–Toda vocação é um dom gratuito.
– São Matias conhecia a vida de Jesus.
– Deus conta com todos em seu plano de salvação.
OS ATOS dos Apóstolos narram que, nos dias posteriores à ressurreição do Senhor, São Pedro encontrou-se com os discípulos para escolher o substituto de Judas (cfr. At 1, 15-26). Reuniram-se cerca de cento e vinte pessoas. Talvez fosse o núcleo dos que haviam permanecido com o Senhor depois do sermão do Pão da vida, incluindo aqueles setenta e dois que ele havia enviado a pregar tempos atrás. O que mais surpreende é o modo de chamar Matias para que fosse um dos doze. Depois de uma oração para rogar a Deus que se faça a sua vontade, tiraram a sorte entre dois candidatos... e nasce um novo apóstolo.
Seguir de perto o Senhor como o fizeram os apóstolos tem uma aparência de sorte. Podemos fazer a seguinte pergunta: por que fui o escolhido se há muito mais pessoas que podiam encarregar-se desta tarefa? No entanto, nossa atitude diante dos dons divinos é maravilhar-nos e sentir-nos afortunados. O Senhor atua de modo inusitado para nossos parâmetros. Matias está bem-disposto, conhece o Senhor há tempo, porém, quem sabe se até esse momento ele tinha considerado algo assim. Diante da necessidade de dispor de novos apóstolos, graças à oração e à sorte divina, descobre que Jesus Cristo tem uma missão concreta para ele. No fundo do seu coração Matias teria escutado de alguma forma a voz de Deus.
“Se me perguntardes como se nota o chamamento divino – dizia São Josemaria – dir-vos-ei que é uma visão nova da vida. É como se se acendesse uma luz dentro de nós; um impulso misterioso que impele o homem a dedicar as suas mais nobres energias a uma atividade que, com a prática, ganha corpo de ofício. Essa força vital, que tem qualquer coisa de avalanche irresistível, é aquilo a que outros chamam vocação. A vocação leva-nos – sem disso nos apercebermos – a tomar uma posição na vida que manteremos com entusiasmo e alegria, cheios de esperança até ao próprio momento da morte. É um fenômeno que comunica um sentido de missão ao trabalho, que enobrece e dá valor à nossa existência. Jesus mete-se na alma com um ato de autoridade, na tua, na minha: o chamamento é isso”[1].
“NÓS recebemos este dom como destino: a amizade do Senhor. Esta é a nossa vocação: viver sendo amigos do Senhor, como os apóstolos. Todos nós cristãos recebemos este dom: a abertura, o acesso ao coração de Jesus, à amizade de Jesus. Recebemos em sorte o dom da sua amizade. Nosso destino é ser seus amigos. É um dom que o Senhor conserva ininterruptamente”[2]. E para ser amigo de Jesus, precisamos conhecê-lo. No momento da escolha do novo apóstolo, o único requisito que ele devia preencher era o de conhecer de perto a vida de Cristo, “a começar do batismo de João até ao dia em que foi elevado ao céu” (At 1, 22).
“Não posso deixar de confidenciar algo – dizia São Josemaria – que constitui para mim um motivo de pena e ao mesmo tempo de estímulo para agir: é pensar nos homens que ainda não conhecem Cristo, que ainda não vislumbram a profundidade da bem-aventurança que nos espera nos céus, e que andam pela terra como cegos, em perseguição de uma alegria cujo verdadeiro nome ignoram, ou se perdem por caminhos que os afastam da autêntica felicidade”[3]. Toda felicidade aqui na terra é uma chispa divina que salta e aponta para Cristo. Só nele termina a nossa busca. Só em nossa amizade com Jesus, feita de palavras e de momentos compartilhados, encontramos a paz que não se afasta. Desejamos por isso conhecê-lo cada vez melhor, nos evangelhos, na Eucaristia, na oração pessoal e nas pessoas que nos rodeiam.
Pode servir-nos, a nós que não vivemos naqueles anos que Jesus passou na terra, o exemplo de São Paulo, que também não conheceu a Cristo pessoalmente. “São Paulo não pensava em Jesus na qualidade de historiador, como uma pessoa do passado. Conhece certamente a grande tradição sobre a vida, as palavras, a morte e a ressurreição de Jesus, mas não fala de tudo isso como algo passado; ele o propõe como realidade de Jesus vivo. Para São Paulo, as palavras e ações de Jesus não pertencem ao tempo histórico, ao passado. Jesus vive agora e fala conosco agora e vive para nós. É esta a verdadeira forma de conhecer Jesus”[4]. Em nosso empenho para conhecer com a maior profundidade possível a Cristo, podemos pedir a intercessão do apóstolo Matias. Ele poderá ajudar-nos no sentido de que as ações e palavras do Senhor que ele conheceu, desde que foi batizado por João até sua ressurreição, sejam uma realidade viva também para nós.
NA CENA da vocação de Matias há outro aspecto que também chama a atenção e que se prolongará ao longo da história. É o fato de que “a primeira vocação teve lugar quando a Igreja estava unida e rezava. Quando a Igreja permanece unida e reza, não precisa preocupar-se muito com a propaganda, já que pode estar certa da resposta do Senhor”[5]. Isto nos dá paz. A Igreja foi instituída pelo Senhor e é Ele quem a leva em frente; nada, ninguém terá poder sobre ela. Continuará chamando novos apóstolos, em qualquer circunstância, jovens e idosos, homens e mulheres. Permanecer unidos na oração e no carinho fraterno é, em suma, continuar atentos a Deus e confiar plenamente em sua misericórdia. Não faltarão pessoas dispostas a seguir a Cristo e a permanecer com Ele para ser testemunhas da paz e da alegria que surgem da Ressurreição.
A alegria por esse novo apóstolo foi enorme: em toda a assembleia e no coração do próprio Matias. No entanto. José, chamado Barnabé, o outro discípulo que participou do sorteio ficou fora dessa predileção, assim como o resto daqueles cento e vinte que se tinham reunido (cfr At. 1, 23-26). José era um fiel discípulo e o fato de não ter sido chamado para formar parte dos Doze não significa que valesse menos ou que não fosse bom cristão. Deus chama quem quer, cada um tem o seu caminho de felicidade traçado por Deus, e o que cabe ao homem é colocar-se em suas mãos. Tanto Matias como José são afortunados porque fundamentam a sua vida na segurança de que o Senhor está sempre a seu lado. E responder que sim às inspirações de Deus, aceitá-las com gratidão, é fonte de paz. O que importa é a santidade de cada um em suas circunstâncias e com seu modo de ser, onde estiver.
Matias, como tinham feito antes os outros apóstolos, imediatamente se pôs a trabalhar. “Por que imediatamente? Simplesmente porque se sentiram atraídos. Não aparecem decididos e prontos por ter recebido uma ordem, mas porque foram atraídos pelo amor. Para seguir a Jesus, não bastam os bons propósitos; é preciso ouvir dia a dia a sua chamada. Só Ele, que nos conhece e ama profundamente, leva a navegar no mar profundo da vida”[6]. O mar imenso deste mundo conta com os cristãos, para navegar em suas águas em companhia da Santíssima Virgem, Stella Maris, estrela do mar, levando a todos a alegria de Cristo.
[1] São Josemaria, Cartas 3, n. 9.
[2] Francisco, Homilia, 14 de maio de 2018.
[3] São Josemaria, É Cristo que passa, n 163.
[4] Bento XVI, Audiência geral, 8 de outubro de 2008.
[5] Bento XVI, Homilia em uma primeira Missa, 1973. Anotada em Enseñar y aprender el amor de Dios.
[6] Francisco, homilia do domingo da Palavra de Deus, 26 de janeiro de 2020.