Um contemplativo itinerante

O Cardeal Ángel Suquía, arcebispo emérito de Madri, ouviu a pregação do Padre Josemaria durante um retiro nos anos 30. No centenário do fundador do Opus Dei, o purpurado deu a conhecer algumas recordações.

Tive a honra de o conhecer pessoalmente. A primeira vez foi em 1937-38, em plena Guerra Civil espanhola, no velho casarão dominicano do Seminário de Bergara, por ocasião de em retiro que ali dirigiu aos seminaristas filósofos e teólogos da diocese, por encargo do que era então o nosso diretor espiritual, o P.e Refino Aldabalde-Trecu.

Estava no meu segundo ano de Teologia. Acho que todos os que assistimos àquele retiro recordamos a força da sua pregação, a sua profunda espiritualidade, a sua viveza para nos aproximar das cenas evangélicas e para nos tornar próxima e familiar a figura do Mestre. E isto apesar, poderíamos dizer, de que nessa altura Josemaria Escrivá era um sacerdote jovem de 36 anos. Como não recordar a sua insistência na meditação dos “três binários” – do “torniquete”, como ele lhe chamava – que nos fazia sorrir!

Em 1939 pregou outros retiros ao clero de Vergara e, em Junho de 1940, o mesmo P.e Refino instava-o por carta a que pregasse de novo um retiro, ainda que parece não ter podido aceder a este pedido. Na correspondência do P.e Refino pode ler-se: “Já vejo que estás muito ocupado. Gosto dos homens de Deus assim. Sem tempo para respirar sequer. Não te parece? Dizes-me que já tens ocupado “quase” todo o Verão. E desta vez não me escapas. Esse “quase” vou-to encher eu. No Verão que vem temos no nosso Seminário diocesano seis retiros para sacerdotes. Cada turno com uns duzentos sacerdotes. Escolhe o turno que quiseres, mas escolhe algum. De acordo? Já sabes que o tempo me urge, e que queria ter nas mãos a tua resposta afirmativa quanto antes”.

À medida que o Opus Dei crescia, foi-se-lhe tornando cada vez mais difícil atender os pedidos das dioceses. No entanto, a sua predileção pelos sacerdotes nunca diminuiu. Aqueles retiros em Bergara não eram factos isolados na vida de Josemaria Escrivá, mas manifestação de uma faceta de espírito profundamente gravada na sua alma – o seu amor pelos sacerdotes e pelo mistério que esconde o ministério sacerdotal.

Ao iniciar-se o 3º Milênio, João Paulo II propôs a toda a Igreja objetivos claros e ambiciosos. “Fazer finca-pé na santidade é, mais do que nunca, uma urgência pastoral. Este ideal de perfeição não deve ser mal-entendido como se implicasse uma espécie de vida extraordinária, praticável apenas por alguns “gênios” da santidade. Os caminhos da santidade são múltiplos e adequados à vocação de cada um.”

Neste contexto, é oportuna e carregada de significado e consequências a próxima canonização de Josemaria Escrivá. “Com sobrenatural intuição – recordava João Paulo II – o beato Josemaria pregou incansavelmente o chamamento universal à santidade e ao apostolado. Cristo convoca todos a santificarem-se na realidade da vida quotidiana; por isso, o trabalho é também meio de santificação pessoal e de apostolado quando se vive em união com Jesus Cristo”.

Ao longo do meu serviço episcopal à Igreja, conheci e convivi pessoalmente, por diversos motivos, com um bom grupo de leigos do Opus Dei, que me ajudaram com o seu conselho e dedicação generosa em trabalhos difíceis em prol da Igreja diocesana, edificando-me com o seu exemplar testemunho cristão.

Na sua vida de fiéis leigos, conciliavam uma elevada competência profissional com uma intensa vida espiritual em plenitude de amor e serviço à Igreja e à sociedade. Alguns deles estão já no Céu. Outros vivem entre nós. Todos eles receberam e seguiram o mesmo espírito de São Josemaria.

Sob essa profunda perspectiva de santidade real no meio do mundo, João Paulo II propõe a necessidade de revitalizar neste III Milênio a vida de oração. “As nossas comunidades cristãs têm de chegar a ser autênticas escolas de oração. Uma oração intensa que, no entanto, não afasta do compromisso na história. Abre o coração à plenitude do amor a Deus e ao próximo. E faz-nos capazes de construir a história segundo o desígnio de Deus”.

A sintonia entre esta proposta e a vida e ensinamentos de Josemaria Escrivá salta à vista. “Os traços mais característicos da sua personalidade devem ser procurados não tanto nas suas egrégias qualidades para a acção, mas sim na sua vida de oração e na assídua experiência unitiva que fez dele verdadeiramente um contemplativo itinerante”.

Contemplativo itinerante. Expressão feliz que reflete, por um lado, a harmonia e unidade que alcançaram na sua vida o humano e o divino e, por outro lado, o facto de que buscar essa harmonia não significa rebaixar a profundidade e intensidade da comunhão de amor com Deus, própria da verdadeira oração e contemplação, isto é, da santidade.

Sempre no contexto deste ambicioso programa pastoral para o novo milênio, João Paulo II insiste na necessidade de uma nova evangelização da sociedade que ele promove com o seu exemplo e a sua palavra constantes. E sublinha, de forma paralela e coerente, que esta tarefa “não poderá ser delegada a uns poucos ‘especialistas’, mas que acabará por implicar a responsabilidade de todos os membros do Povo de Deus”.

E, como modelo a seguir na dita tarefa, o Santo Padre apresenta-nos o exemplo evangelizador dos apóstolos e da primeira geração de cristãos. Escrivá gostava de referir-se frequentemente, na sua pregação, à experiência dos apóstolos e daquelas primeiras gerações de cristãos, como modelo direto da tarefa apostólica que aguarda cada cristão corrente dos nossos dias. Porque Cristo está sempre perto. Ele é o Hoje, que deseja tornar-se presente em cada um. Por isso Josemaria Escrivá pôde escrever: “Não é possível separar em Cristo o Seu ser de Deus-Homem e a Sua função de Redentor. Com as nossas misérias e limitações pessoais, somos outros Cristos, o próprio Cristo, chamados também a servir todos os homens”.

Em seu tempo, a Igreja em Madrid não duvidou em dedicar à sua veneração uma das capelas da Catedral de Nossa Senhora de Almudena. Com o passar do tempo, pela atualidade da mensagem que Deus o encarregou de difundir, a sua figura torna-se maior. Santidade, oração, apostolado e comunhão com Deus e com os outros... É do que necessitam a Igreja e o mundo do III Milênio, e o que esperam de cada cristão.

O caminho aberto pelo exemplo e pelo ensinamento deste grande santo do nosso tempo permite que qualquer cristão possa realizar hoje esse alto ideal, sem o rebaixar, nas condições quotidianas da sua vida. Quero sublinhar, aqui, que a sua capela na Almudena é hoje uma das mais frequentadas por pessoas de todas as procedências e condições. São vistas recolhidas em oração, de joelhos e, frequentemente, durante muito tempo.

La Razón, Madri, 29 de Março de 2002