Braga: “O físico tem de ter um amor à verdade. E a verdade leva-nos a Deus”

Ricardo é professor de Física na Universidade do Minho e trabalha no Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia. Nesta entrevista fala-nos da relação ciência e fé, do Big Bang, de Galileu e do prêmio Nobel da Física de 2020.

É autor de dezenas de publicações em revistas internacionais, incluindo um artigo na revista Science com mais de 1300 citações. É Professor no Departamento de Física da Universidade do Minho e membro do Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia com categoria de Cooperation Associate.

Embora não seja fácil de entender para o comum dos mortais, faz investigação em Física Teórica do Estado Sólido, especialmente em materiais bidimensionais, como o grafeno. E escreveu recentemente o livro “Física XXI”.

Ricardo é natural do Porto e vive em Braga, cidade onde fez muitos amigos. Aproveitamos uma das suas pausas de trabalho para nos falar sobre a relação Ciência e Fé e outros temas de atualidade.

Quem ganhou o prémio Nobel da Física este ano?

O prémio Nobel da Física de 2020 foi ganho por Roger Penrose, Reinhard Genzel e Andrea Ghez, pelos seus estudos sobre buracos negros.

E que aplicações práticas pode ter essa descoberta no nosso dia-a-dia?

Penso que a pergunta revela uma visão um tanto utilitarista da ciência. É evidente que um melhor conhecimento do Universo e do que contém pode vir a traduzir-se em algo prático no nosso dia-a-dia. Em concreto, os modelos matemáticos que são desenvolvidos nestes âmbitos de Física fundamental depois podem ser aplicados na Física dos materiais que são usados em dispositivos avançados, ou mesmo em modelos para a economia.

No entanto, acho que é importante valorizar o conhecimento por si mesmo, independentemente da sua utilidade. O conhecimento faz-nos crescer intelectualmente, é belo, leva-nos à contemplação, excita a imaginação: é excelente em si.

De que modo Deus pode ajudar-te a ser melhor físico no dia-a-dia?

Acho que a pergunta está ao contrário. Devia ser: como é que a Física me ajuda a ser melhor cristão. E ajuda de muitas maneiras. A Natureza e as suas leis participam e mostram a beleza de Deus, que as criou. Estudá-las sabendo isso ajuda-me a contemplar Deus e a amá-Lo pelas coisas maravilhosas que nos deixou.

O FÍSICO TEM DE TER UM AMOR À VERDADE: NÃO INTERESSA SE GOSTO MUITO DE UMA IDEIA OU NÃO, O QUE IMPORTA É SE CORRESPONDE À REALIDADE. E A VERDADE LEVA-NOS A DEUS, E FAZ-NOS CRESCER EM HUMILDADE.

Por outro lado, o físico tem de ter um amor à verdade: não interessa se gosto muito de uma ideia ou não, o que importa é se corresponde à realidade. E a verdade leva-nos a Deus, e faz-nos crescer em humildade.

Depois há uma consciência de que o conhecimento que avançamos é um dom para a humanidade. O físico deve ter o sentido social de que o que aprendeu não é para ficar para si, mas sim para ensinar muitos outros, que podem partir de um pouco mais acima na escala do conhecimento. Esse sentido altruísta aproxima de Deus.

Como vê a teoria do Big-Bang?

O Big-Bang é uma teoria extraordinária, com muita comprovação experimental. É uma teoria científica que um cristão como eu imediatamente associa ao acto de criação por Deus: o Universo teve um princípio. É claro que Deus não precisa de um Big-Bang para criar o Universo, e se essa teoria for superada (acho difícil que o seja dada a quantidade de resultados experimentais congruentes) isso terá pouca importância para os cristãos.

O cristianismo diz que Deus criou o Universo para o Homem. Não é desproporcionado, uma coisa tão gigantesca para uns seres minúsculos num canto do Universo?

CONSEGUIR DESCREVER A EVOLUÇÃO DO UNIVERSO DESDE HÁ 13.7 MIL MILHÕES DE ANOS ATRÁS ATÉ AGORA, É ABSOLUTAMENTE FABULOSO.

O espantoso não é que o Universo seja gigantesco, o espantoso é que o podemos conhecer, conseguimos compreender como funciona a distâncias e tempos longínquos.

Não se trata de apenas perceber como funcionam as coisas à nossa volta. Isso já seria impressionante. Mas conseguir descrever a evolução do Universo desde há 13.7 mil milhões de anos atrás até agora, é absolutamente fabuloso.

Por isso eu estou convencido que o Universo foi feito realmente num acto de amor pelos homens, grandioso e belo, mas inteligível e conhecível por nós. De que nos serviria, se não o pudéssemos conhecer, compreender, explorar?

Não é um desperdício, é um imenso acto de amor.

Conseguir descrever a evolução do Universo desde há 13.7 mil milhões de anos atrás até agora, é absolutamente fabuloso.

A Ciência é compatível com a Fé?

Quando falamos de Ciência e Teologia temos de ter presente que são duas disciplinas que têm métodos e objetos diferentes e, portanto, são disjuntos nas conclusões que tiram.

Por exemplo, a existência de Deus, que é um ser espiritual, não pode ser inferida ou negada pelo método científico, que é experimental e, portanto, se refere a realidades materiais.

E mesmo estas são estudadas apenas sob uma perspetiva que é a do método experimental.

Não podemos ser exclusivistas e afirmar que a única forma de conhecer é a do método experimental, quando há outras formas de conhecer a realidade. Quantos mais pontos de vista tivermos sobre a realidade, mais rica será a nossa compreensão dela.

Uma das formas de conhecer é a fé. É a que mais praticamos. Eu nunca vi a muralha da China, mas acredito e estou convencido que ela existe e é como a descrevem, porque confio nas pessoas que a descreveram (com quem nunca estive, porque não conheço pessoalmente ninguém que a tenha visto!).

Mas não só: o meu amigo disse-me que estacionou o carro na garagem e eu acredito, embora não tenha usado o método experimental para o verificar.

A vida ficaria um bocado complicada se o tivéssemos de o usar no dia-a-dia.

A Ciência não tem Deus por objeto e os seus métodos não são aptos para estudar Deus. Eu não consigo usar um voltímetro em Deus ou num ser espiritual.

Por isso, qualquer afirmação relativa à existência de Deus não é uma afirmação científica.

É frequente ouvir físicos dizerem que Deus não faz falta para explicar o Universo, a física já explica. É verdade?

A CIÊNCIA NÃO PODE APRESENTAR DEUS COMO CAUSA DO UNIVERSO, COMO CRIADOR, PORQUE DEUS ESTÁ FORA DOS OBJETOS DA CIÊNCIA, QUE SÃO AS COISAS MATERIAIS.

A Ciência não pode apresentar Deus como causa do Universo, como criador, porque Deus está fora dos objetos da Ciência, que são as coisas materiais.

Talvez seja isso que querem dizer quando dizem que não faz falta a hipótese de Deus para explicar o aparecimento do Universo.

No entanto não é verdade que a Ciência explica tudo sobre as origens do Universo.

Nós conseguimos saber como evolui o Universo a partir de uns instantes (0.000000000001 s) depois do que poderíamos chamar o instante zero.

Sabemos porque observamos com os nossos telescópios o que aconteceu: quanto mais longe olhamos, mais antigas são as coisas que observamos porque a luz demora tempo a chegar cá.

A Ciência não pode apresentar Deus como causa do Universo, como criador, porque Deus está fora dos objetos da Ciência, que são as coisas materiais.

A coisa mais antiga que observamos é a radiação cósmica de fundo, que surgiu 380000 anos depois do instante zero. Sabemos como evoluiu a partir dessa altura porque podemos ver (e usamos muita dedução e indução).

Mas além disso sabemos a física e podemos extrapolar para o passado o que deveria ter acontecido para chegarmos à radiação cósmica de fundo. Assim podemos dizer que sabemos o que aconteceu desde aquele ínfimo instante mencionado antes.

O que aconteceu antes é pura conjetura sem base científica (em sentido próprio) de nenhum tipo.

AS LEIS DA FÍSICA EXPLICAM MUITO BEM A EVOLUÇÃO, MAS NÃO SE EXPLICAM A SI PRÓPRIAS.

O facto de sabermos descrever a evolução do Universo não nos diz nada sobre de onde e como veio a existir. Antes de mais, porque é que temos estas leis da física e não outras?

As leis da física explicam muito bem a evolução, mas não se explicam a si próprias.

Não tinham de ser assim. Não há nenhuma razão para existirem estas partículas com estas propriedades e não outras, nem para as constantes fundamentais da natureza terem os valores que têm.

As leis da física não poderiam ter aparecido fruto do acaso, uma espécie de tentativa e erro?

O acaso não é uma explicação, é uma ausência de explicação. Recorrer a ele é tão válido como recorrer a duendes. É voltar à irracionalidade dos deuses mitológicos.

Mas alguns físicos defendem isso. E que essas tentativas dariam origem a uma infinidade de universos ‘paralelos’, os multiversos.

Acho que é importante distinguir bem o que é dado científico devidamente comprovado do que são as elucubrações mais ou menos interessantes que os físicos podem fazer sobre o Universo e as suas origens.

Podemos imaginar que existe um número infinito de universos cada um à sua maneira, mas isso é pura imaginação: não existe nem a mais ténue evidência disso.

Além disso, se esses supostos universos são totalmente inacessíveis, então nem sequer qualifica como uma hipótese científica, que por definição tem de ser comprovável experimentalmente.

O Universo não poderia ter a sua origem no vácuo?

De facto, o vácuo é um estado da matéria, não podemos dizer que está absolutamente vazio. Isso significa que o vácuo (no sentido físico) não explica a origem do Universo porque não se explica a si próprio: ele já é algo. Não tem nada a ver com o nada absoluto. O que poderá ser é um passo na evolução do Universo, mas isso neste momento é pura especulação.

Note-se que o vácuo, na sua concepção física atual, já tem leis, já tem definidos os valores das constantes universais, etc. Ou seja, já lá tem muita coisa que não pode ser explicada por si.

O que significa que Deus criou o mundo?

[A CRIAÇÃO] É UM ACTO ININTERRUPTO, CONSTANTE, NÃO É UM FAZER APARECER E DEPOIS VIRAR AS COSTAS.

A criação do mundo por Deus tem um significado muito mais profundo do que o que as ciências poderiam dar, uma vez que consiste num manter as coisas no ser, na existência.

É um acto ininterrupto, constante, não é um fazer aparecer e depois virar as costas.

Deus está efectivamente em todo o lado para manter as coisas na sua existência; se Deus as deixasse, elas simplesmente deixariam de existir. Não sobraria energia, ou carga, ou qualquer grandeza física; seria um retorno ao nada mais absoluto, não ao vácuo físico, que é de facto um estado da matéria, onde há muita coisa.

O nada antes da criação é um nada absoluto, sem leis, nem regras, nem valores de constantes e de onde nada pode sair. Por isso é necessário um ser com capacidade para não só fazer aparecer a matéria, mas também dar-lhe as leis com que vai funcionar.

“A Criação é acto ininterrupto, constante, não é um fazer aparecer e depois virar as costas”.

Pode haver diálogo entre Ciência e Fé?

A FÉ TEM MUITO A DIZER SOBRE A ÉTICA, SOBRE O USO QUE SE FAZ DOS CONHECIMENTOS CIENTÍFICOS. VEJO MUITAS VEZES CIENTISTAS A DEFENDER O PROGRESSO DA CIÊNCIA INDEPENDENTEMENTE DAS CONSEQUÊNCIAS ÉTICAS DO QUE ESTÃO A FAZER

Eu vejo-os como realidades tão disjuntas que não me parece que tenha de haver um diálogo, desde que se mantenha cada uma no seu campo específico.

Quando um cientista afirma que Deus não existe não fala como cientista, mas das suas convicções pessoais; quando um teólogo tenta arranjar respostas científicas a coisas sobrenaturais, como os milagres, está a fazer asneiras.

Agora, a Fé tem muito a dizer sobre a ética, sobre o uso que se faz dos conhecimentos científicos. Vejo muitas vezes cientistas a defender o progresso da ciência independentemente das consequências éticas do que estão a fazer, nomeadamente no que diz respeito à experimentação com seres humanos. Aí a Fé pode dar um contributo importante, ao expor a dignidade de cada ser humano.

O Laboratório inaugurado em 2008 dedica-se à investigação na área das nanotecnologias com laboratórios inovadores onde colabora Ricardo.

E Galileu?

É um caso de conflito desnecessário e injustificável. Em poucas palavras, Galileu estava errado na parte científica porque as suas justificações para defender o seu modelo astronómico estavam erradas, e os que o julgaram estavam errados por acharem que um modelo astronómico podia ter alguma coisa a ver com a teologia.

A mecânica quântica é relevante para a compreensão científica do problema mente-cérebro?

A mecânica quântica é a teoria atual que explica como funciona a matéria, com provas de consistência com a realidade absolutamente extraordinárias. Qualquer problema que envolva a matéria implica necessariamente a mecânica quântica, não há volta a dar.

Agora, não se pense que o facto de haver fenómenos pouco intuitivos para quem está habituado a pensar dentro do paradigma da física clássica então a mecânica quântica é algo esotérico, ou espiritual, ou capaz de milagres. É uma teoria física e aplica-se à matéria.