesmo me prescreveu o que devo dizer e o que devo ensinar” (Jo, 12, 49); “Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis quem sou e que nada faço de mim mesmo, mas falo do modo como o Pai me ensinou” (Jo 8, 28).
Às vezes Nosso Senhor deixava perceber que tinha essa conversa íntima com o Pai. Por exemplo, no regresso dos setenta e dois discípulos que havia enviado a vários povoados e aldeias, e que voltavam maravilhados pela experiência de atuar em nome de Jesus Cristo: curavam, expulsavam demônios... “Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!” (Lc 10, 17), diziam-lhe cheios de alegria. Jesus dirige-se então em voz alta a seu Pai, e cheio de júbilo, diz: “Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou graças porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te porque assim foi do teu agrado” (Lc 10, 21). Outra vez em que escutam Jesus falando em voz alta com o Pai é o momento solene da cura de Lázaro. Nesse ambiente de dor pela morte do amigo, Jesus toma a palavra e exclama: “Pai, rendo-te graças, porque me ouviste. Eu bem sei que sempre me ouves, mas falo assim por causa do povo que está em roda, para que creiam que tu me enviaste” (Jo 11, 41-42). Podemos imaginar o espanto daqueles que o escutaram falar com seu Pai Deus desta forma. Como não iriam ficar gravadas em sua memória estas palavras?
Ao falar assim, Jesus desvela a seus amigos o mistério de sua intimidade divina: a sua vida interior. O mais íntimo de Jesus é sua relação com o Pai. Jesus vive desta relação. Uma relação que é um diálogo ininterrupto de conhecimento e amor, que se concretiza no desejo permanente de fazer sua vontade. Assim dirá aos seus: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra” (Jo 4, 34). Jesus está lhes dizendo de muitas formas que vive de sua relação com o Pai, que sua intimidade pessoal é essa relação. A teologia explicará isso dizendo que o Filho é uma relação subsistente: tudo na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade é filiação, relação com o Pai[7].
Pouco a pouco, mas especialmente com o envio do Espírito Santo, os discípulos irão percebendo que essa fonte secreta, essa relação de Jesus com o Pai, é sua identidade mais pessoal. E desejarão participar dela. Por isso, em uma ocasião, Felipe dirá ao Senhor: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta” (Jo 14, 8). E é por isso também que pedem a Jesus que lhes ensine a rezar, a descobrir essa fonte de vida da qual Ele vive. E Jesus lhes ensinará o Pai Nosso (cfr. Lc 11, 1-4).
Através de Jesus, Verbo em quem foram criadas todas as coisas (cfr Col. 1, 16), nós também nos encontramos, no mais íntimo de nosso ser, em profunda relação com o Pai[8]. Santo Inácio de Antioquia sentia isso muito fortemente em seu coração quando escrevia: “uma água viva fala dentro de mim e me diz: Vem ao Pai”[9]. O fato de que Deus me ame, de que tenha me criado para ser feliz com Ele, constitui meu núcleo pessoal mais autêntico, o sentido mais radical de quem eu sou; e ao contrário, “aquele que não se sabe filho de Deus, desconhece sua verdade mais intima”[10]. Por isso, a oração não é um acréscimo à nossa vida. A conversa com Deus permite-nos habitar em nós mesmos. Estar em diálogo com Deus é estar em nossa casa interior, é ser quem realmente somos. Se a vida interior de Jesus consiste no diálogo ininterrupto com seu Pai, também nossa vida interior deve nutrir-se desse mesmo diálogo com Deus, que é um diálogo de amor.
“Deus ama comunicar-se, mais do que no fragor do trovão ou do terremoto, ‘no rumor de uma brisa suave’ (1R 19, 12) ou como traduzem alguns, em uma “sutil voz de silêncio”. Este é o encontro importante, que não devemos perder[11], dizia o papa Leão XIV dois dias depois de sua eleição. E o lugar desse encontro é o coração: “O coração é a morada onde estou, onde habito (...). É o nosso centro oculto (...). É o lugar do encontro, já que, à imagem de Deus, vivemos em relação”[12]. Há, no entanto, corações que vivem num permanente monólogo interior. E quando um coração vive assim os frutos não podem ser de amor. Serão antes de egoísmo. Se a conversação interior está centrada no eu, as obras também estarão fundamentalmente referidas a si mesmo. A queixa frequente, o mau humor, os aborrecimentos... podem ser sintomas da frustração que esse monólogo interior produz; porque “o homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, porque a boca fala daquilo de que o coração está cheio” (Lc 6, 45).
O tesouro autêntico de um coração, o único e verdadeiro tesouro é sua relação de amor com Deus. Essa é a raiz da qual brotarão bons frutos em palavras e obras. Por isso, Jesus diz que “só Deus é bom” (Mc 10, 18): fora dele só há trevas, tristeza, absurdo. É o vazio, o isolamento de quem, feito para relação, encontra-se, no fundo, terrivelmente só. Sozinho diante do futuro, diante da morte, diante das dificuldades. “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18), diz Deus no relato da criação do homem. E quando o Anjo anuncia à Virgem o sublime momento da Encarnação, diz-lhe que chamará a seu filho de Emanuel, que significa, Deus-conosco. O Salvador tem um nome que expressa precisamente companhia, relação pessoal. “Sem mim não podeis fazer nada” (Jo 15, 5): é a relação com Jesus que nos salva, e que nos converte em instrumentos de salvação para outros.
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“Cristo permanece conosco. Algumas vezes antes de começar um trabalho, São Josemaria dirigia-se assim ao Senhor: ‘Jesus, vamos fazer isto nós dois’. Jesus está conosco, e nós somos seus instrumentos. Isto exige agir bem, trabalhar bem; do contrário, de alguma forma, é como se fizéssemos o Senhor ‘ficar mal’, por culpa do instrumento.
Jesus e eu. É uma relação pessoal, única, insubstituível. Mas, ao mesmo tempo, a união com Cristo – quando autêntica – torna-se união com o Corpo de Cristo que é a Igreja: comunhão com Deus, comunhão dos santos. A relação ‘Jesus e eu’ converte-se em união para os outros, com os outros”[13].
[1] Evagrio,De oratione, n. 34 (citado no Catecismo da Igreja Católica, n. 2737
[2] Catecismo da Igreja Católica, n. 2725
[3] Cfr. Francisco, Gaudete et Exsultate, nn 11, 50.
[4] Cfr. São João Paulo II, Novo millennio ineunte, n. 38
[5] F. Ocáriz, “A luz de que o mundo precisa”, meditação, 11/05/2020, opusdei.org.
[6] São Josemaria, anotações de uma reunião em Valladolid, 22/10/1972, que constam no documentário “O coração do trabalho”, opusdei.org.
[7] Cfr. São Tomás, Summa Theologiae, I, q. 29 a. 4 co.
[8] Cfr. São Tomás, Summa theologiae, I, q. 13 a. 7 co; De Veritate q. 4 a. 4 co.
[9] Santo Inácio de Antioquia, Ad Rom. 7, 2.
[10] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 26
[11] Leão XIV, Encontro com os cardeais, 10/05/2025.
[12] Catecismo, n. 2563
[13] F. Ocáriz, Á luz do Evangelho, “Nós dois” (opusdei.org)