No dia 7 de agosto de 1931, durante a Santa Missa, ao elevar a Sagrada Hóstia depois da consagração eucarística, as palavras de São João, cap. 12, v.32 ficaram gravadas a fogo na alma de Josemaria Escrivá. Vieram “a meu pensamento – escreveu naquela mesma tarde – com força e clareza extraordinárias”. Ele as “ouviu” no contexto latino da Vulgata: Et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum. Tinha então 29 anos e ainda não fazia três que havia fundado o Opus Dei. A experiência daquela manhã foi uma experiência mística de seu espírito, semelhante a outras que tinha havido – e continuaria a haver – na vida do Servo de Deus. Refiro-me à irrupção do divino em sua alma sob a forma de loquelaou locutio divina[1].A um primeiro movimento de temor diante da Majestade de Deus, seguiu-se a paz do “Ne timeas! ”, sou Eu. “E compreendi que serão os homens e as mulheres de Deus que levantarão a Cruz com as doutrinas de Cristo sobre o pináculo de toda atividade humana... E vi triunfar o Senhor, atraindo a Si todas as coisas”[2].
Josemaria Escrivá viveu esta experiência sobrenatural, e assim o explicou numerosas vezes, em um contexto claramente fundacional, quer dizer, em estrita relação com o espírito da Obra que o Senhor lhe tinha confiado. Em 2 de outubro de 1928 tinha “visto” o Opus Dei[3] e em 14 de fevereiro de 1930 ficou sabendo que o Senhor queria também as mulheres na Obra[4]. Agora, naquela manhã de agosto de 1931, Deus o fez entender com insuspeitada profundidade o sentido santificador e salvífico da tarefa daqueles “homens e mulheres de Deus”. A compreensão dessas palavras de Cristo – que o Espírito Santo lhe concedeu -, aparecia a seus olhos como uma definição do espírito e da missão do Opus Dei. Pode-se dizer, em consequência, que essa compreensão do texto bíblico – que pregou continuamente desde então – contribuiu de modo decisivo a configurar sua concepção da vida cristã no mundo e para conferir-lhe um peculiar significado no patrimônio espiritual da Igreja. Constitui, por outro lado – a compreensão de que estamos falando –uma contribuição do Fundador do Opus Dei para a incessante busca eclesial do sentido pleno do texto de João.
A experiência do dia 7 de agosto presta-se à reflexão teológica em dois momentos: por um lado, aparece a própria palavra da Escritura, pronunciada por Deus na alma do Servo de Deus (veio “a meu pensamento”) e, ao mesmo tempo, “entendida” por ele com uma incomum profundidade (“e compreendi”). Foi-lhe concedido, por outro lado, não apenas ouvir e compreender – a missão de que o Senhor lhe encarregava – à luz do texto de São João, mas ver o triunfo de Cristo e o misterioso realizar-se da obra salvífica a partir da Cruz. Ambos os momentos aparecem, obviamente, unidos naquele evento espiritual. São, no entanto, de natureza teológica diversa. Este segundo momento, de profunda natureza mística, orienta a reflexão em uma linha que escapa, pelo menos de modo imediato, à tematização teológica. O primeiro, pelo contrário, que foi objeto de sucessivas meditações por parte do próprio Fundador, é o que se oferece diretamente ao discurso propriamente teológico e que agora nos interessa considerar, também em seu duplo aspecto: a palavra ouvida e, com ela, sua compreensão – que é igualmente sobrenatural – fruto daquela irrupção de Deus.
Isto quer dizer que uma reflexão sobre a experiência do dia 7 de agosto de 1931 deve ser basicamente uma meditação teológico–bíblica, ao fio da compreensão do mistério de Cristo que foi concedida ao discípulo amado: João, “o Teólogo”, como o chama a Tradição. Acha-se nessa linha, a meu ver, a mística compreensão que Mons. Escrivá alcançou destas palavras evangélicas. Vejamos, pois, primeiro, o texto bíblico e seu contexto; depois, os textos nos quais o Servo de Deus expressou sua compreensão; finalmente o que ele “compreendeu”, tematizado teologicamente.
I. O texto de São João e seu contexto[5]
1. O texto de João 12, 32
O versículo que nos ocupa encontra-se dentro de uma célebre seção do Evangelho de João: João 12, 20-36. Com ela São João conclui o ministério público de Jesus e se dispõe a narrar, a partir do capítulo 13, o que aconteceu a partir daquela “noite memorável”: o mistério da morte e ressurreição do Senhor. A citada seção antecipa o sentido salvífico desse mistério, oferecendo-nos a teologia da Cruz de João. A ocasião destes desenvolvimentos surgiu com o aparecimento daqueles gregos que queriam ver Jesus (vv. 20-22). Mas, logo a seguir, aqueles homens vão permanecer como mero pano de fundo: não se volta a falar deles. A resposta de Jesus vai além: “É chegada a hora para o Filho do Homem ser glorificado” (v. 23). Toda a seção é como um desenvolvimento do sentido destas palavras. “Com grande força criadora o evangelista encontrou uma conclusão adequada para o ministério público de Jesus: é um olhar para a sua morte na cruz (vv. 24.33), mas que ele considera como a hora da “exaltação” do Filho do homem (vv. 23.32) e, por conseguinte, da glorificação e triunfo de Jesus (vv. 31ss). Da morte brotará a vida, como o evidencia a imagem do grão de trigo (v. 24); e não só para Jesus, mas para todos os que o seguem e “servem” (v. 26). A “glorificação” de Jesus se contempla aqui principalmente em sua fecundidade universal, na atração que exerce sobre todos os homens dispostos a crer. A vitória de Deus sobre o adversário, o “senhor deste mundo” (v. 31), converte-se em uma vitória missionária no mundo humano, como sublinha o evangelista contemplando seu próprio tempo. O enfrentamento com o judaísmo persiste até a última frase (vv. 34-36); a chamada à fé é formulada, porém, de tal modo que passa a ser um pedido atual para todos os homens que suspiram pela luz verdadeira entre as trevas do mundo”[6].
Nesta sequência de ideias o v. 32 tem uma força reveladora culminante: “E quando eu for levantado (exaltatus fuero) da terra, atrairei todos os homens a mim”. Trata-se, com efeito, de um dos textos mais representativos de algo característico do Quarto Evangelho, sublinhado por toda a Tradição[7], a saber, que é precisamente na Cruz que começa a revelar-se a glória e o triunfo de Cristo[8]. A exaltação, em nosso versículo, refere-se, pois, de modo imediato, à elevação de Cristo na Cruz. Mas essa Cruz alçada sobre a terra, embora não seja ainda formalmente a glorificação de Jesus[9], aponta cristologicamente para a ressurreição e ascensão de Jesus ao Pai, quer dizer à glorificação de Cristo em sentido estrito; pois a Cruz, sendo o lugar eminente da obediência de Cristo ao Pai, constitui por isso mesmo o caminho da glorificação de Jesus, antecipando a glória de Cristo aos olhos da fé[10]. Esta consideração comporta do ponto de vista cristológico esta outra consideração soteriológica: esta Cruz é gloriosa porque nela se revela com a máxima intensidade o mistério do infinito amor de Deus à humanidade e a toda a criação: “de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único” (Jo 3, 16); na Cruz o Pai glorifica o Filho proclamando-o Salvador do mundo. A salvação alcançará o homem – e nele toda criatura – através da “atração” que o Salvador Crucificado exerce, atração o poder de Cristo crucificado e glorioso demonstra, que não é senão a “expansão” de seu amor infinito, da caridade do Pai e do Filho.[11] A Cruz é gloriosa porque nela o inimigo foi totalmente vencido, e a atração (tractio) divina da Cruz não tem outro limite, para dizê-lo com a expressão de Schnackenburg, senão “a resistência da incredulidade”[12].
O Fundador do Opus Dei “ouviu” o versículo de João – como já vimos – no sentido literal da Vulgata, tal como a Igreja a lia e meditava então. Segundo o texto grego que São Jerônimo leu, a tractio divina exerce-se sobre “tá pánta”, omnia, todas as coisas (aspecto cósmico da redenção). A lição crítica mais aceita hoje – na Neovulgata também – lê pántas, omnes, todos os homens (aspecto antropológico). Na verdade, as duas leituras, solidamente testemunhadas, são complementares: uma inclui a outra. Segundo os exegetas, o sentido teológico das duas leituras é o mesmo[13].
2. João 3, 14 como contexto remoto
A doutrina de João 12, 32 está em íntima relação com os outros lugares do Evangelho de São João que desenvolvem o tema “exaltação do Filho do homem”, especialmente com João 3, 14s: “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é preciso que seja levantado o Filho do Homem, para que todo aquele que nele crer tenha vida eterna nele”. A proximidade temática e espiritual das duas passagens é tão clara, que seu estudo conjunto nos parece fundamental para a compreensão da experiência do 7 de agosto. A meditação cristã ao longo dos séculos captou como ambos os textos se iluminam mutuamente e se recobrem um ao outro para revelar-nos o mistério da exaltação soteriológica de Cristo. O texto de João 3 alude primeiramente ao episódio de Num 21, 4-9 onde se conta que os israelitas, que haviam sido castigados com uma praga de serpentes venenosas, ficavam curados ao olhar a serpente de bronze que o Senhor mandou que Moisés erguesse. São João – como diz São Cirilo de Alexandria – passa a seguir “da história à tipologia”[14] e serve-se do episódio – usado aqui pela primeira e única vez no Novo Testamento – para explicar o mistério da Cruz de Cristo.
Jesus não diz, em nenhuma das duas passagens, em que consiste a exaltação da qual fala. O discípulo amado entendeu isso depois e o fez constar em João, 12, 33: Quando falava de sua exaltação, Jesus referia-se à morte com que ia morrer. Mas é o próprio Jesus que diz explicitamente em João 3, 15 a finalidade última de sua exaltação na Cruz: a salvação, a vida eterna. Por outro lado, cada uma dessas passagens situa, entre o fato da exaltação – a Cruz – e a finalidade última – a vida eterna –, uma realidade intermediária, que aparece como a finalidade próxima da exaltação. Em João 12, 32 essa realidade é a tractio da Cruz. A exaltação é o caminho pelo qual Jesus atrai a si todos e todas as coisas: essa atração que Cristo exerce da Cruz é o que leva o homem à salvação, à vida eterna. Em João 3, 14, pelo contrário, é Cristo que é exaltado na Cruz, colocado no alto, precisamente para que possa ser olhado e visto pelos homens. Entende-se que se trata do olhar que leva a ver, isto é, do olhar da fé, como diz expressamente Jesus no versículo seguinte: “para que todo aquele que creia nele não pereça”. O homem se salva com este olhar (fé e amor: “fé que atua pela caridade”, Gl 5, 6) ao Crucificado. João 12 sublinha, pois, o poder redentor dos atos de Cristo: a tractio divina da Cruz. João 3, por seu lado, põe em primeiro plano a necessidade da colaboração do homem: que o homem “olhe” seu Salvador (que o atrai). Mas as duas dimensões ou realidades intermediárias estão em ambos os textos com seus contextos. Não esqueçamos, por exemplo, que João 12, 32 é culminação das palavras de Cristo em resposta ao pedido daqueles prosélitos gregos que disseram aos discípulos: “Queremos ver Jesus”. Aqueles homens queriam “vê-lo”, mas de um modo terreno, ainda que cheio de calor humano e simpatia. Por isso a seção que comentamos vai ser na verdade uma longa explicação sobre em que consiste verdadeiramente “ver Jesus”: onde, como e quando se pode “ver” Jesus. Jesus diz: Todos poderão “ver-me” quando eu for exaltado na Cruz e os atrair.
O tema “ver”, “olhar”, leva-nos necessariamente a João 19, 34-37. Cristo já está na Cruz e com o lado transpassado pela lança, do qual brotou sangue e água (v. 34). O próprio João garante que viu tudo isso e que diz a verdade (v. 35), e que isto aconteceu para que se cumprisse a Escritura que diz (Zc 12, 10): “Olharão para aquele que transpassaram” (v. 37). É difícil exagerar a importância deste verso de Zacarias na meditação de João sobre a Cruz, que é como o desenvolvimento do que ele viu em Jesus, transpassado pela lança. Este é o olhar humano que “vê” Cristo. A palavra grega para videbunt não significa um simples olhar, um olhar superficial, mas um olhar penetrante, que “vê” a realidade: em nosso caso, que chega pelo lado aberto até o coração de Jesus, que alcança o mistério e descobre, portanto, a paradoxal glória de Cristo na Cruz. Em conseguir “vê-Lo” está a vida do homem, está nossa vida (no sentido de João: vida eterna). Só vê, porém, quem olha com o olhar da fé[15]. O paradigma deste olhar que conhece e salva é oferecido no próprio Calvário pelo Centurião, “que viu o que tinha acontecido” e acreditou (cfr Lc 23, 47) e, sobretudo, o Bom Ladrão, que “reconhece” no Crucificado o Rei do universo: “Lembra-te de mim quando tiveres entrado no teu Reino” (Lc 23, 39-43). Esta teologia é a que está por trás da Liturgia da Sexta Feira Santa, na qual a Igreja canta: “Olhai a árvore da Cruz, de onde pendia a salvação do mundo”.
Mas o tema do olhar abre-se a novos horizontes. Porque junto ao olhar do homem para Jesus, e precedendo-o, está o olhar de Jesus aos homens. Jesus “olha” da Cruz, nos olha[16]: “Jesus, vendo sua mãe e perto dela o discípulo que amava...” (Jo 19, 26). O encontro salvífico com Cristo na Cruz é expresso no Evangelho de João na antropologia do olhar: Cristo olhando (com o amor infinito de Deus) e sendo olhado (com fé). Ilumina mais uma vez o tema da tipologia da serpente que Moisés levantou no deserto. A tradição cultural semita (e humana em geral) – dizem os antropólogos – reparou na fascinação,que já desde o primeiro capítulo de Gênesis, a serpente exerce sobre aqueles que a olham. O evangelista, ao relacionar a serpente de bronze com Cristo e com a tractio divina de João 12, está pensando sem dúvida no influxo fascinante – na tractio – que Cristo vai exercer sobre os que o “olharem”. Para São João, Cristo – mais ainda, Cristo na Cruz – é fascinante para o homem[17]. Por isso “é necessário”[18] que Cristo seja levantado ao alto para que possa ser visto e atrair a todos que o “olhem” com o olhar de que falamos[19].
3. Outros textos complementares
Queremos trazer aqui outro texto do mesmo Evangelho: João 11, 52. O Evangelista, depois de narrar que Caifás profetizou que Jesus ia morrer por toda a nação (v. 51), acrescenta: “e não somente pela nação, mas também para que fossem reconduzidos à unidade os filhos de Deus dispersos” (v. 52). Toda a Escritura, e São João muito especialmente, vê o efeito do pecado na ruptura, na separação, na dispersão: o homem, ao separar-se de Deus, rompe sua própria unidade interna e enfrenta os outros homens e a Criação, perde-se e se dispersa. A exaltação de Cristo na Cruz, ao atrair os homens, provoca a unidade dos que estavam separados. “Congregavit nos in unum Christi amor”, canta a Igreja. A tractio divina que procede da Cruz forja a unidade dos homens. A recomposição da unidade, em todos os seus aspectos – unidade do homem em seu ser e dos homens entre si; Igreja, congregatio fidelium – é fruto dessa divina atração que procede do Crucificado[20].
Um último texto para compreender biblicamente a experiência do 7 de agosto. São João 19, 30 descreve a morte de Cristo na Cruz com estas palavras: “E inclinando a cabeça, entregou o espírito”, aludindo - em seu sentido mais óbvio e imediato – à separação da alma e do corpo. A tradição, porém, “leu” muitas vezes espírito com maiúscula: o Espírito, que o Filho envia por parte do Pai (cfr. Jo 15, 26). O último suspiro de Jesus, sobretudo na teologia de João (cfr. Jo 7, 37-39), é o prelúdio da efusão do Espírito. Mons. Escrivá parece ter presentes este texto bem como esta teologia quando diz: “O Espírito Santo é fruto da Cruz”[21]. Porque sendo a exaltação de Cristo o seu encaminhamento à glória do Pai – misteriosamente antecipada na Cruz – é assim o caminho para a missão do Espírito, frutifica no Espírito, por meio do qual Cristo e o Pai nos atraem de dentro de cada um de nós. “Dá-lhes o Espírito Santo – escreveu João Paulo II[22] - como através das feridas de sua crucifixão: “Mostrou-lhes as mãos e o lado’”. Em virtude desta crucifixão, lhes diz: “Recebei o Espírito Santo”. Estabelece-se assim uma relação profunda entre o envio do Filho e o do Espírito Santo. Não se dá o envio do Espírito Santo (depois do pecado original) sem a cruz e a ressurreição: “Se eu não for, o Paráclito não virá a vós” (Jo 16, 7).
4. A atração de Cristo
A partir dos textos bíblicos que expusemos, torna-se possível indagar a natureza dessa tractio divina que Cristo exerce da Cruz. Teologicamente falando, Cristo é “atrativo”, “atraente”, de uma dupla forma: primeiro, oferecendo-se como objeto ao espírito do homem, e, além disso, transformando a interioridade do sujeito humano. A partir de fora e a partir de dentro, poderíamos dizer, se a linguagem não fosse tão pobre:
- O primeiro modo é o sentido habitual, interativo, da expressão, que alcança uma profundidade diferente. Fala-se que uma pessoa é atraente quando, ao olhá-la e ver suas qualidades etc., sentimos que ela, seus valores e sua maneira de viver, representam e propõem algo que nos penetra e nos influencia. Falamos, às vezes, de uma atração “irresistível”. A atração suscita naquele que se sente atraído um conjunto de atos pessoais dirigidos a compartilhar o próprio destino com a pessoa “atraente”. Cristo – esta é a mensagem de São João – na objetividade de sua morte redentora, atraiporque nele se revela o mistério do amor infinito de Deus que transparece sua glória; isto é, os que olham Jesus ‘exaltado” encontram-se “objetivamente” atraídos pela força desse amor divino que vem glorioso ao olhar a Cruz. Esta compreensão da Paixão do Senhor parece contraditória com o que “objetivamente” viam não apenas os que passavam pelo caminho e zombavam de Jesus, mas também os próprios discípulos: o fracasso e a ruína de todo triunfo e de toda beleza. Por isso, para São João, esta primeira forma da tractio de Cristo na Cruz somente pode se dar no seio da segunda.
- Só se Cristo, com efeito, nos faz ver, vemos ao olhar. Cristo, dizíamos, “atrai” da Cruz pelo que Ele é objetivamente e pelo que vale sua vida e sua morte. Objetividade esta, no entanto, que o homem não pode descobrir unicamente com suas forças; só a alcança se for movido pelo Espírito Santo. Mas é Cristo precisamente que, morrendo, mereceu-nos e entregou-nos o Espírito, como vimos. Mediante o Espírito, Cristo nos faz ver (no sentido joanino: reconhecer e ser atraído) o mistério de sua Cruz. Se ao olhar o Crucificado, vemos o amor do Pai é porque o Espírito veio a nós e, portanto, Cristo começou a atrair-nos. Certamente é o homem, o sujeito humano, aquele que vê; mas vê porque o Espírito Santo, “a partir de dentro”, o faz ver. Esta é a ação do Espírito em nós: abrir-nos os olhos para ver Cristo (fazer-nos “compreender” que o Crucificado é o Salvador, que nele está o Caminho, a Verdade e a Vida) e impulsionar-nos a segui-lo, unindo nossa vida à dele[23].
Dessa forma, analisamos algumas das maneiras pelas quais Cristo é quem atrai – porque “ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo” (Mt 11, 27) – e por que o próprio Cristo pode ao mesmo tempo dizer-nos: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair” (Jo 6, 44). O Pai – “principium sine principio” – é que atrai primeiramente[24]: atrai tornando Cristo “atrativo” e enviando o Espírito Santo per Christum para que possamos vê-Lo (Cristo) e, nele, o Pai.
II Os textos de Mons. Escrivá sobre João 12, 32.
São numerosos. Oferecemos os principais agrupados em uma certa ordem.
- O texto original e seu eco na Instrucción de 1/04/1934.
- a) O texto original. Em seus Apontamentos íntimos, o Fundador do Opus Dei deixou escrito como já dissemos o relato desta intervenção de Deus em sua alma, escrito e datado em 7 de agosto de 1931. Naquele dia a diocese de Madri – Alcalá celebrava a festa da Transfiguração do Senhor[25]. Mons. Escrivá alude, com agradecimento a Deus à profunda mudança interior que se tinha dado em sua alma desde que chegara a Madri em 1927. E a seguir, referindo-se à celebração da Santa Missa desse dia, escreve:
- “Creio que renovei o propósito de dirigir minha vida inteira ao cumprimento da Vontade divina: a Obra de Deus. (Propósito que, neste instante, renovo também com toda minha alma). Chegou a hora da Consagração: no momento de elevar a Sagrada Hóstia, sem perder o devido recolhimento, sem me distrair – acabava de fazer in mente a oferenda ao Amor misericordioso – veio ao meu pensamento, com força e clareza extraordinárias, aquilo da Escritura: et si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Jo 12,32). Normalmente, diante do sobrenatural, tenho medo. Depois vem aquele ne timeas, sou Eu. E compreendi que seriam os homens e mulheres de Deus que levantarão a Cruz com as doutrinas de Cristo sobre o pináculo de toda atividade humana... E vi triunfar o Senhor, atraindo a Si todas as coisas”[26].
- NaInstrucción do dia 1º de abril de 1934, o Fundador do Opus Dei já mostra sua compreensão “operativa” da passagem de João. O texto – no próprio início da Instrucción, destinada a explicar aos membros do Opus Dei a missão apostólica da Obra e a necessidade de suscitar em toda parte homens e mulheres que se entreguem à instituição – é determinante de todo o horizonte apostólico nele descrito, e que adquire um caráter programático e de urgência:
- “Caríssimos: Jesus nos urge. Quer que o elevemos de novo, não na Cruz, mas na glória de todas as atividades humanas, para atrair a si todas as coisas (Jo 12, 32)”[27]. Continua falando do reinado de Jesus Cristo[28], para prosseguir em chave eucarística: “Mas, para cumprir esta vontade de nosso Rei Cristo, é mister que tenhais muita vida interior: que sejais alma de Eucaristia, viris, almas de oração!...” E continua descrevendo aos homens e as mulheres que vivam assim como “outros” Cristos. “...fazendo que aqueles que vos tratam no exercício de vossa profissão e na vossa atuação social repitam muitas vezes aquele comentário de Cléofas e seu companheiro de Emaús: nonne cor nostrum ardens erat in nobis dum loqueretur in via? Não se nos abrasava o coração, quando ele nos falava pelo caminho? (Lc 24, 32)”[29].
- Lembranças do dia 7 de agosto
- Trata-se de dois textos com estrutura muito semelhante, nos quais Mons. Escrivá relembra e explicita formalmente a experiência de 1931, refletindo sobre o sentido da compreensão de João 12, 32 que então alcançou:
- O primeiro diz: “Naquele dia da Transfiguração, celebrando a Santa Missa no Patronato de enfermos, em um altar lateral, enquanto elevava a Hóstia, houve outra voz sem ruído de palavras. Uma voz, como sempre, perfeita, clara: et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum! (Jo, 12, 32). E o conceito preciso: não digo no sentido em que o diz a Escritura; digo-o no sentido de que me ponhais no alto de todas as atividades humanas; que, em todos os lugares do mundo, haja cristãos, com uma dedicação pessoal e libérrima, que sejam outros Cristos”[30].
- O outro corresponde à pregação de 1963: “...quando um dia, na quietude de uma igreja madrilenha, eu me sentia nada! – não pouca coisa, pouca coisa ainda teria sido algo – pensava: tu queres, Senhor, que eu faça toda esta maravilha? (...). E lá, no fundo da alma, entendi com um sentido novo, pleno, aquelas palavras da Escritura: et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Jo, 12, 32). Entendi perfeitamente. O Senhor nos dizia: se vocês me puserem na entranha de todas as atividades da terra, cumprindo o dever de cada momento, sendo minhas testemunhas no que parece grande e no que parece pequeno..., então omnia traham ad meipsum! Meu reino entre vocês será uma realidade!”[31].
3) Exposições desenvolvidas
- Homilia “Cristo presente nos cristãos”[32]. O n. 105 segue um iter idearum paralelo ao da Instrucción, acima citada, de 1/04/1934, passando, igualmente, do texto de São João ao tema do Reinado de Cristo e glosando também o encontro com os discípulos de Emaús. Mons. Escrivá expõe longamente o tema: primeiro, o texto: “Informar o mundo com o espírito de Jesus; colocar Cristo na entranha de todas as coisas. Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum, quando for levantado sobre a terra, atrairei tudo a mim”. Depois, seu sentido cristológico abrangente: vem dizer-nos que a “exaltação sobre a terra” compreende toda a vida de Cristo, desde a Encarnação até a Ressurreição. Finalmente a mensagem que ele compreendeu no dia 7 de agosto: proclamar a realeza de Cristo em todas as encruzilhadas da terra, levando “Cristo a todos os âmbitos em que se desenvolvam as tarefas humanas: à fábrica, ao laboratório, ao trabalho da terra, à oficina do artesão, às ruas das grandes cidades e aos caminhos de montanha”. A passagem de Emaús neste contexto prolonga-se no tema do cristão ipse Christus: Cristo que atrai através de quem vive assim a vida cotidiana – os corações daqueles que os encontrem (os olhem) devem arder ao tratá-los – pois o cristão deve ser o bonus odor Christi, o bom odor de Cristo que atrai. A inserção de Cristo é tema do n. 106. O esquema é: Cristo, exaltado na Cruz, nos “olhou” e, pela fé e os sacramentos – a Eucaristia sobretudo – o cristão “olha a Cristo” e se sente continuamente atraído por ele e introduzido na unidade da Igreja. “Por isso, como Cristo, deve viver de frente para os homens, olhando com amor a todos e cada um dos que o rodeiam e a toda a humanidade”. Tema do n. 107: “Mas para ser ipse Christus é preciso olhar-se nele.
- Homilia na festa de Cristo Rei[33]. É talvez onde Mons. Escrivá se expressa mais formalmente sobre o nosso assunto. O texto é excessivamente extenso para reproduzi-lo aqui. A sequência de ideias é fundamentalmente idêntica à da Instrucción de 1934: o texto de João, seu significado para a missão apostólica[34], o Reinado de Cristo, o cristão ipse Christus (“abraçar a fé cristã é comprometer-se a continuar a missão de Jesus entre as criaturas”). Há neste número uma formosa e profunda síntese da doutrina de João e de Paulo[35].
- Entrevista publicada em “L’Osservatore della Domenica”, 19-V-1968[36]. Texto e compreensão em forma definitória. “Há muitos anos, desde a própria data fundacional do Opus Dei, meditei e fiz meditar umas palavras de Cristo que São João relata: Et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum. Cristo, morrendo na Cruz, atrai a Si a Criação inteira, e, em seu nome, os cristãos, trabalhando no meio do mundo, devem reconciliar todas as coisas com Deus, colocando Cristo no cume de todas as atividades humanas”. Esta passagem é interessante por muitas razões, começando pela declaração fundacional que está implícita. O texto de São João, é evidente, não aparecia de improviso na vida de Mons. Escrivá, mas tinha sido objeto de sua meditação – segundo ele mesmo diz – desde a própria fundação do Opus Dei. No dia 7 de agosto, porém, há uma irrupção de luz de Deus que transcende ao mesmo tempo que corrobora aquela meditação muitas vezes feita.
- Homilia na festa de Corpus Christi[37]. O versículo de São João está aqui em contexto eucarístico. Prolonga as afirmações eucarísticas que Mons. Escrivá faz no citado texto inicial da Instrucción de 1934. Ambos são fundamentais para este aspecto de João 12, 32, como veremos mais adiante. É interessante observar que o Fundador do Opus Dei não parte aqui do texto de João, mas chega a ele a partir da Eucaristia. Ele está pregando, como dizíamos, no dia de Corpus Christi, e descreve a procissão que se realiza neste dia. Daí passa à procissão “de todos os dias”, que deve ser a passagem do cristão (coerente com sua fé) nas atividades da vida cotidiana. O cristão, em suas atividades seculares santificadas, “é Cristo que passa”, e por isso desprende o bonus odor Christi. Eis o texto: “Peçamos, pois, ao Senhor que nos conceda a graça de sermos almas de Eucaristia, que a nossa relação pessoal com Ele se traduza em alegria, em serenidade, em propósitos de justiça. E assim facilitaremos aos outros a tarefa de reconhecerem Cristo, contribuiremos para colocá-lo no cume de todas as atividades humanas. A promessa de Jesus se cumprirá: Eu, quando for levantado sobre a terra, tudo atrairei a mim”.
4) Formulações breves da “compreensão”
Junto destes textos mais longos, explicitamente apoiados no versículo de João, encontram-se nas obras de Mons. Escrivá textos breves, muito condensados, nos quais já não é citada nem é feita referência ao texto de João, para chegar diretamente à “compreensão” do texto que lhe foi dada naquele 7 de agosto. Trata-se de passagens que mostram como aquela experiência calou fundo e configurou sua concepção da existência cristã.
- “Deus quer um punhado de homens “seus” em cada atividade humana. – Depois... “pax Christi in regno Christi” – a paz de Cristo no reino de Cristo[38]”. A tractio divina gera o reinado de Cristo e a paz própria desse reino.
- “Deus nos chamou a todos para que o imitássemos; e a vós e a mim para que, vivendo no meio do mundo – sendo pessoas da rua! – saibamos colocar Cristo Nosso Senhor no cume de todas as atividades humanas honestas”[39].
- “Trabalha sempre e em tudo, com sacrifício, para pôr Cristo no cume de todas as atividades dos homens”[40].
- “Pelo ensinamento paulino, sabemos que temos de renovar o mundo no espírito de Jesus Cristo, que temos que colocar o Senhor no vértice e na base de todas as coisas. – Pensas que o estás cumprindo no teu trabalho, na tua tarefa profissional?”[41] Aqui aparece de novo o interessante desenvolvimento da fórmula – “no alto e na entranha” – que já havíamos encontrado na homilia pascal de 1963: “Instaurare omnia in Christo, dá como lema São Paulo aos de Éfeso (Ef. 1, 10); informar o mundo inteiro com o espírito de Jesus, colocar Cristo na entranha de todas as coisas. Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum, quando for levantado ao alto sobre a terra, tudo atrairei a mim”[42].
- 5) Textos que dilatam a cristologia de João 12, 32
- Incluímos sob esta epígrafe algumas passagens das obras de Mons. Escrivá nas quais a perspectiva daquele 7 de agosto, ligada a João 12, 32, projeta-se para a consideração de toda a vida histórica de Cristo:
- Jesus em sua vida oculta: “E era Deus; e estava realizando a redenção do gênero humano; e estava atraindo a si todas as coisas”[43].
- “Os seus braços – voltamos a admirá-lo no presépio – são de criança, mas são os mesmos que se abrirão na Cruz, atraindo todos os homens”[44].
- Redenção objetiva e subjetiva
- Elevar a Cristo de novo
- A novidade do 7 de agosto de 1931
c) Na seção já referida da homilia pascal[45], depois de transcrever João 12, 32 e como que explicando seu sentido espiritual lê-se: “Cristo, com a sua encarnação, com a sua vida de trabalho em Nazaré, com a sua pregação e milagres pelas terras da Judeia e da Galileia, com a sua morte na Cruz, com a sua Ressurreição, é o centro da Criação, Primogênito e Senhor de toda a criatura”. Centro, entende-se, de atração e de irradiação.
III. O sentido espiritual de João 12, 32 segundo Mons. Escrivá
Anotados os textos sobre nosso tema, tratemos agora de aprofundar um pouco mais neles[46]. A compreensão do versículo concedida ao Fundador do Opus Dei é, simplesmente, a que ele mesmo explica: desde o texto dos Apontamentos íntimos, em que narra a experiência sobrenatural de que estamos falando, até os numerosos comentários ao versículo de São João que transcrevemos.
As notas de pé de página que Mons. del Portillo preparou para a citada Instrucción de abril de 1934 contêm um comentário e uma interpretação da passagem correspondente que nos parecem interessantes por muitas razões, entre outras – e não é a menor delas – porque demonstram a “receptividade” que os primeiros membros do Opus Dei já tiveram do sentido espiritual do texto que o Fundador lhes propunha.
“O Senhor, com essas palavras que São João conservou em seu Evangelho, afirmava que quando ele morresse no alto da Cruz, a obra da Redenção iria se realizar: este é o sentido literal. A luz nova que o Padre viu nesse anúncio do Senhor foi: devemos pôr Cristo no cume de todas as atividades humanas honestas, trabalhando no meio do mundo, na rua – somos gente da rua – para corredimir com Jesus, para reconciliar as coisas do mundo com Deus, para que o Senhor atraia tudo a si. E como poremos Cristo no cume de todas as atividades humanas? Fazendo nosso trabalho cotidiano – cada um o seu – o melhor que pudermos, inclusive humanamente, por amor de Deus: nisso está a entranha da Obra. Trata-se da santificação de todas as atividades humanas: converter todas as atividades do mundo – todas, escreve o Padre: nosso apostolado não conhece limites – em coisa santa, e em meio de santificação própria e alheia”.
Seguindo o texto de Mons. Escrivá de 1947, há uma distinção entre o sentido literal e o sentido espiritual do texto, e este último– a “compreensão” do dia 7 de agosto de 1931 – é descrito do modo mais rigoroso. Nesta linha podemos continuar indagando as implicações teológicas do que foi então “compreendido”.
Cristo é o Redentor do homem, de toda a humanidade. A palavra Redenção, em seu sentido teológico mais abrangente – como quando dizemos a “obra da Redenção”, a “economia da Redenção” – designa os atos redentores de Cristo e a ação santificadora do Espírito para a salvação de cada homem (economia “sacramental” e eclesiológica). A teológica clássica chamou “redenção objetiva” aquela que Cristo realizou de uma vez por todas (“efápax”,semel, Hb 7,27) em sua vida, morte e ressurreição: de Belém à glória do Pai; ou, dito de modo sintético, no estilo de João, aquela que realizou na sua exaltação histórica na Cruz – localizada no tempo e no espaço. A “redenção subjetiva” viria a ser o desdobramento espacial e temporal dessa “redenção objetiva” - merecida e obtida por Cristo na Cruz – nos homens e mulheres concretos; identifica-se nuclearmente com a tractio de Cristo na Cruz, que alcança o homem concreto; realiza-se no mundo pela missão do Espírito e da mediação da Igreja (ordem da sacramentalidade) e finaliza no Deus Trino através da mesma Igreja na medida em que é comunhão dos homens com Deus, incoada in terris, consumada in patria. João Paulo II expressou belissimamente esta teologia em sua encíclica sobre o Espírito Santo: “A redenção é realizada totalmente pelo Filho, o Ungido, que veio e atuou com o poder do Espírito Santo, oferecendo-se finalmente em sacrifício supremo sobre o madeiro da Cruz. E esta Redenção, ao mesmo tempo, é realizada constantemente nos corações e nas consciências humanas – na história do mundo – pelo Espírito Santo, que é o “outro Paráclito””[47].
O que Deus fez Mons. Escrivá ver e compreender está, sobretudo, na ordem da “redenção subjetiva”, no plano da ação do “outro Paráclito”: o Senhor o fez entender de modo divino como entrava em seu plano de salvação que Cristo realizasse no mundo essa tractio para cuja consecução Cristo foi exaltatus na Cruz. Mons. Escrivá expressou essa sua compreensão da “redenção subjetiva” com a própria terminologia no texto de João 12, 32, concretamente com o termo exaltatus, que se refere de modo imediato à dimensão objetiva da obra redentora; o que pede precisão na análise para identificar plenamente a mensagem que Deus fez com que ele entendesse. Vejamos, pois, em primeiro lugar, o que é a exaltatiode que o Fundador do Opus Dei nos fala.
A terminologia, como vimos, é: erguer (a Cruz), ser elevado (Cristo); colocar, pôr, Cristo no cume, no alto, na entranha. Todos os termos referem-se a uma “nova” exaltação de Cristo: “quer ser elevado de novo”. Levando em conta a unicidade, o fato de não poder ser repetido e a perfeita suficiência do Sacrifício de Cristo na Cruz, é evidente que Mons. Escrivá falava do que hoje chamamos “ordem da sacramentalidade”, quer dizer da presença na história dos atos históricos redentores de Cristo. Mons. Escrivá responde aí à questão: como o homem alcança hoje a redenção que Cristo fez de uma vez por todas na Cruz? Sua resposta enquadra-se na da Tradição: Cristo alcança o homem através da Igreja, que é o sacramento universal da salvação. A Igreja – tanto em sua dimensão institucional e hierárquica, como através do testemunho pessoal e comunitário dos fiéis – ao exercer a missão que o próprio Cristo lhe confiou, é o sinal e o instrumento pelo qual Cristo e a sua ação redentora tornam-se presentes no mundo. Com palavras de João Paulo II: “O Espírito Santo vem depois de Cristo e graças a Ele, para continuar no mundo por meio da Igreja, a obra da Boa Nova da salvação”[48]. Deixemos claro este ponto: é Cristo que salva, não a Igreja. A Igreja, pela presença nela do Espírito Santo, é instrumento da ação salvadora de Cristo. Assim se compreende em toda sua força que Mons. Escrivá utilizasse, para expressar a que chamamos “redenção subjetiva”, o termo de João que designa o ato culminante da “redenção objetiva”: a exaltação na Cruz.
É simples, profundo, imediato o modo como Mons. Escrivá declara que a colaboração da Igreja na aplicação da obra redentora de Cristo – também, portanto, essa ação eclesial “dos homens e mulheres de Deus”, segundo a expressão do relato originário – é “sacramental” no rigoroso sentido teológico da palavra. Quer dizer, não se trata de um “plus” que se agrega à Cruz de Cristo, e sim a própria presença (sacramental) da Cruz de Cristo, Cristo que se torna presente pelo caminho que o próprio Jesus indicou: os cristãos e sua vida, quer dizer, a Igreja. Esse levantar, colocar, pôr, alçar de novo a Cruz, pelos “homens e mulheres” de Deus, é, pois, a forma expressiva e intuitiva que Mons. Escrivá tinha – nestes textos – de dizer que Cristo com sua Cruz (gloriosa) entrou nas vidas dos homens (batismo, vocação) e que através deles, em consequência, se “manifesta” (signo) a Cruz de Cristo e se “realiza” (instrumento) a tractio divina que dela emana. É aquilo de São Paulo: Mihi autem absit gloriari, nisi in cruce Domini Nostri Iesu Christi per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundo (Gl 6,14). Et ego mundo: o cristão é – há de ser – Cristo crucificado (e glorioso) ante o mundo.
As considerações precedentes referem-se ao “clima” de meditação joanina na qual se enquadra o que Mons. Escrivá compreendeu e viu naquele 7 de agosto. Essas considerações estão na base teológica e eclesiológica do modo da “exaltação” de Cristo que ele compreendeu então. Constitui, porém, apenas o começo da própria compreensão, que vai além, até a determinante “novidade” daquele dia. Por isso, para situar o significado daquele 7 de agosto, é preciso pensar que a teologia de João da Redenção pela “exaltação”, tanto em sua dimensão objetiva como subjetiva, pertence à própria revelação do mistério de Cristo. Pode e deve, portanto, alimentar toda vida cristã, seja qual for seu estilo e sua posição estrutural na multiforme variedade de vocações que se dão na Igreja; e, em consequência, pode e deve ser entendida – com toda legitimidade - na perspectiva de cada uma delas.
O que é “novo” na compreensão que Deus concedeu a Mons. Escrivá é, precisamente, uma nova perspectiva do mistério único de Cristo, que o levava à compreensão cristã e eclesial da secularidade. O Fundador do Opus Dei indica isso, nos textos que comentamos, com outra série de expressões, mais ou menos equivalentes entre si: (pôr Cristo, ou a Cruz de Cristo) no pináculo de toda atividade humana, na glória de todas as atividades humanas, na entranha de todas as coisas, no cume de todas as atividades da terra, no cume de todas as atividades humanas, no alto e na entranha de todas as coisas. O que Mons. Escrivá compreendeu “com força e clareza extraordinárias” é que o cristão, também e precisamente na medida de em que está unido a Cristo na atividade secular – santificação do trabalho – é Cristo na Cruz, Cristo “levantado” diante do mundo, diante dos colegas de profissão; é Cristo – exaltado no meio da história humana - que se pode “olhar” para “ver” e ser atraído. Teologicamente falando: ele compreendeu que Deus queria – “quer ser elevado de novo...” - que a atividade secular do cristão, na sua mais plena extensão, fosse signo e instrumento da Cruz redentora de Cristo, ou seja, que manifestasse ao mundo o amor salvador que está na Cruz de Cristo e fosse ao mesmo tempo, instrumento para que a Cruz do Senhor atraísse a si “pántas” e “tá pánta”: as pessoas e as coisas, os ambientes, a vida social, as realidades espirituais e materiais. Mons. Escrivá, definitivamente, “compreendeu” o significado salvador da secularidade cristã e, consequentemente, o caminho para santificá-la.
- Colocar Cristo no cume de todas as coisas
- Estas considerações iluminam o sentido da expressão mais conhecida e sintética de todas estas passagens: “Colocar Cristo no cume de todas as atividades humanas”. O que é dito aqui? Percebe-se que a “exaltação” e o “cume” de que fala o Fundador do Opus Dei pouco tem a ver com uma realidade similar que se designava sob o título “reinado social” na teologia, na espiritualidade e na práxis apostólica de boa parte de nosso século. O reinado social de Cristo apareceu frequentemente, nas categorias e na linguagem ad usum, como um ideal de formas triunfantes próprias de uma theologia gloriae, que, sobre a base de um institucionalismo católico, renovaria velhos esquemas de cristandade. A doutrina de Mons. Escrivá, pelo contrário, a partir do próprio texto bíblico gravado em sua alma, é theologia crucis: o senhorio de Cristo sobre a humanidade inteira (pántas) ou sobre a totalidade cósmica (“tá pánta”) está essencialmente vinculada à kenosis da Cruz.
- “Colocar a Cruz de Cristo no cume de todas as atividades humanas” não é um ato “político” ou “social”. O “cume” no qual é preciso pôr Cristo (crucificado) não é um edifício nem um monumento; não é uma fachada, nem do município, nem da região, nem do Estado, nem da organização mundial das nações; não é uma organização político-religiosa[49]. Segundo Mons. Escrivá, o “cume” não são coisas, mas pessoas. Com suas próprias palavras: pôr Cristo no alto de todas as atividades humanas significa “que, em todos os lugares do mundo haja cristãos, com uma dedicação pessoal e libérrima, que sejam outros Cristos[50]”.O cume é, pois, a própria vida secular do cristão, na medida em que está entregue a Cristo e seja vivida com Cristo com todas as suas consequências: trabalho santificado, com a qualidade humana e divina que exige, com o prestígio profissional e o fogo apostólico que comporta. E através das pessoas, e como consequência da sua identificação pessoal com Cristo, os efeitos sociais da exaltação de Cristo: “Pax Christi in regno Christi”. Porque Cristo é Rei e “regnare Christum volumus”. Toda a doutrina contida na Homilia sobre Cristo Rei, além de ser um dos textos em que se expressa sobre João 12, 32, é ela mesma o desenvolvimento do nosso tema.
- Colocar Cristo no cume de todas as atividades humanas. Poderíamos dizer:
- as atividades humanas: nelas estão os homens e as mulheres pelos quais Cristo morreu (ao ser levantado na Cruz: redenção objetiva) e os que quer atrair (quando for levantado no alto: redenção subjetiva);
- o cume em cada atividade humana; o Senhor fez o Fundador do Opus Dei entender que esse cume para onde olhar eram “os homens e as mulheres de Deus”, as vidas desses cristãos comprometidos na santificação da atividade humana e entregues realmente a essa tarefa, que é sua vocação e sua missão. A partir desse cume Deus quer que se realize a tractio divina da Cruz no horizonte da secularidade.
- Um dos textos que chamamos de compreensão sintética diz exatamente isto: “Deus quer um punhado de homens “seus” em cada atividade humana. – Depois... “pax Christi in regno Christi” – a paz de Cristo no reino de Cristo”[51]. Os “seus” homens dentro de cada atividade humana são, sendo iguais entre seus iguais, o “cume” (Cristo levantado) que os colegas, amigos e companheiros podem olhar para “ver” a Cruz de Cristo e ser atraídos por Ele. Ver Cristo no seio da faina diária no mundo, a redenção percebida dentro do mundo e de seu desenvolvimento, não fora do mundo. O cume não é, pois, um conceito “triunfalista”, como se dizia há uns anos. Designa, antes, o cristão e a sua vida secular – vida secular de um estadista ou de um sapateiro – crucificada com Cristo: triunfo, certamente, mas da Cruz.
- João 12, 32 e o cristão “ipse Christus”. Dimensão eucarística da “compreensão”
- A “unidade de vida” à luz do 7 de agosto de 1931
À luz de Jo, 12, 32 percebe-se por que Mons. Escrivá dizia com insistência, referindo-se ao cristão comum, coisas que pareciam, para muitos, próprias do sacerdote: concretamente, que ele devia ser alter Christus, mais ainda, ipse Christus. Deus, efetivamente, fê-lo entender a existência secular santificada como a “visibilidade” de Cristo na Cruz atraindo os colegas da atividade humana no mundo. A passagem dos discípulos de Emaús – no qual precisamente Jesus explica o sentido glorioso da Cruz e que Mons. Escrivá relaciona com aquilo que ele entendeu em 7 de agosto de 1931 – e, sob este aspecto, é eloquente: devem ser Cristo - dizia - para “aqueles com quem vocês mantém relações no exercício de suas profissões e em sua atuação social”. O texto de Lc 24, 32, ao mostrar o coração daqueles dois discípulos aceso pela conversa de Cristo pelo caminho, insinua o caráter fascinantedo Cristo exaltado. Ao olharmos um cristão comum que luta por viver em Cristo sua existência secular, vemos, com a graça de Deus, na verdade de seu sacrifício e de sua entrega (signo), Cristo que passa e atrai. Por isso pregava: “Manifestem claramente o Cristo que vocês são”[52]. Em certa ocasião (eu estava presente: por volta de 1958), Mons. Escrivá conversava em Roma com um grupo dos seus filhos sobre a missão apostólica e nos dizia que, para levá-la a cabo, devíamos cultivar o relacionamento com nossos colegas. Interrompeu-se e acrescentou: “Na verdade, basta que os deixeis conversar com vocês”. Como que para indicar que o poder de Cristo preenche a vida do cristão (entende-se, se ele se esforça realmente por viver entregue a Ele) e é, portanto, inevitável que contagie, que fascine ao entrar em contato com os homens: basta que seja “levantada ao alto” – quer dizer, que entre realmente na vida de um homem ou de uma mulher – para que se perceba a atração de Cristo.
Não se deve, porém, esquecer nunca que a glória e a fascinação de que São João fala ao apresentar Cristo na Cruz é sempre a antecipação escatológica da Ressurreição que o evangelista já via, misticamente, no Crucificado. Quero dizer que a Cruz como cruz é intransponível, e o caminho dos cristãos, vivendo a mais plena secularidade, é sempre o caminho da Cruz: a secularidade cristã – ou, simplesmente, a secularidade, pois trata-se de um conceito teológico – é sempre uma secularidade crucificada com Cristo, na Cruz, e precisamente por isso, por ser essa Cruz a de Cristo, é gloriosa, é fascinante, atravessada pela alegria de Deus: “Tu fizeste, Senhor que eu entendesse que ter a Cruz é encontrar a felicidade, a alegria. E a razão – vejo-o com mais clareza que nunca – é esta: ter a Cruz é identificar-se com Cristo, é ser Cristo, e por isso, ser filho de Deus”[53].
Talvez seja este o momento de considerar o que poderíamos chamar a “dimensão eucarística” da compreensão de Jo 12, 32. O Sacrifício da Missa é o mesmo Sacrifício da Cruz: identidade de Sacerdote e Vítima. Misteriosamente – sacramentalmente – na celebração da Eucaristia se torna presente a “exaltação” de Cristo na Cruz, e em consequência, a tractio do Crucificado. Há um rito na liturgia da Missa que o mostra de modo especialíssimo: o rito de “elevar”. Como se sabe, esse “elevar” a Hóstia e o Cálice depois da Consagração não é liturgicamente um rito de “oferecimento” ao Pai, e sim de “apresentação” aos fiéis. O sacerdote, ao elevar, apresenta Cristo aos homens para que o “olhem”, e olhando o vejam e vendo o adorem e sejam atraídos até identificar-se com Ele na comunhão. O celebrante, na elevação, é o primeiro que “olha” assombrado o que acaba de acontecer em suas mãos. Este é o momento em que Mons. Escrivá “compreendeu” João 12, 32 e “viu” o triunfo de Cristo. Poderíamos dizer que toda a sua doutrina sobre a Eucaristia como centrum ac radix (centro e raiz) da evangelização e da vida espiritual é o modo sacramental de expressar a centralidade do mistério da Cruz revelado em João 12, 32.
Esta dimensão eucarística de Jo 12, 32 na compreensão de Mons. Escrivá expõe exatamente sua doutrina do cristão ipse Christus. Ser “alma de Eucaristia” – expressão muito própria dele[54] - era para ele um modo de intimidade e identificação com Cristo que mostra e deixa transparecer Cristo para os outros. No cristão os homens devem poder reconhecer Cristo. Dizia, por isso, que nós, cristãos, devemos ser “viris”, no sentido do ostensório que mostra Cristo: “Peçamos, pois, ao Senhor que nos conceda a graça de sermos almas de Eucaristia, que a nossa relação pessoal com Ele se traduza em alegria, em serenidade, em propósitos de justiça. E assim facilitaremos aos outros a tarefa de reconhecerem Cristo, contribuiremos para colocá-lo no cume de todas as atividades humanas. Cumprir-se-á a promessa de Jesus: Eu, quando for levantado sobre a terra, tudo atrairei a mim”[55].
Este é outro aspecto, a meu ver essencial, do acontecimento espiritual que estamos comentando. Por ser, precisamente, o que foi a “novidade” então compreendida – a secularidade do cristão como caminho de redenção, de tractio da Cruz – encontra-se em seu núcleo o que depois Mons. Escrivá chamaria a “unidade de vida” do cristão. O que é fascinante nessa existência cristã secular – o que a torna caminho para a tractio divina – é a cristificação interna da dimensão secular da existência, a integração perfeita da existência-no-mundo na existência cristã. É isto que é novo.
O tema da unidade de vida tem uma consistência teológica própria e aqui devo aludir a ele para indicar seu lugar teológico (cristológico) no pensamento de Mons. Escrivá. Quero apenas sublinhar duas coisas:
- Que a unidade de vida, vista do horizonte de João 12, 32, aparece como um dom divino e ao mesmo tempo como uma tarefa. O que é próprio do cristão comum – do leigo - não é a mundanidade em si, pois esta é comum ao homem como tal; nem tampouco a secularidade, entendida esta como dimensão da Igreja – o que se chamou secularidade geral da Igreja – mas a doação que Deus lhe faz dessa mundanidade na medida em que está inserida na ordem da Redenção e como instrumento de Redenção; quer dizer, trata-se da secularidade ou indoles saecularis, de que fala o Vaticano II[56], que é dada por Deus junto com a vocação cristã, com o ser e viver na Igreja, mas que é ao mesmo tempo a tarefa do cristão com a luta ascética e o afã apostólico. Essa tarefa, realizada e manifestada, é o “elevar Cristo” na “glória” de todas as atividades humanas. A unidade de vida aparece assim como condição imprescindível para que se exerça a tractio da Cruz do modo que o Senhor fez o Fundador do Opus Dei compreender.
- Não é, porém, apenas condição para a tractio, mas ela mesma – a unidade de vida do cristão – já é fruto da tractio de Cristo na Cruz. Santo Agostinho tem uma interpretação sugestiva do omnia traham que vai nessa direção. São João Crisóstomo[57] lê em João 12, 32 “pántas”, omnes, mas Agostinho recebeu através da Vetus latina o “tá pánta”. Para Agostinho omne traham deve ser também referido “à integridade da pessoa humana, feita de corpo, alma e espírito; quer dizer, daquilo pelo que pensamos, daquilo pelo que vivemos, daquilo pelo que somos palpáveis e visíveis”[58]. Aqui Santo Agostinho não pensa, pois, na totalidade cósmica, nem na totalidade humana e sim na totalidade do sujeito humano. O ser humano- é o que está no fundo da interpretação do santo bispo de Hipona – está dividido e disperso em consequência do pecado, perdeu a integridade originária; a tractio divina da Cruz atrai o disperso para restituí-lo à unidade.
- Esquema sintético
Cristo, de fato, conseguiu-nos (dom divino) a unidade de nosso ser, mas enquanto estamos na terra, temos que batalhar para mantê-la e potenciá-la. Poderíamos dizer que, se na história das origens encontramos no homem, como consequência do pecado, o binômio “integridade”/ “dispersão”, agora na Igreja, como consequência da Redenção, dá-se um novo binômio, cuja dinâmica é de signo inverso: da “dispersão” à “integridade”.
A plenitude consumada deste segundo membro é escatológica (céu). Mas no tempus Ecclesiae (história) tem já uma fase inicial, que é essa “unidade de vida” do cristão – ao mesmo tempo dom de Deus e tarefa histórica – que implica sacrifício, sofrimento, luta ascética. A unidade de vida no meio das atividades seculares, que é impossível sem a Cruz, antecipa na história a glória do céu. Por isso é exaltação, cruz gloriosa, Cristo que atrai e fascina[59].
Digamos, finalmente, que a tractio da Cruz, com o estatuto teológico que consideramos, responde ao seguinte esquema:
- A tractio divina como sinônimo da redenção “objetiva” realizada uma vez por todas (“efápax”, semel), fruto da missão de Cristo a partir do Pai. Valor redentor da exaltação de Cristo na Cruz: radicalmente redimidos (“atraídos”) todos os homens.
- Atractio divina como presença na história da exaltação na Cruz e da redenção obtida de uma vez por todas: redenção “subjetiva” ou economia eclesial e sacramental realizada pela missão do Espírito. Exerce-se:
- a) estruturalmente, pelo ministério da palavra, que anuncia a Redenção, e sobretudo pelos atos sacramentais, que tornam presente sacramentalmente (em sentido estrito: ex opere operato) a Cristo e seus atos redentores;
- b) existencialmente, através da própria vida do homem cristão, ipse Christus, que torna presente (testemunho cristão, sacramentalidade da Igreja em sentido amplo) a exaltação redentora de Cristo; Deus fez Mons. Escriva entender que a existência no mundo - a secularidade cristã santificada - formava parte essencial dessa economia da tractio redentora.
- Os níveis da tractio de Cristo na história a que aludimos no n. 2 seriam:
- nível antropológico (“pántas”): atrai a todos os homens, com três momentos ou dimensões: primeira, atrai à fé (“ver”); segunda atrai progressivamente até a plena união com Cristo: unidade do ser e da vida do cristão; terceira atrai à vida social, cultural e política.
b. nível cósmico: (“tá pánta”): santificação em sentido último das realidades terrenas. Dimensão escatológica: “Deus omnia in omnibus” (1 Cor 15, 28).
Estudo de Pedro Rodríguez, professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra, publicado em “Romana”, n. 13 (1991).
Pedro Rodríguez
[1] Ao cabo dos anos ele escreverá recordando esta data: “naquele dia da Transfiguração, celebrando a Santa Missa no Patronato de enfermos, num altar lateral, enquanto elevava a Hóstia, houve outra voz sem ruído de palavra” (Carta, 29/12/1947/ 14/02/1966, n. 89). As obras que utilizamos de Mons Escrivá são: a)Caminho, 1939; Sulco, 1986; Forja, 1988; que são citadas pelo número correspondente a cada “ponto”. b) Entrevistas Mons. Escrivá, 1969; É Cristo que passa, 1973; Amigos de Deus, 1977; que se referenciam pelos números marginais dos parágrafos. c) As coleções de Instrucciones y Cartas, escritos dirigidos aos membros do Opus Dei, e os Apontamentos íntimos, cadernos holográficos de Mons. Escrivá escritos nos anos trinta, referenciados também pelos números marginais.
[2] O relato desta intervenção de Deus em sua alma, ao qual pertencem as citações entre aspas no texto, encontra-se em Apontamentos íntimos, n. 217.
[3] Vid. J .L ILLANES, Dos de Octubre de 1928: alcance y significado de una fecha: AA.VV.,”Mons. Josemaria Escrivá y el Opus Dei’, Pamplona 1975, pp. 65ss.
[4] Vid. em ANA SASTRE, Tempo de caminhar. 1989.
[5] Dentre a imensa bibliografia sobre o tema remetemos a duas conceituadas obras da exegese católica deste século: M.J. LAGRANGE, l’Évangile de Saint Jean, Paris 1927, e R.SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, Barcelona 1980. Uma breve seleção de comentários patrísticos sobre São João: S. BOUQUET, L’Évangile selon Jean expliqué par les Pères, Paris, 1985.
[6] SCHNACKENBURG, II, p.470.
[7] Um texto entre muitos: “qual é a glória do Senhor? A Cruz, evidentemente, na qual Cristo foi glorificado: o esplendor da glória do Pai, como ele mesmo disse quando a paixão se aproximava: Agora é glorificado o Filho do homem, e Deus é glorificado nele, e logo o glorificará”. Texto no qual ele chama glória sua própria exaltação na Cruz. Pois a Cruz de Cristo é efetivamente sua glória e exaltação, pelo que tinha dito: “Quando eu for levantado da terra atrairei todos a mim” (SANTO ANDRÉ DE CRETA, Orat. 9 in ramos palmarum, PG 97, 1002).
[8] João emprega para a Cruz a mesma palavra que Lucas para referir-se à Ascensão (cfr. At 2, 33): “exaltari”, ser levantado; em São João, porém, o vocábulo aparece exclusivamente para referir-se à Cruz. Os textos são, além deste: pouco depois, o v. 34, e antes 3, 14 e 8, 28.
[9] LAGRANGE, p. 81, insiste especialmente em que, também em São João, “exaltação” e “glorificação” de Cristo são a rigor temas diversos, embora tenham na teologia de João uma peculiar proximidade.
[10] Atrás da doutrina de São João sobre o tema – como da de São Paulo em Fl 2, 5-11, com perspectiva diferente – está, na opinião dos exegetas, uma profunda meditação da figura do Servo de Javé segundo Is 52, 13: “Sabei que meu servo prosperará, será exaltado e engrandecido e chegará ao próprio cume da glória”.
[11] São Paulo, a partir de sua perspectiva soteriológica, põe igualmente em relevo a tractio da Cruz: “Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos; mas, para os eleitos – quer judeus, quer gregos – forçade Deus e sabedoria de Deus” (1 Cor 1, 23s). “Por que a Cruz é a suprema “força e sabedoria de Deus”? A resposta é uma só: porque na Cruz manifestou seu amor: “Deus nos demonstra o seu amor em que, sendo pecadores, Cristo morreu por nós” (Rm 5, 8)” “JOÃO PAULO II, Aloc. 31/08/1988).
[12] SCHNACKENBURG, II, p. 486.
[13] .Vid. LAGRANGE, p. 334, e SCHNACKENBURG, II, p. 614, nota 98. Santo Agostinho que lê faz uma leitura teológica alternativa na linha antropológica de xxxx: “Si omnia ipsi homines intelligendi sunt...possumus dicere:...omnia momentum genera, sive in linguis omnibus, sive in aetatibus omnibus, sive in grandibus honorum omnibus, sive in diversitatibus ingeniorum omnibus, sive in artium licitarum et utilium professionibus omnibus, et quidquid alliud dici potest secundum innumerabiles differentias quibus inter se praeter sola peccata homines distant, ab excelsissimis usque ad humillimos, a rege usque ad mendicum; omnia, inquit, trahan post me, ut sit capuit eorum, et illi membra eius” (SANTO AGOSTINHO, Tract. In Joannis evangelium, 53, 11: PL 35, 1773).
[14] “Até aqui, a história Ela, porém, em si mesma, descreve tipologicamente todo o mistério da encarnação” (SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA, In Joannis evangelium, lib. 2, III, 14-15: PG 73, 251s). Já o livro da Sabedoria (16, 6 ) havia qualificado a serpente de bronze como “sinal de salvação”.
[15] O Senhor já tinha dito respondendo precisamente à pergunta “Quem és tu?”: “Quando levantardes o Filho do Homem, então sabereis que sou Eu” (Jo 8, 28). Estas palavras de Jesus são dirigidas precisamente aos que o perseguem e o levarão à Cruz, o que suscita a difícil questão de seu sentido (vid. a longa exegese deste versículo em SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA, in Joannis Evangelium, lib. 5, VIII, 28: PG 74, 823- 832), na qual apresenta as diferentes interpretações do texto. A primeira dessas propostas exegéticas (“cum sublime aliquid sapere de me inceperitis...tunc manifesto cognoscetis me esse lucem mundi ”) conecta especialmente com o olhar de que aqui estamos falando. Em todo caso João 8, 28 sublinha a universalidade da eficácia da exaltação de Cristo na Cruz.
[16] Mons. Escrivá tinha uma grande devoção a Cristo vivo na Cruz – Cristo antes do golpe da lança, costumava dizer – que olha com olhar transpassado de amor, com “olhos de olhar amabilíssimo” (Caminho n. 422). Não terá esta devoção a Cristo uma íntima relação com o acontecimento do dia 7 de agosto?
[17] “A imagem da serpente era imagem da economia da Cruz”, (SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, De serpente homilia, 3 PG 56, 503). A serpente no Paraíso foi fascinante para induzir o homem ao pecado e Cristo o será para conduzir os homens após si – post se, como Santo Agostinho lê em João 12, 32 – à felicidade da glória. A serpente de bronze – morta, inerte, que não pode inocular o veneno do pecado no homem – significa nesta tipologia, segundo a exegese patrística, o pecado derrotado e morto na cruz com a crucifixão de Cristo, que assumiu, sem pecado, “a carne de pecado”: “Deus, ao enviar seu Filho, in similitudinen carnis peccati et pro peccato, condenou o pecado na carne” (Rm 8, 3). Vid. sobe o tema a citada homilia do Crisóstomo, o texto de Teodoro de Mopsuestia que é reproduzida em S.BOUQUET, o.c., pp 64s e o texto de São Cirilo de Alexandria que transcrevemos um pouco abaixo.
[18] Jo 3, 14; 12, 34. Vid. também 3, 30 e 20, 9.
[19] Deus Verbo fez-se homem e subiu à Cruz – explica São Cirilo de Alexandria (In Joannis Evangelium, lib. 2, III, 14-15; PG 73, 251) – “para condenar o pecado na carne, como está escrito (Rm 8, 3), e para ser aquele que consegue “conciliator”) a salvação eterna para todos os que o olhem com fé intensa ou aprofundando nas verdades divinas. O fato de que a serpente tenha sido colocada no alto de um madeiro significa que Cristo foi colocado em lugar patente e marcante , para que não ficasse oculto para ninguém que ele tinha sido levantado sobre a terra, como ele mesmo disse em outro lugar (Jo 12, 32), por causa da paixão que sofreu na Cruz”.
[20] Vd. Também Jo 10, 16: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco. Preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor”.
[21] É Cristo que passa, n. 137
[22] JOÃO PAULO II, Carta encíclica Dominum et vivificantem, 8/05/1986, n. 24.
[23] João Paulo II, em suas Catequeses sobre o símbolo da fé, glosou a doutrina da tractio da Cruz neste contexto pneumatológico: “Se é verdade que Jesus Cristo, mediante sua “elevação” na Cruz, deve “atrair tudo para si” (cfr João 12, 32), à luz das palavras do cenáculo – “se eu for vo-lo enviarei” – entendemos que esse “atrair” é realizado por Cristo glorioso mediante o envio do Espírito Santo. Precisamente por isto Cristo tem que ir. Cristo, saindo deste mundo, não só deixa sua mensagem salvífica, mas “dá” o Espírito Santo, ao qual está ligada a eficácia da mensagem e o da própria Redenção em toda sua plenitude” (JOÃO PAULO II, Alloc., 26/04/1989, n. 4).
[24] Vid. CONCÍLIO VATICANO II, Decr. Ad gentes, n.2
[25] O dia 6, em que a Igreja celebra a Transfiguração, era dedicado aos Santos Justo e Pastor, Padroeiros da diocese.
[26] Apuntes íntimos, n. 217.
[27] Instrucción, 1/04/1934, n. 1.
[28] Ibid. n. 2
[29] Ibid. n. 3
[30] Carta, 29/12/1947/14/02/1966, n.89.
[31] Meditação, 27/10/1963.
[32] Domingo da Ressurreição, 26/03/1967, reproduzida em É Cristo que passa, nn.102-116. O trecho que nos interessa está nos nn. 105-107.
[33] 22/11/1970; reproduzida em É Cristo que passa, nn. 179-187. A passagem que interessa para nosso fim é o n. 183. O subtítulo intitula-se precisamente “Cristo n cume das atividades humanas”.
[34] .”Jesus Cristo recorda a todos: Et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum, se vós me colocais no cume de todas as atividades da terra, cumprindo o dever de cada momento, sendo minha testemunha no que parece grande e no que parece pequeno, omnia traham ad meipsum, tudo atrairei a mim. Meu reino entre vós será uma realidade”.
[35] Vid. sobre o tema P.RODRÍGUEZ, Vocación, trabajo, contemplación, Madri 1936, pp. 77s, 131-133 e 200-202.
[36] Reproduzida em Conversaciones con Mons. Escrivá, nn. 58-72. O texto que nos interessa é o de n.59.
[37] 28/05/1964; reproduzida em É Cristo que passa, nn. 150-161. A passagem sobre nosso tema está no n. 156.
[38] Caminho, n. 301
[39] Amigos de Deus, n. 58
[40] Forja, n. 685
[41] Forja, n. 678. Talvez esta inclusão ao mesmo tempo “do alto” e “da entranha” seja a que explique a alusão – surpreendente ao fio do nosso discurso – ao ensinamento “paulino”. Vid. nota seguinte.
[42] É Cristo que passa, n. 105. Mons. Escriva de Balaguer, ao explicar a doutrina que estamos analisando, punha em estreita relação, como se vê, o “ omnia” de Jo 12, 32 com o de Ef 1, 10 e com o de Cl 1, 20, como se vê neste outro texto: “Todas as coisas da terra, as criaturas materiais também, as atividades terrenas e temporais dos homens também devem pois ser levadas a Deus – já agora, depois do pecado, redimidas, reconciliadas – cada uma segundo sua própria natureza, segundo o fim imediato que Deus lhes atribuiu, mas sabendo ver seu último destino sobrenatural em Jesus Cristo: porque o Pai quis colocar nele a plenitude de todo ser e reconciliar por Ele todas as coisas consigo, restabelecendo a paz entre o céu e a terra por meio do sangue que derramou na cruz (Cl 1, 19 e 20). Devemos colocar Cristo no cume de todas as atividades humanas” (Carta, 19/03/1954, n. 7).
[43] É Cristo que passa, n. 14.
[44] É Cristo que passa, n. 38
[45] É Cristo que passa, n. 105
[46] Uma interessante análise de Jo 12, 32 a partir do texto de Entrevistas com São Josemaria Escrivá, n. 59 pode ser visto em A. GARCÍA SUÁREZ, Existencia secular cristiana: ‘Scripta theologica’ 2 (1970) 155-157).
[47] JOÃO PAULO II, Litt. enc. Dominum et vivificantem, 8/05/1986, n. 24.
[48] Ibid. n. 3
[49] Vid. É Cristo que passa, n. 183s.
[50] Carta, 29/12/1947, 14/02/1966, n. 89
[51] Caminho, n. 301
[52] O texto continua: “Por vossa vida, por vosso Amor, por vosso espírito de serviço, por vosso afã de trabalho, por vossa compreensão, por vosso zelo pelas almas, por vossa alegria”. São palavras de uma conversa do dia 13/06/1974.
[53] Meditação, 28/04/1963.
[54] Vid. por exemplo esta outra passagem: “Sê alma de Eucaristia! – Se o centro dos teus pensamentos e esperanças está no Sacrário, filho, que abundantes os frutos de santidade e de apostolado!” (Forja, n. 835).
[55] É Cristo que passa, n. 156.
[56] Vid., CONCILIO VATICANO II, Const. dogm.Lumem gentium, n. 31 e a Ex. ap. Christifidelis laici, n. 15
[57] SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, In Ioannem humiliae, 67, 3: PG 59, 573
[58] SANTO AGOSTINHO, Tractatus in Joannis Evangelium, 53, 10-14: PL 35, 1773: “Ad creaturae integritatem, id est, spiritum, et animam, et corpus; et illud quo intelligimus, et illud quo vivimus, et illud quo visibiles et contrectabiles sumus”
[59] Jo, 12, 32 é texto paradigmático para muitos aspectos da existência cristã que Mons. Escrivá sublinhou e nos quais agora não podemos nos deter. Explicava, por exemplo: se tomamos a Cruz de Cristo, então a Cruz já não é cruz, o melhor é uma Cruz sem cruz (cfr. Santo rosário, IV mistério doloroso), porque está cheia de alegria e de glória. Também daqui surge sua doutrina sobre as falsas cruzes” que amarguram a alma e não unem a Cristo porque não são a Cruz de Cristo, que é gloriosa. Quanto ao resto, o próprio nome da obra – Prelazia da Santa Cruz e Opus Dei - e seu selo emblemático – a Cruz na entranha do mundo e abraçando o mundo – que é também o escudo episcopal de Mons. del Portillo, têm por trás a profunda experiência da Cruz que o Senhor concedeu ao Fundador do Opus Dei.