No princípio era o Verbo. Tudo foi realizado pelo Verbo e através do Verbo. Deus chama ao ser tudo o que existe.
A vida fecunda de Deus é uma vida de relacionamento interpessoal. As processões divinas – geração e expiração – têm o ser pessoal como finalidade: o Pai gera o Filho, o Pai e o Filho expiram o Espírito Santo. Quando Deus cria, age segundo a mesma lógica: quer diante de si seres pessoais, segundo a exemplaridade do Filho e por amor. Se Deus chama à existência todo o universo, é porque Ele deseja que seres pessoais participem de sua vida: seres livres que possam conhecê-lo e amá-lo.
Assim, em certo sentido, o mundo inteiro é efeito de uma vocação. Cada um de nós foi pessoalmente chamado à existência: com o nosso rosto, com a nossa voz, com a cor dos nossos olhos. Cada um com seu próprio eu diante do Você divino. Por isso Deus quis o mundo e o criou: porque pensava em cada um de nós.
Vocação: do temor à alegria
A palavra vocação é uma palavra familiar e paterna. Uma palavra não distante, mas próxima, uma palavra dirigida a todos. Palavra que revela, chama, convida. De fato, toda a história da salvação apresenta-se como uma história contínua de vocações, de apelos incessantes que Deus dirige no espaço e no tempo a homens e mulheres de diversos lugares e em diversos períodos históricos: aos governantes e às pessoas comuns, a cidades inteiras, a povos e descendentes.
A pregação de São Josemaria aproxima-nos da palavra vocação, mostrando-nos a sua grandeza e universalidade. O fundador do Opus Dei, alguns anos antes do Concílio Vaticano II, contribuiu para o debate sobre a vocação, palavra que era talvez entendida de forma restritiva. Desta forma, o que fazia era recuperar os ensinamentos de muitos santos, falando mais uma vez com clareza sobre a vocação como algo comum a todos os seres humanos.
Encontrar o termo vocação nos pontos do Caminho e nas homilias de São Josemaria poderia causar, em um primeiro momento, uma certa surpresa, talvez misturada com temor. No entanto, logo depois, causava alegria comprovar que o contexto em que falava de vocação era a vida cotidiana: o estudo e o trabalho, a amizade e a família, as paixões culturais e todas as profissões... Entendida desta forma, a vocação conferia luz e importância ao que, à primeira vista, não parecia ter. Graças a esta mensagem de São Josemaria, a palavra vocação tornou-se para muitos homens e mulheres uma palavra familiar, paterna e acessível.
“A vocação acende uma luz que nos faz reconhecer o sentido da nossa existência. É convencermo-nos, sob o resplendor da fé, do porquê da nossa realidade terrena. Nossa vida – a presente, a passada e a que há de vir – ganha um novo relevo, uma profundidade de que antes não suspeitávamos. Todos os fatos e acontecimentos passam a ocupar o seu verdadeiro lugar: entendemos para onde o Senhor nos quer conduzir, e nos sentimos como que avassalados por essa tarefa que Ele nos confia” (É Cristo que passa n. 45).
Ninguém está excluído
Muitas pessoas que ouviam a pregação de São Josemaria ficaram surpreendidas e apaixonadas pela sua insistência de que nem sempre é necessário mudar a própria posição no mundo, nem o trabalho, nem as circunstâncias cotidianas e familiares, para responder ao chamamento de Deus. Este apelo ressoa ali mesmo, nos contextos cotidianos de um homem ou de uma mulher contemporânea. Chega, talvez inesperadamente, talvez enquanto tenhamos nossas ferramentas de trabalho nas mãos.
A forma como São Josemaria falava da vocação baseava-se num contexto bíblico profundo e especificava o valor concreto-particular de um conceito teológico geral: Deus chama cada ser humano a conhecê-lo e a amá-lo. Todos recebemos a vocação de nos identificarmos com o seu Filho e de participar do seu mesmo Espírito. Existimos por e para isso; todos, ninguém excluído: saudáveis e doentes, ricos ou pobres, trabalhadores e intelectuais, dotados de muitos talentos ou poucos para determinadas atividades.
A vocação a conhecer e amar o nosso Criador, a ser semelhantes ao seu Filho feito homem, porque fomos criados em Cristo, tem um nome: é a vocação à santidade, isto é, a participar na vida de Deus, Aquele que é o único santo. Todo ser humano a recebe, quer já faça parte do povo de Deus, da Igreja, quer seja apenas ordenado a fazer parte dela, mesmo que ainda não saiba disso. Deus chama todos, sem excluir ninguém, a participar da sua vida. Cristo Jesus derramou o seu sangue, morreu na cruz e ressuscitou para que a nossa filiação divina, obscurecida e quase perdida pelo pecado, pudesse ser recuperada e restabelecida nele.
Se Deus chama, no entanto, é sempre para cumprir uma missão, para confiar uma tarefa. Vemos isso claramente ilustrado na história da salvação. Deus dirige a sua palavra a cada ser humano: vá, faça isto; trabalhe como eu vou ensiná-lo; saia desta terra; fale em meu nome; vá até o lugar que vou lhe mostrar... Quase parece dizer: “Eu criei você para isso!” Com efeito, poderíamos dizer que todas estas missões específicas são concretizações da missão original que o Criador confia à humanidade no Gênesis: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden, para cultivar o solo e o guardar” (Gên. 2, 15).
À vocação universal à santidade corresponde uma missão igualmente universal: a de configurar-se à imagem do Filho, para amar com amor fraterno e filial e rejeitar as obras do pecado. Configurar-se ao Filho é participar da sua missão, isto é, reordenar o mundo desordenado pelos pecados dos homens e devolvê-lo ao Pai no Espírito Santo. Dessa forma, tal missão implica uma história. Se a vocação desafia e exige uma resposta oportuna, o cumprimento de uma missão realiza-se antes, principalmente, de forma histórica: chegar a ser o que somos chamados a ser e transformar o mundo para que se torne o que Deus quis que fosse, desde sempre.
Uma missão específica na Igreja
O próprio Deus, ao criar o mundo, abre a história à possibilidade de acolher missões. É a missão do Verbo, enviado pelo Pai ao mundo, para assumir a natureza humana, completar a criação e redimir o homem do pecado, devolvendo-o à plena dignidade de filho no Filho. É missão do Espírito Santo, enviado ao mundo e à história pelo Pai e pelo Filho, configurar os que creem com o Filho e reuni-los no Corpo de Cristo. A Igreja de Jesus Cristo nasce destas duas missões e é como que o seu prolongamento na história (cf. Concílio Vaticano II,Lumen gentium, nn. 2-4). Toda a Igreja é convocada e enviada: é convocada pela pregação do Reino de Deus por Jesus e, depois da ressurreição, é enviada a todas as nações para ensinar o Evangelho a todas as pessoas e batizá-las em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
A Igreja existe e vive para esta missão e as diversas missões que o Espírito Santo suscita ao longo da história dirigem-se a esta mesma tarefa. Se tão diversas e belas são as flores da terra, tão diversas e belas são as missões que Deus confiou a tantos santos, a inúmeras comunidades cristãs, a leigos e a sacerdotes, a religiosos e religiosas: missões que contribuíram e continuam a contribuir para a única missio Ecclesiae.
“O jardim do Senhor possui não apenas as rosas dos mártires, mas também os lírios das virgens e as heras dos maridos e as violetas das viúvas. Numa palavra, amados, que os homens em nenhum estado de vida duvidem da sua vocação: Cristo morreu por todos. Com toda a verdade está escrito sobre ele: ‘Ele deseja que todos os homens sejam salvos e que todos cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2,4)” (Santo Agostinho, Discurso304, 3, 2).
Conhecendo a vida de São Josemaria, e ouvindo a sua pregação, compreendemos que ele também recebeu de Deus – na Igreja e com a Igreja – uma missão específica. Ao declarar a sua santidade e apontá-la como exemplo, o Magistério reconheceu a missão recebida por São Josemaria como parte da própria missão da Igreja.
Pouco depois de iniciar a sua obra sacerdotal, São Josemaria quis dar um nome à missão que recebera de Deus, para que os seus filhos espirituais pudessem continuá-la na história: Opus Dei, obra de Deus, operatio Dei. Sublinhando a iniciativa divina, passou a falar dela como de uma nova fundação, apontando o dia 2 de outubro de 1928 como “o dia em que o Senhor fundou a sua Obra” (Apontamentos íntimos, nº 306, 2 de outubro de 1931).
Por mais ampla e geral que seja na história dos homens uma missão inspirada pelo Espírito Santo – e a missão do Opus Dei certamente o é, a tal ponto que São Josemaria a descreveu como um mar sem margens – cada nova fundação terá sempre uma nota distintiva que justifica o seu para quê.
Procurar essa nota distintiva, a especificidade de uma missão ou de uma nova fundação, não significa separá-la de outras iniciativas inspiradas pelo Espírito Santo, mas sim conhecê-la melhor. Portanto, a especificidade do Opus Dei não pode ser definida, pelo contrário, separando-o daquilo que os outros fazem ou deixam de fazer, exaltando as diferenças ou dividindo os campos de ação. Deve ser destacada a especificidade de quem trabalha na vinha do Senhor, nunca perdendo de vista a missão única de toda a Igreja, numa atitude de unidade que procura a comunhão.
Em cada nova fundação existe uma delicada relação entre especificidade e tradição, entre o que é ou parece novo e o que, na mensagem cristã, deve necessariamente permanecer o mesmo. Há tarefas que a Igreja reconhece na sua vida e na sua tradição como essenciais para a missão que recebeu de Cristo. Por exemplo: exortar o povo de Deus à santidade e à configuração com Jesus Cristo, ensinar a todos a ter uma relação pessoal e filial com Deus, colocar a Eucaristia no centro da vida dos fiéis, promover a disponibilidade dos sacerdotes para perdoar os pecados, administrar os sacramentos para que sejam recebidos com frutos, lembrar a todos os batizados que são apóstolos em um mundo a ser reevangelizado, difundir os ensinamentos dos pastores, dos concílios e do Romano Pontífice em particular.
Como podemos compreender a fé que São Josemaria experimentou há um século, quando iniciou o Opus Dei, e como compreendeu a novidade que o Opus Dei significava?
Com esta finalidade, queremos reler e aprofundar, nestes anos que antecedem o Centenário da fundação do Opus Dei (1928-2028), alguns elementos de especificidade que caracterizam a sua missão, e examinar mais uma vez os carismas que Deus concedeu e concede continuamente aos seus membros para que esta missão seja cumprida.
“Ordenar o mundo a Deus através do trabalho”
Muitos textos de São Josemaria falam dos propósitos da nova fundação. São fins aparentemente gerais, porque contribuem, como deveriam, para o bem geral da Igreja, para a santificação das almas, para a transformação cristã do mundo. E, no entanto, são fins que apontam para uma missão específica, peculiar, que ilumina toda a existência de quem recebe este chamado divino. Uma missão que poderíamos expressar, por exemplo, com estas palavras: “Ordenar o mundo a Deus através do trabalho”; ou: “Transformar as realidades terrenas colocando a cruz de Jesus no seu cume para que, purificadas do pecado, todas as atividades humanas sejam santificadas por dentro e tomem a forma de Cristo”. Nesta missão, especifica São Josemaria, os membros da Obra “vão se santificar, santificarão os outros e santificarão o próprio mundo”. Os sacerdotes e os leigos contribuem para esta missão, mas com uma articulação precisa: os primeiros devem servir sobretudo os segundos, porque esta missão afeta direta e imediatamente os fiéis leigos (cf. Concílio Vaticano II, Lumen gentium, nn. 31, 36).
“E este é o segredo da santidade que venho pregando há tantos anos: Deus nos chamou a todos para que o imitássemos; e a vós e a mim para que, vivendo no meio do mundo - sendo pessoas da rua! -, soubéssemos colocar Cristo Nosso Senhor no cume de todas as atividades humanas honestas.
Agora se poderá compreender ainda melhor que, se algum de vós não amasse o trabalho - aquele que lhe toca! -, se não se sentisse autenticamente comprometido numa das nobres ocupações terrenas, para santificá-la, se não tivesse uma vocação profissional, jamais chegaria a calar no cerne sobrenatural da doutrina que este sacerdote lhe expõe, precisamente porque lhe faltaria uma condição indispensável: a de ser um trabalhador” (Amigos de Deus, n. 58).
A invocação que as Preces do Opus Dei reservam à oração de intercessão Ad sanctum Josephmariam, conditorem nostrum, deve resumir em poucas linhas a essência da sua mensagem, atribui um papel central à santificação do trabalho, especificando a sua dimensão apostólica e missionária: Intercede pro filiis tuis, ut fideles spiritui Operis Dei, laborem sanctificemus et animas Christo lucrifacere quaeramus.
Todos os outros aspectos da perspectiva cristã que São Josemaria viu iluminados na nova fundação que Deus lhe pediu parecem realmente girar em torno do eixo do trabalho em Cristo: a possibilidade de encontrar Deus e de procurar a santidade na vida cotidiana; a extensão universal da chamada à santidade; a imitação da vida oculta de Jesus e da sagrada família de Nazaré; a devoção muito especial à figura de São José – o artesão, o trabalhador – a ponto de estabelecer que os membros da Obra renovariam a sua dedicação ao Opus Dei no dia de sua festa; a filiação divina como participação na missão do Filho de reconciliar todas as coisas com o Pai através do Espírito; o apostolado de amizade e confiança que os membros desta instituição são chamados a exercer com os colegas de trabalho e nas suas relações sociais; a durabilidade do Opus Dei, enquanto houver homens que trabalhem na terra... Todos estes aspectos são reverberações de uma luz fundacional cujo ponto focal é uma nova compreensão da dimensão divina do trabalho humano.
A especificidade da sua missão, como acima delineado, é o carisma do Opus Dei? Qual é a relação entre vocação, missão e carisma? Na Sagrada Escritura e na história da Igreja, o termo carisma tem um significado muito amplo. No entanto, refere-se principalmente ao “dom concedido por Deus para uma missão”. Neste sentido, o dinamismo vocação-missão precede a noção de carisma. A Palavra de Deus chama para confiar uma missão. Então, Deus concede os carismas e dons necessários para realizá-lo. Às vezes, na linguagem comum, usamos a palavra carisma para nos referirmos também à gratuidade de uma missão ou de uma determinada espiritualidade, para indicar que é um dom do Espírito, uma iniciativa divina: é Deus quem suscita, chama, concede a sua graça, assiste, orienta, procurando paternalmente a correspondência da pessoa humana.
“Quando Deus Nosso Senhor projeto alguma obra em favor dos homens, pensa primeiro nas pessoas que usará como instrumentos... e lhes comunica as graças convenientes. Esta convicção sobrenatural da divindade do empreendimento acabará por vos dar um entusiasmo e um amor tão intensos pela Obra que vos sentireis muito felizes sacrificando-vos para que se realize” (Instrução, 19 de março de 1934, n. 48- 49).
Deus concede aos homens a graça e os carismas do Espírito para cumprir a missão a que todos fomos chamados: ser santos e identificar-nos com Cristo. Quem é chamado a uma missão particular, a uma finalidade pastoral específica na Igreja, recebe de Deus dons e carismas adequados para a levá-la adiante. Para reconhecer o carisma específico de uma nova fundação, e, portanto, também do Opus Dei, é necessário refletir sobre a sua missão, tal como foi delineada pelo seu fundador.
Não devemos esquecer, igualmente, que a missão do Opus Dei precede a sua instituição. Em princípio, esta missão é compatível com diferentes formas institucionais canônicas, presentes ou futuras, desde que permitam pôr em prática o que Deus pediu ao seu fundador: procurar a santidade e a plenitude da filiação divina no meio do mundo, através do exercício do trabalho ordinário, ordenando todas as atividades humanas a Deus, transformando-as para dar-lhes a forma Christi.
Finalmente, compreender e aprofundar a missão do Opus Dei é uma tarefa de certa forma inacabável, simplesmente porque se trata de um fato autenticamente teológico que tem Deus como autor. É uma missão aberta à história e animada pelo Espírito Santo criador e, portanto, capaz de informar tempos e situações diversas: é um carisma que, ao longo da história, será encarnado por multidões de pessoas em situações muito variadas. A dimensão pneumatológica de uma missão faz com que o modo de ser e de viver daqueles que a encarnam possa ser definido mais como um espírito do que como um texto. É por isso que o Opus Dei tem um espírito, o espírito da Obra.
Aprofundar o sentido desta missão e deste espírito, tal como São Josemaria viu na sua meditação pessoal e transmitiu na sua pregação, será o objeto do próximo artigo.
Esta série é coordenada pelo prof. Giuseppe Tanzella-Nitti, com alguns professores e professoras da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, Roma.