Amar apaixonadamente a Sagrada Escritura

O teólogo Scott Hahn comenta sobre São Josemaria e a Bíblia, afirmando que, em certo sentido, só podemos compreender bem as ações de São Josemaría, ou as graças que ele recebeu, quando chegamos a compreender seu uso das Escrituras.

O mundo conhece Josemaria Escrivá (1902-1975) como fundador do Opus Dei e da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz. Os fiéis da Igreja Católica conhecem-no sobretudo por sua santidade e seu poder de intercessão, e por isso, em 6 de outubro de 2002, o Papa João Paulo II o canonizou, declarando-o assim merecedor de pública veneração e imitação.

Em certo sentido, só poderemos compreender plenamente os méritos de São Josemaria, ou as graças que recebeu, se compreendermos o uso que fez das Escrituras. Desenvolveu, com o Opus Dei, uma espiritualidade estritamente bíblica, e ele mesmo percebia que a instituição por ele fundada estava firmemente assentada sobre o fundamento das Escrituras. Na exposição talvez mais poderosa do seu espírito, a homilia “Amar o mundo apaixonadamente”, São Josemaria proclama repetidamente a Bíblia como sua principal fonte de autoridade: “Esta doutrina da Sagrada Escritura (...) encontra-se – como sabem – no próprio núcleo do espírito do Opus Dei” (Entrevistas, n. 116): “Ensinei-o constantemente com palavras da Escritura Santa” (n. 114).

Eu diria, inclusive, que a Bíblia foi sempre para São Josemaria a linguagem referencial primária. Ele estava familiarizado com os ensinamentos dos Padres e Doutores da Igreja, dominava a teologia escolástica e se manteve a par das tendências da teologia contemporânea, mas voltava repetidamente às Escrituras em sua pregação e em seus escritos e para elas dirigia seus filhos espirituais do Opus Dei.

São Josemaria tinha plena consciência da unidade entre os dois testamentos, o Antigo e o Novo. Para ele, os oráculos do Antigo Testamento não perderam relevância pelo fato de encontrarem sua plenitude no Novo. Pelo contrário, resplandecem com uma luz nova e mais brilhante. Não duvidava, por isso, em tomar os ensinamentos dos profetas e patriarcas de Israel como modelos espirituais para os cristãos de hoje:

“Admirava-me a facilidade com que citava de cor e com exatidão frases da Sagrada Escritura (B.Álvaro del Portillo)

“Quando receberes o Senhor na Eucaristia, agradece-lhe com todas as veras de tua alma essa bondade de estar contigo. Não te detiveste a considerar que passaram séculos e séculos, até que viesse o Messias? Os patriarcas e os profetas pediam, com todo o povo de Israel: A terra tem sede, Senhor, vem! Oxalá seja assim a tua espera de amor” (Forja, n. 991).

Citava com frequência textos tanto do Antigo como do Novo Testamento, mas especialmente dos Evangelhos, aos quais a Tradição atribuiu um lugar proeminente (cfr. Dei Verbum, 18). As frases mais repetidas em sua pregação são, possivelmente, as que invocam o texto sagrado: “como diz o Evangelho...”, “a Sagrada Escritura diz...”, “os Evangelhos relatam...”, “lembra-te da cena do Evangelho...”.

Mons. Álvaro del Portillo, o filho mais fiel de São Josemaria, seu confessor e sucessor à frente do Opus Dei, afirma: “Admirava-me a facilidade com que citava de cor e com exatidão frases da Sagrada Escritura. Mesmo em suas conversas familiares referia textos sagrados para mover os presentes a uma oração mais profunda”[1].

As Escrituras como referência

A fundação do Opus Dei teve lugar em 2 de outubro de 1928, quando São Josemaria “viu” a Obra de Deus (ainda sem nome) como um caminho de santificação no trabalho profissional e no cumprimento dos deveres cotidianos do cristão.

Naquele momento, o Opus Dei parecia-se com o quê? Não conhecemos os detalhes exatos, mas podemos vislumbrar a Obra encarnada nos escritos posteriores do fundador. Neles fala das Escrituras como da referência segura de seu estilo de vida, que era “velho como o Evangelho e como o Evangelho novo” (Entrevistas, n. 24). Logo no início de sua obra fundamental, Caminho, escreveu: “Oxalá fossem tais o teu porte e a tua conversação que todos pudessem dizer ao ver-te ou ouvir-te falar: ‘Este lê a vida de Jesus Cristo’” (Caminho, n. 2). E, pelo contrário, ao falar daqueles que não viviam a caridade cristã, São Josemaria dizia que “parece que não leram o Evangelho” (Sulco, n. 26).

A sua leitura do Evangelho e das Escrituras em geral, era iluminada pelo seu particular carisma fundacional, que o levava a desenvolver algumas ideias que haviam passado despercebidas à teologia anterior. É notável sua ênfase renovada em certos conceitos das Escrituras: a chamada universal à santidade, por exemplo, e a santificação da vida cotidiana. Sentia-se atraído a contemplar muitas vezes os Evangelhos, e aludia repetidamente aos trinta anos de vida oculta de Jesus. Nesse relativo silêncio encontrava um modelo para a “vida oculta” das pessoas comuns que vivem no mundo.

Assim, o estudo das Escrituras foi essencial para a sua espiritualidade pessoal e para o programa que desenvolveu para os membros do Opus Dei. Afirmava que as Escrituras não só permitiam que os leitores conhecessem a vida de Jesus, mas ainda os impulsionava a imitá-lo. “Temos de reproduzir em nossa vida a vida de Cristo, conhecendo Cristo à força de ler a Sagrada Escritura e de a meditar, à força de fazer oração” (É Cristo que passa, n. 14).

O método

São Josemaria praticou e pregou um caminho particular de acesso às Escrituras na oração. Trata-se de um caminho intensivo, mais do que exaustivo. Mons. del Portillo sublinhava que o fundador do Opus Dei “deu provas constantes de um respeito extraordinário para com a Sagrada Escritura que, junto com Tradição da Igreja, foi a fonte de que se nutria ininterruptamente para a sua oração pessoal e para a sua pregação. Lia diariamente algumas páginas – um capítulo – da Escritura, em particular do Novo Testamento”[2].

Esta prática do estudo diário do Novo Testamento – por volta de cinco minutos – foi prescrita por São Josemaria a todos os que ele dirigia. Impulsionava-os a entrar com a imaginação na cena, assumindo o papel de alguma das personagens, quando lessem o Evangelho. “Esses minutos diários de leitura do Novo Testamento, que te aconselhei – entrando e participando no conteúdo de cada cena, como um protagonista mais – são para que encarnes, para que ‘cumpras’ o Evangelho na tua vida...e para ‘o fazer cumprir’” (Sulco, n. 672; vid. também Amigos de Deus, n. 222).

“Misturai-vos com frequência entre as personagens do Novo Testamento. Saboreai as cenas comoventes em que o Mestre atua com gestos divinos e humanos..” (S.Josemaria)

Em outra passagem de seus escritos desenvolveu ainda mais esta ideia, enfatizando outra vez o uso da imaginação com uma experiência quase sensorial:

“Misturai-vos com frequência entre as personagens do Novo Testamento. Saboreai as cenas comoventes em que o Mestre atua com gestos divinos e humanos ou relata com modos de dizer humanos e divinos a história sublime do perdão, do Amor ininterrupto que tem pelos seus filhos. Esses traslados do Céu renovam-se agora também, na perenidade atual do Evangelho: apalpa-se, nota-se, pode-se afirmar que se toca com as mãos a proteção divina” (Amigos de Deus, n. 216).

O poder de transformar-se

Embora na verdade a leitura do Evangelho lhe tomasse apenas cinco minutos por dia, não podemos reduzir a meditação que São Josemaria fazia com as Escrituras a esses breves momentos. Fazia também oração com as Escritura na Missa diária e na recitação do Ofício Divino. Utilizava com frequência comentários bíblicos de Padres da Igreja para a leitura espiritual. Insistia efetivamente em que a meditação pessoal das Escrituras devia alimentar a oração mental do cristão, além das orações espontâneas que preenchessem o seu dia. “Porque é preciso que a conheçamos bem, que a tenhamos toda inteira na cabeça e no coração, de modo que, em qualquer momento, sem necessidade de livro algum fechando os olhos, possamos contemplá-la como num filme, de forma que, nas mais diversas situações da nossa existência, acudam à memória as palavras e os atos do Senhor” (É Cristo que passa, n. 107).

Através da leitura das Escrituras chegará a graça da transformação, da conversão. Ler a Bíblia não constitui um ato passivo, mas comporta uma busca ativa e o encontro posterior. “Se agirmos assim, se não criarmos obstáculos, as palavras de Cristo penetrarão até o fundo da alma e transformar-nos-ão. Porque a palavra de Deus é viva e eficaz e mais penetrante de que a espada de dois gumes, e introduz-se até às dobras da alma e do espírito, até às articulações e medulas, e discerne os pensamentos e as intenções do coração (Hb 4,12)” (É Cristo que passa, n. 107).

Filiação divina e Palavra Revelada

No coração do Opus Dei há uma ideia muito simples. São Josemaria dizia: “A filiação divina é o fundamento do espírito do Opus Dei. Todos os homens são filhos de Deus” (É Cristo que Passa, n. 64). São Josemaria experimentou pessoalmente esta filiação de uma forma mística, em um dia de 1931, estando num bonde em Madri. Sentiu naquele momento “o alcance dessa assombrosa realidade” de ser filho de Deus e desceu do bonde balbuciando “Abba, Pater! Abba, Pater!” (cfr. Gal 4, 6)[3].

Muitos Padres da Igreja, especialmente São João Crisóstomo falaram da Revelação, em termos de “acomodação” e “condescendência”, que o Crisóstomo interpretava como ações paternais. Para revelar-se, Deus, se acomoda ao homem, como um pai humano que se detém a contemplar o seu filho. Do mesmo modo que um pai humano se põe às vezes a falar “como o filho”, Deus se comunica frequentemente com condescendência – isto é, fala como pessoa humana falaria, com a sua própria linguagem, como se tivesse as mesmas paixões e debilidades. Assim, lemos nas Escrituras que Deus “se arrepende” de suas decisões, quando com certeza Deus nunca precisou arrepender-se.

Seja como for, os pais humanos não só se colocam ao nível de seus filhos. Tentam também elevar o nível dos filhos para que se comportem como adultos. De forma similar, Deus também se comunica desta forma – isto é, eleva os filhos a um nível divino, dotando as simples palavras humanas de seu poder divino (como no caso dos profetas).

São Josemaria acreditava nas Escrituras como acreditaria nas palavras do seu pai. A sua confiança filial é um exemplo da fé constante dos cristãos de que são “sagrados e canônicos os livros completos tanto do Antigo como do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, escritos sob a inspiração do Espírito Santo, eles têm a Deus como autor (...). Portanto, já que tudo o que os autores inspirados ou hagiógrafos afirmam, deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus, em vista da nossa salvação, quis que fosse consignado nas Letras Sagradas” (Dei Verbum, 11).

Mons. del Portillo insistia em que São Josemaria mostrava a sua fé na origem divina das Escrituras não só em sua pregação e em seus escritos, mas também na conversa diária. “Como prova de sua veneração para com a Sagrada Escritura, introduzia frequentemente suas citações com as palavras: ‘O Espírito Santo diz...’ Não era um simples modo de dizer, mas um autêntico ato de fé, que ajudava a avaliar o valor eterno e toda a verdade que as palavras contêm e às quais podemos acabar por acostumar-nos”[4].

Sentido literal e espiritual

São Josemaria punha grande ênfase na imaginação para captar todos os detalhes, até os menores, da narrativa evangélica. Nenhuma palavra era supérflua para ele, nenhum detalhe, insignificante: o Espírito Santo não desperdiçava palavras.

Este cuidado, porém, com relação ao sentido literal e histórico, não o cegava na hora de captar o sentido espiritual das Escrituras. A Igreja interpretou tradicionalmente os textos bíblicos como literalmente verdadeiros e como sinais espirituais de Cristo, do céu ou das verdades morais (cfr. Catecismo da Igreja Católica, nn. 115-117). Com efeito, embora São Josemaria nunca tenha empregado expressamente os termos “exegese literal” ou “exegese espiritual”, foi um dos grandes exegetas de seu tempo. Concordo com o cardeal Parente quando observa que os comentários de São Josemaria sobre a Sagrada Escritura refletem “uma profundidade e um tom imediato muitas vezes superiores até às obras dos Santos Padres”[5].

São Josemaria punha grande ênfase na imaginação para captar todos os detalhes, até os menores, da narrativa evangélica

A respeito disso pode-se dar um grande número de exemplos. Consideremos este ensinamento em Caminho: “Como os filhos bons de Noé, cobre com o manto da caridade as misérias que vires em teu pai, o Sacerdote” (n. 75). Da cena da vergonhosa embriaguez de Noé (Gn 9, 20-23), São Josemaria tira um esmagador ensinamento moral para a vida contemporânea na Igreja. Trata-se de exegese espiritual, concisa e incisiva. Com uma só frase aprendemos de nossos antepassados do Antigo Testamento porque não devemos nunca espalhar o escândalo contra o sacerdote, que, do ponto de vista da fé, chamamos “Pai”.

Temos outra assombrosa exegese espiritual quando compara os pecados dos cristãos com a atitude de Esaú que troca seus direitos de primogênito por um prato de lentilhas (Gn 25, 29-34). Por um momento de prazer, muitos cristãos estão dispostos a tornar-se inimigos de Deus e renunciar assim à vida eterna (São Josemaria utiliza a imagem de Esaú em diversos escritos. Ver, por exemplo, Amigos de Deus, n. 13).

São Josemaria, em suma, não hesitou em atualizar o texto bíblico aplicando-o à vida contemporânea, colocando-se assim na linha dos grandes exegetas desde Santo Agostinho e São João Crisóstomo até Santo Antônio de Pádua e Jacques Bossuet. Os especialistas qualificam esta interpretação extensiva como a “acomodação do sentido espiritual”.

Nenhuma destas interpretações, no entanto, põe em dúvida a verdade histórico-cultural do texto bíblico, pelo qual São Josemaria tinha reverência. Em palavras de São Tomás de Aquino “todos os outros sentidos da Sagrada Escritura devem estar fundados no literal”[6].

Assim, para assentar firmemente as bases, São Josemaria realizou estudos detalhados sobre o que a ciência bíblica tinha a dizer acerca da cultura milenar do antigo Israel e do Império Romano nos tempos de Jesus. A sua pregação da Paixão de Cristo, por exemplo, mostra como estava familiarizado com as afirmações históricas do método de crucifixão dos romanos. As suas homilias sobre São José mostram um profundo interesse não só pela filologia, mas também pelas antigas tradições dos judeus na vida familiar e no trabalho.

São Josemaria recebia ocasionalmente iluminações divinas extraordinárias que lhe revelavam um sentido particular do texto bíblico. Por exemplo, na festa da Transfiguração de 1931, durante a celebração da Missa, como conta em seus Apontamentos íntimos: “enquanto elevava a Hóstia, houve outra voz sem ruído de palavras. Uma voz, como sempre, perfeita, clara: Et Ego si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad me ipsum! [‘E eu, quando for levantado sobre a terra, tudo atrairei a mim’ (Jo 12, 32)]. E o conceito preciso: não é no sentido em que o diz a Escritura; digo-o no sentido de que me coloqueis no cume de todas as atividades humanas: que haja em todos os lugares do mundo cristãos com uma dedicação pessoal e libérrima, que sejam outros Cristos”[7].

Esta repentina iluminação teve uma profunda influência no desenvolvimento subsequente do Opus Dei. Veio seguramente de Deus. Mas, hoje como sempre, a graça se acrescenta à natureza e a aperfeiçoa. O que São Josemaria descreve é claramente um exemplo de contemplação infusa, firmemente baseada, e isso sem dúvida alguma, em uma constante e disciplinada vida de meditação das Escrituras.

Poderiam mencionar-se vários episódios que ilustram perfeitamente um princípio resumido pela Comissão Bíblica Pontifícia, no documento, publicado em 1993, A interpretação da Bíblia na Igreja: “é principalmente pela liturgia que os cristãos entram em contato com as Escrituras (...). A liturgia, e especialmente a liturgia sacramental, onde a celebração eucarística constitui o grau máximo, realiza a atualização mais perfeita dos textos bíblicos (...). Cristo é então ‘presente em sua palavra, pois é ele mesmo quem fala quando as Santas Escrituras são lidas na igreja’ (Sacrosanctum Concilium, 7). O texto escrito volta assim a ser palavra viva”[8].

Texto e contexto

São Josemaria estudou muito seriamente as Escrituras. Sabia que a Bíblia constitui um texto que não se entende e nem se interpreta de um modo evidente ou automático. E, apesar de Deus lhe conceder às vezes luzes sobrenaturais, tinha consciência de que esses fenômenos eram algo extraordinário e não o modo usual de chegar a compreender o sentido de um texto.

Se não se podia confiar nas próprias luzes, nem depender exclusivamente de fenômenos místicos para onde mirava em seus estudos normais da Bíblia? Recorria à Igreja, à sua tradição viva, da qual os antigos Padres são “testemunhas perenes” (Catecismo da Igreja Católica, n. 688). Uma rápida vista de olhos de seus volumes de homilias revela sua íntima familiaridade com as obras de São Jerônimo, São Basílio, Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino.

São Josemaria comparou todas as suas reflexões acerca das Escrituras – inclusive as que recebeu por inspirações divinas – com o testemunho dos Padres e do Magistério papal e conciliar. Conhecia bem os perigos escondidos na continua dependência da interpretação pessoal das Escrituras, também porque encontrava uma clara advertência sobre isso... nas próprias páginas da Sagrada Escritura! No primeiro domingo da Quaresma de 1952 reflete sobre as formas sutis com que o demônio tenta Jesus no deserto:

“Vale a pena considerar o método que Satanás empregou com Jesus Cristo Senhor Nosso: argumenta com textos dos livros sagrados, desfigurando de forma blasfema o seu sentido. Jesus não se deixa enganar: o Verbo feito carne bem conhece a Palavra Divina, escrita para a salvação dos homens, e não para sua confusão e condenação. Quem estiver unido a Jesus Cristo pelo Amor – podemos concluir – não se deixará nunca enganar pelo manejo fraudulento da Escritura Santa, porque sabe que é obra típica do demônio procurar confundir a consciência cristã, esgrimindo dolosamente os próprios termos empregados pela eterna Sabedoria, tentando transformar a luz em trevas” (É Cristo que passa, n.63).

Da atual Babel de interpretações bíblicas conflitivas podemos deduzir que o método de Satanás não mudou muito ao longo dos séculos. Em meio a tanta confusão, São Josemaria apresenta-se como um modelo de fé inteligente, porém filial. Enquanto tantos exegetas cristãos passavam pelo século vinte com as pobres roupagens do agnosticismo e a irrelevância, São Josemaria se enriquecia com uma completa confiança na Bíblia; e na Igreja como sua intérprete infalível.

Podemos ver, tocar e estudar o seu legado na Bíblia de Navarra, projeto que ele impulsionou. Iniciado no começo dos anos 70 na Universidade de Navarra, na Espanha, a Bíblia de Navarra oferece uma fidedigna e bela tradução das Escrituras à qual se acrescentam numerosas citações de concílios eclesiais, Padres e Doutores. Este grande empreendimento permitiu aos que não são nem teólogos nem eclesiásticos desfrutar e enriquecer-se com a Bíblia de um modo semelhante ao de São Josemaria.

O lugar da Bíblia

Da mesma forma que os Padres e o Concílio Vaticano II, S. Josemaria via a Missa como o encontro por excelência com Jesus Cristo

Os encontros mais profundos de São Josemaria com a Sagrada Escritura não se deram em seu escritório nem na sua pregação oral, mas na liturgia. Da mesma forma que os Padres e o Concílio Vaticano II, ele via a Missa como o encontro por excelência com Jesus Cristo “no pão e na palavra” (ver, por exemplo, É Cristo que passa, nn. 116, 118, 122; Forja, n. 437). A Santa Missa, dentro da qual encontramos a Liturgia da Palavra, é, para São Josemaria, “o centro e a raiz” da vida interior.

As suas homilias – repletas de citações e alusões a ambos os Testamentos – têm sempre o foco no tempo litúrgico e especialmente nas leituras do dia. Ele via, efetivamente, a Missa como o habitat sobrenatural de suas homilias. “Acabam de escutar a leitura solene dos dois textos da Sagrada Escritura correspondentes à Missa do XXI domingo depois de Pentecostes. Tendo ouvido a Palavra de Deus, ficam já situados no âmbito em que querem mover-se as palavras que agora vou dizer: palavras de sacerdote, pronunciadas perante uma grande família de filhos de Deus em sua Igreja Santa. Palavras, portanto, que desejam ser sobrenaturais, pregoeiras da grandeza de Deus e de suas misericórdias para com os homens: palavras que a todos preparam para a impressionante Eucaristia, que hoje celebramos” (Entrevistas, n. 113).

Como os Padres da Igreja e os Padres do Concílio Vaticano II, São Josemaria via na Missa um momento de particular graça para receber a Palavra de Deus. As inspirações recebidas na Liturgia da Palavra deviam ser profundas e duradouras: “ouvimos agora a Palavra da Escritura, a Epístola e o Evangelho, luzes do Paráclito, que fala com voz humana para que a nossa inteligência saiba e contemple, para que a vontade se robusteça e a ação se cumpra” (É Cristo que passa, n. 89).

O intérprete virtuoso

Ao canonizar Josemaria Escrivá, a Igreja o apresentou como digno de ser imitado. Não pode haver dúvida de que imitá-lo inclui um detalhado estudo das Escrituras, uma leitura meditada das Escrituras e uma disciplinada oração com as Escrituras. O próprio horário dele de cada dia dá fé disto. As “normas de piedade” que vivia – e que estabeleceu para os seus filhos no Opus Dei – estão impregnadas de matizes bíblicos.

E não esquecem que “a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração para que se estabeleça o diálogo entre Deus e o homem”

Não obstante, o que era claramente crucial para São Josemaria é o encontro com Jesus Cristo, ser “ipse Christus”, o próprio Cristo. Esta meta deve ser alcançada através de certos meios, entre os quais a leitura meditada do Evangelho. Assim, não se pode viver ou entender a vocação ao Opus Dei sem pelo menos aspirar a um alto grau de conhecimento da Bíblia.

Apesar de a maior parte da sua vida ter-se passado antes do Concílio Vaticano II, São Josemaria antecipou muitos dos seus ensinamentos – como a ênfase ao proclamar a chamado universal à santidade e ao apostolado, que tinha sido o caráter distintivo do Opus Dei desde 1928. Creio, no entanto, que São Josemaria esteve em sintonia sobretudo com a doutrina sobre a Sagrada Escritura – sua verdade, autoridade, inspiração e infalibilidade – que teria uma mais robusta expressão na Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, Dei Verbum.

Da mesma forma que muitos homens tendem a ver em suas mulheres as melhores qualidades descritas no livro dos Provérbios, 31 (“a mulher virtuosa”), a mim, agrada-me ver em São Josemaria, meu pai espiritual, o cumprimento das palavras da Dei Verbum, 25. Nelas, os Padres Conciliares oferecem uma visão do sacerdote ideal. Como conclusão, queria ser suficientemente atrevido para adaptar estas palavras a São Josemaria e a muitos dos sacerdotes que o seguiram no Opus Dei e na Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz.

Submergem-se nas Escrituras “com leitura assídua e com estudo diligente”. Velam “para que não venham a ser ‘vão pregador da palavra de Deus externamente, quem não escuta interiormente’ (Santo Agostinho, Serm. 179, I)”.

Comunicam aos fiéis que lhes estão confiados “especialmente na Sagrada Liturgia, as vastíssimas riquezas da palavra divina”

Aprendem “a eminente ciência de Jesus Cristo (Fl 3, 8) pela leitura frequente das divinas Escrituras”.

Aproximam-se de boa mente “ao próprio texto sagrado, quer pela Sagrada Liturgia, repleta da palavra de Deus, quer pela piedosa leitura, quer por cursos apropriados, e outros meios”.

E não esquecem que “a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração para que se estabeleça o diálogo entre Deus e o homem; pois ‘a Ele falamos quando rezamos, e a Ele ouvimos quando lemos as palavras divinas’ (Santo Ambrósio, De officiis ministerium I, 20,88)”.

Scott Hahn, Ph.D.

Publicado em Romana, n. 35: Passionately Loving the Word: The Use of Sacred Scripture in the Writings of Saint Josemaria


[1] Á. DEL PORTILLO, Entrevista sobre o Fundador del Opus Dei, realizada por Cesare Cavalleri, Quadrante, São Paulo.

[2] Ibid.

[3] ANDRÉS VÁZQUEZ DE PRADA, O Fundador do Opus Dei, vol I: Senhor, que eu veja!, Quadrante, São Paulo 2004, p. 357.

[4] A. del PORTILLO.

[5] Ibid. Nota do tradutor: A expressão Padres da Igreja ou Santos Padres costuma aplicar-se aos escritores cristãos dos primeiros séculos que se distinguiam pela ortodoxia da doutrina, santidade de vida e aprovação, pelo menos tácita, da Igreja. Os maiores foram Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Jerônimo e São Gregório Magno, no Ocidente, e São Basílio, São Gregório Nazianceno, Santo Atanásio e São João Crisóstomo, no Oriente.

[6] SÃO TOMÁS DE AQUINO, S. Th. I,1,10 ad.1; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 116.

[7] Carta, 29/12/1947, citada em VÁZQUEZ DE PRADA. P. 348.

[8] Comissão Bíblica Pontifícia, A interpretação da Bíblia na Igreja, IV.c.1.