A Vida sem Deus

Deus é um Pai amoroso que criou o homem para alcançar a felicidade. Mas o homem desobedeceu e colocou a si mesmo antes do Amor de Deus.

O Compêndio do Catecismo da Igreja Católica começa com esta pergunta: “Qual é o plano de Deus para o homem?” E responde: “Deus, infinitamente bem-aventurado e perfeito em si mesmo, num desígnio de pura bondade, criou livremente o homem para o tornar participante da sua vida bem-aventurada”[1]. Isto é, Deus criou o ser humano para ser feliz, e o caminho para consegui-lo é estar com Ele (cfr. Mc 3,13), para participar de sua vida feliz. Todos os ensinamentos de Jesus são dirigidos a esta felicidade: "Eu vos disse isso, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa" (Jo 15,11). Deus Pai, como todos os pais do mundo, quer que os seus filhos sejam felizes.

Este desígnio de Deus inscreve-se na parte mais íntima do nosso ser: o ser humano procura, deseja e persegue a felicidade em todo o seu agir

Este desígnio de Deus, anseio de um amor pleno, inscreve-se na parte mais íntima do nosso ser: o ser humano procura, deseja e persegue a felicidade em todo o seu agir e, especialmente, em todos os seus desejos e amores. Já passaram vinte e três séculos desde que Aristóteles percebeu isso e escreveu no primeiro capítulo de sua Ética a Nicômaco, que todos os seres humanos concordam que a felicidade é o bem supremo, em vista do qual escolhemos todos os outros bens (saúde, sucesso, honra, dinheiro, prazeres etc.)[2].

A realidade

Em teoria, qualquer pessoa sabe disso e poderia dizer: “O que eu quero é ser feliz”. Mas ainda assim algo falha, porque muitas vezes o homem não consegue alcançar a felicidade. Talvez tenhamos tido a experiência de olhar os rostos das pessoas ao nosso redor durante uma viagem de metrô ou ônibus e descobrir rostos marcados por tristeza, angústia e dor. “As pessoas morrem e não são felizes”, sentenciou um escritor ateu do século XX com certo pessimismo. E pode ser que nos perguntemos interiormente: “Senhor, o que acontece?”

O plano da Criação incluía a nossa felicidade, mas algo deu errado. Nem sempre conseguimos ser felizes e, muitas vezes, talvez por isso mesmo, não conseguimos tornar os outros felizes. Além disso, não raramente causamos sofrimento uns aos outros, agindo de maneira cruel e perversa. Muitas vezes, temos que dizer: “Senhor, tenha misericórdia do seu povo! Senhor, perdão por tamanha crueldade!” [3], como rezava o Papa Francisco durante sua visita a Auschwitz-Birkenau, na Jornada Mundial da Juventude de 2016. Mais tarde naquela noite, dirigindo-se à multidão da janela da sede da arquidiocese, acrescentou: “Eu estive em Auschwitz, em Birkeanu. Quanta dor, quanta crueldade! É possível que nós, seres humanos, criados à semelhança de Deus, sejamos capazes de fazer essas coisas?”.

O que acontece? Por que tantas pessoas não são felizes? Por que realidades que prometem tanta felicidade – amizade, laços familiares, relações sociais, as coisas criadas – às vezes são fonte de tanta insatisfação, amargura e tristeza? Como é possível que nós, os seres humanos, sejamos capazes de produzir tanto mal? As respostas a essas perguntas dolorosas e pungentes concentram-se em uma palavra: o pecado.

Inimigo da felicidade

Etimologicamente, a palavra “pecado” vem do latim peccatum, que significa: “crime, falta ou ação culpável”. Em grego, o idioma do Novo Testamento, “pecado” é chamado hamartia, que significa: “falha do objetivo, errar o alvo”, e se aplicava especialmente ao guerreiro que falhasse no alvo com a sua lança. Finalmente, em hebraico, a palavra comum para “pecado” é jattá'th, que também significa errar no sentido de não atingir um objetivo, caminho, meta ou alvo exato.

O plano da Criação incluía a nossa felicidade, mas 'algo' deu errado

Assim sendo, um primeiro significado do pecado é errar o alvo. Lançamos uma flecha direcionada para a felicidade, mas perdemos o tiro. Neste sentido o pecado é um erro, um trágico engano e, simultaneamente, uma farsa: procuramos a felicidade onde ela não está (como na fama ou no poder), tropeçamos em nosso caminho até ela (por exemplo, acumulando bens supérfluos que cegam o nosso coração às necessidades dos outros) ou, pior, confundimos nosso desejo de felicidade com outro amor (como no caso de um amor infiel). Mas sempre, por trás do pecado, está a busca de um bem – real ou aparente – que pensamos que nos fará felizes. Não entenderemos o pecado enquanto não soubermos detectar o anseio frustrado de felicidade que o gera. Como Jesus disse: “Pois é de dentro, do coração humano, que saem as más intenções: imoralidade sexual, roubos, homicídios, adultérios, ambições desmedidas, perversidades; fraude, devassidão, inveja, calúnia, orgulho e insensatez” (Mc 7,21-22). Às vezes, um desejo insistente por algo que é pecado procede de uma carência no desejo fundamental de amor. Sentimos angústia e tristeza, e pensamos – erroneamente – resolvê-la dessa forma. Por exemplo, quem se sente pouco amado e carece de fortes laços afetivos, seja com Deus, com a própria família ou amigos, prontamente reagirá com desconfiança e agressividade, inclusive com injustiça, às pretensões alheias, para proteger-se e sentir-se seguro; ou procurará um substituto para esse amor nos relacionamentos descartáveis, no prazer ou nas coisas materiais.

Somente o amor de Deus sacia[4]. Bento XVI o expressa desta forma: “A felicidade é algo que todos querem, mas uma das maiores tragédias deste mundo é que muitas pessoas nunca a encontram, porque a procuram nos lugares errados. A chave para isso é muito simples: a verdadeira felicidade se encontra apenas em Deus. Precisamos ter a coragem de depositar nossas mais profundas esperanças somente em Deus, não no dinheiro, na carreira, no sucesso ou em nossos relacionamentos pessoais, mas em Deus. Só ele pode satisfazer as necessidades mais profundas do nosso coração”[5]. Por outro lado, quando nos esquecemos d’Ele, é fácil ver a frustração, a tristeza e o desespero, consequências de um coração insatisfeito. Por esta razão, o conselho de São Josemaria é cheio de significado: “Não te esqueças, filho, que para ti na terra há apenas um mal, que deves temer e evitar com a graça divina: o pecado”[6].

Ofensa a Deus, Pai amoroso

O Compêndio do Catecismo define o pecado como “uma ofensa a Deus, na desobediência a seu amor”[7]. Muitas pessoas, no entanto, se perguntam: “É realmente importante para Deus ou O afeta aquilo que eu faço ou inclusive o que eu penso? Como posso ferir a Deus? Deus pode sofrer, padecer? Como posso ofender a Deus, que é absolutamente transcendente?”

“É realmente importante para Deus ou O afeta aquilo que eu faço ou inclusive o que eu penso? Como posso ofender a Deus?”

Se por ofensa entendemos causar um dano, evidentemente nada do que fazemos pode ofender a Deus. Nada que eu possa fazer lesa a Deus. Mas Deus é Amor, é um Pai cheio de amor por seus filhos e pode se compadecer de nós. Além disso, Deus se tornou um de nós, para tomar sobre si os nossos pecados e nos redimir. Bento XVI explicava isso em sua segunda encíclica: “Bernardo de Claraval cunhou a maravilhosa expressão: Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis. Deus não pode padecer, mas pode compadecer. O homem tem um valor tão grande para Deus que se tornou homem para poder com-padecer Ele próprio com o homem, de uma maneira muito real, em carne e osso, como nos conta a história da Paixão de Jesus. Por esta razão, em cada dor humana entrou aquele que compartilha o sofrer e o padecer. Daí que, em cada sofrimento, se difunde a con-solatio, o consolo do amor participado de Deus”[8]. São Paulo usará uma frase forte para se referir ao mistério de Cristo: “Aquele que não conheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós” (2 Cor 5,21).

De certo modo, Deus sofre porque o nosso pecado nos fere. Deus não é um ser caprichoso que transforma em pecado as ações que são por si só indiferentes, e as proíbe para que Lhe demonstremos nossa obediência evitando-as. Ele é um Pai amoroso que nos diz o que pode nos prejudicar e impedir a felicidade a que somos chamados. Seus mandamentos poderiam ser comparados a um manual de instruções do homem – deve-se considerar que o conteúdo deste manual foi inscrito de alguma forma na natureza criada do homem, e se dirige espontaneamente à sua consciência, sem a necessidade de abrir as páginas do manual – para alcançar a própria felicidade e não impedir a alheia.

O pecado lesa o amor que Deus tem por nós, esse amor que quer nos fazer felizes. De alguma forma, quando pecamos, é como se Deus se lamentasse em lágrimas: “Mas o que você está fazendo, meu filho? Você não percebe que isso machuca você e meus outros filhos? Não o faça! Não se engane! Veja que no pecado você não encontra o que anseia, a felicidade, mas pelo contrário! Acredite em mim!”. É neste sentido que se diz que o pecado é “ uma ofensa a Deus, na desobediência a seu amor”[9]. Com nossas obras pecaminosas, nós ofendemos o seu amor, duvidamos dele.

É bom acrescentar que Deus nunca fica bravo conosco. Ele nunca revida, mesmo quando pecamos. Nesses momentos, é como se Ele estivesse sofrendo conosco e por nós em Cristo. Clemente de Alexandria dizia que “no seu grande amor pela humanidade, Deus vai atrás do homem como a mãe voa sobre o passarinho pequeno quando este cai do ninho; e se a serpente ameaça devorá-lo, esvoaça gemendo sobre os seus filhotes (cfr. Deut 32, 11). Assim Deus busca paternalmente a criatura, cura-a da sua queda, persegue a besta selvagem e recolhe o filho, animando-o a voltar, a voar para o ninho”[10]. Deus é assim!

O pecado nos afasta de Deus. Mas isso não é verdade do ponto de vista de Deus, mas do nosso. Deus não deixa de nos amar.

Deus é como o pai da parábola do filho pródigo, vigiando o horizonte para o caso de que seu filho pecador retorne (cfr. Lc 15,11-19). O pecado nos afasta de Deus. Mas isso não é verdade do ponto de vista de Deus, mas do nosso. Há abundantes passagens do Evangelho em que Jesus Cristo procura lidar com os pecadores e os defende contra os ataques dos escribas e fariseus. Deus não se afasta de nós, não deixa de nos amar. A distância é criada em nosso coração, da pele para dentro. Mas Deus ainda está ligado a nós. Somos nós que nos fechamos ao seu amor. E um passo de nossa parte é o suficiente para que a sua misericórdia entre em nossas almas. “Levantou-se e veio ao encontro do seu pai. Quando ele ainda estava longe, seu pai o viu e comoveu-se em seu interior e, correndo, lançou-se ao pescoço e cobriu-o de beijos”(Lc 15,20). O pecado é o inimigo número um da felicidade, mas tem pouco poder diante da misericórdia de Deus: “Somos todos pecadores. Mas Ele nos ama, nos ama”[11]. Essa é a nossa esperança.

Atentado à solidariedade humana

Depois de discutir a ofensa contra Deus, o Compêndio acrescenta que o pecado, todo pecado, “fere a natureza do homem e atenta contra a solidariedade humana”[12]. Na verdade, os dois elementos estão unidos, porque o homem é social por natureza. Mas reparemos na segunda parte: atenta contra a solidariedade humana. Diante dessa afirmação, algumas pessoas questionam: “Por que o pecado pessoal é mau, se não interessa a outras pessoas, se eu não faço mal a ninguém?” Na verdade, já vimos que, com o pecado, eu sempre magoo alguém: eu mesmo. E, precisamente por causa disso, ofendo a Deus. Mas agora se trata de ver que todo pecado, mesmo o mais oculto, fere a unidade dos seres humanos.

O Gênesis descreve como o primeiro pecado rompe o fio da amizade que unia a família humana. Depois da queda, o homem e a mulher são mostrados como se estivessem apontando um para o outro com o dedo acusador: “A mulher que me deste por companheira, foi ela que me fez provar do fruto da árvore, e eu comi” (Gn 3,12), diz Adão. A relação entre eles, antes marcada pelo encanto amoroso, vem sob o signo do desejo e da dominação: “Teus desejos te arrastarão para teu marido, e ele te dominará” (Gn 3,16), diz Deus a Eva[13].

O pecado semeia divisão nos corações dos seres humanos e se interpõe na sua caminhada conjunta para a felicidade

São João Paulo II o explicava da seguinte maneira: “Visto que com o pecado o ser humano se recusa a submeter-se a Deus, seu equilíbrio interno também é quebrado e as contradições e conflitos são desencadeados dentro dele. Dilacerado dessa maneira, o ser humano quase inevitavelmente provoca uma ruptura em suas relações com outros seres humanos e com o mundo criado”[14]. De fato, aqueles que se deixam levar por pecados internos de ressentimento ou crítica já estão tratando os outros injustamente, e é impossível que eles não se manifestem externamente na omissão do amor devido ao próximo, ou mesmo em faltas externas de caridade com ele. Quem comete pecados de impureza, mesmo que sejam interiores, corrompe sua capacidade de olhar e, portanto, de amar, e já está tratando os outros, pelo menos alguns, como objetos, e não como pessoas. Quem só pensa egoisticamente em seu benefício, dificilmente pode parar de cometer injustiças e maltratar o ambiente que compartilha com os outros. Em resumo, o pecado introduz uma divisão interna na pessoa, uma perda de liberdade tal que “não é incomum que a pessoa faça o que não quer e deixe de fazer o que gostaria. Por essa razão, sente em si mesma a divisão que provoca na sociedade tantas e tão sérias discórdias”[15].

O pecado semeia divisão nos corações dos seres humanos e se interpõe na sua caminhada conjunta para a felicidade. Dada a sua dureza, poderia se insinuar a tentação do pessimismo e da tristeza, especialmente se deixarmos de olhar para Cristo. Contemplar a passagem de Jesus carregando a cruz, com dor mas sereno, frágil mas majestoso, enche-nos de esperança e otimismo, porque por mais grandiosas que sejam as nossas misérias e pecados, aí está Ele, que com “a sua queda nos levanta [com] a sua morte nos ressuscita. À nossa reincidência no mal, responde Jesus com a sua insistência em redimir-nos, com abundância de perdão. E, para que ninguém desespere, torna a erguer-se, fatigosamente abraçado à Cruz”[16].

por: José Brage

tradução: Mônica Diez


[1]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n.1.

[2]Cfr. Aristóteles, Ética a Nicómaco.

[3]Francisco, Visita a Auschwitz, 29-VIII-2016.

[4]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n. 361

[5]Bento XVI, Discurso aos alunos do Colégio Universitário Santa Maria de Twickenham, Londres, 17-X-2010

[6]São Josemaria, Caminho, n. 386.

[7]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n.392

[8]Bento XVI, Enc. Spe Salvi (30-XI-2007), n. 39.

[9]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n.392.

[10]Clemente de Alexandria, Protréptico, 10.

[11]Francisco, Palavras da janela da Cúria de Cracóvia durante a Jornada Mundial da Juventude, 29-VIII-2016.

[12]Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n.392.

[13]Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n.400.

[14]São João Paulo II, Exortação apostólica Reconciliatio et Paenitentia (2.XII.1984), n.15.

[15]Concilio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et spes (7.XII.1965), n.9.

[16]São Josemaria, Via Sacra, 7ª Estação.