Sonhos e realidades de cooperação

“Eu só quero ajudar, pelos caminhos do espírito, rumo à liberdade e à dignidade do homem: esse é o meu sonho".

"EU SÓ QUERO AJUDAR, PELOS CAMINHOS DO ESPÍRITO, RUMO À LIBERDADE E À DIGNIDADE DO HOMEM: ESSE É O MEU SONHO".

Estas palavras de São Josemaria Escrivá foram recordadas pelo mestre de jornalistas que foi Manuel Aznar, no artigo intitulado ‘Responso pessoal de alegria e de esperança’ publicado no jornal de Barcelona La Vanguardia, a 6 de Julho de 1975. Nessa altura, estava eu a começar a familiarizar-me com a mensagem de Escrivá, e senti-me fortemente atraído a compartilhar este tipo de ideais.

“Com o passar dos anos, se rezarem e trabalharem com fé e com perseverança, poderemos preparar reuniões e cursos internacionais com jovens de muitos países. Deste modo ajudaremos eficazmente a criar um clima de entendimento mútuo, de convivência, com uma visão ampla e universal, que afogue em caridade todos os ódios e rancores: sem luta de classes, sem nacionalismos, sem discriminações. Sonhem e ficarão aquém”.

Em Abril de 1992, durante a sessão comemorativa do 25º Congresso UNIV, vários milhares de universitários de todo o mundo viram como o professor Umberto Farri se emocionava ao citar estas palavras de São Josemaria, escritas em 1942[1]. Eu estava presente nessa sessão e pude confirmar que a emoção não era para menos: o sonho apresentava-se aos olhos de todos transformado em realidade.

Reúno estas duas recordações, porque me parece que têm muito a ver com os frutos da vida e da mensagem de Escrivá: concretamente, com as consequências da promoção da dignidade humana e com os resultados da cooperação, que brotaram do seu estímulo e iniciativa.

Penso em particular, na fundamentação que essas duas ideias introduziram no âmbito da cooperação internacional para o desenvolvimento, a que me dediquei durante anos e em instituições e países diferentes: organismos multilaterais como a Comissão Europeia ou o Banco Asiático de Desenvolvimento, organizações não governamentais como o ICU (Roma), escolas de negócios como o Centro para a Empresa Latino- americana, do IESE (Madri) ou a Euro-Arab Management School onde atualmente trabalho.

1. A Dignidade dos Filhos De Deus

Promover o desenvolvimento dos povos, especialmente dos mais necessitados, não é missão exclusiva de homens ou de mulheres extraordinários, ou de profissionais especificamente dedicados à política e à economia. “Devemos pensar nos outros - em primeiro lugar, nos que estão ao nosso lado - como verdadeiros filhos de Deus que são, com toda a dignidade desse título maravilhoso.” Prossegue Escrivá, numa homília de 1956: “Com os filhos de Deus temos que nos comportar como filhos de Deus”. E conclui: “Não falo de um ideal utópico”[2]. Portanto, todos os membros da família humana têm o direito e o dever de fazer da vida uma tarefa de serviço aos outros, porque ter captado na sua profundidade humana e sobrenatural a dignidade dos filhos de Deus implica ter compreendido também que servir é a atividade mais nobre e mais adequada à natureza do homem.

“Na terra, há apenas uma raça: a raça dos filhos de Deus”[3]. “A caridade cristã não se limita a socorrer os necessitados de bens econômicos; seu primeiro propósito é respeitar e compreender cada indivíduo como tal, em sua intrínseca dignidade de homem e de filho do Criador”[4]. São expressões de São Josemaria, que têm muito a ver com a grandeza da vida corrente. Quer dizer, a vida corrente é grandiosa, porque o seu horizonte – o da existência de cada pessoa consciente da sua dignidade – não se limita apenas ao mais imediato nem ao mais próximo, mas atinge dimensões universais e, para um cristão, transcendentes.

Escrivá não elaborou uma teologia da história, nem do desenvolvimento; mas pregou e exercitou uma visão do progresso e da responsabilidade de cada homem e mulher na construção da sociedade, que “baseiam-se no respeito à transcendência da verdade revelada e no amor à liberdade da criatura humana. Poderia acrescentar que se baseiam também na certeza da indeterminação da História, aberta a múltiplas possibilidades, que Deus não quis limitar”[5].

Devido igualmente a esta disposição de abertura perante a liberdade humana e a incerteza do devir histórico, São Josemaria não gostava – contam-no os seus biógrafos – das teorias gerais nem das formulações vagas. Para ele, respeito e promoção da dignidade humana têm um significado preciso e facilmente compreensível: por isso é-se cristão quando se é capaz de amar não só a Humanidade em abstrato, mas cada pessoa que passa perto de nós[6].

Não é resultante desses princípios – respeito sagrado pela dignidade humana, amor à liberdade, empenho em promover a concórdia e a ajuda mútua humana – que surge alguma teoria do desenvolvimento. Ao longo da sua vida, Escrivá repetiu inúmeras vezes que a sua missão sacerdotal não podia invadir ilicitamente a esfera das questões temporais, que os leigos são chamados a resolver com autonomia e sentido de responsabilidade. Mas destas “ideias mestras” que com tanta força viveu e pregou, derivam, sim, algumas consequências, que orientam e animam os esforços de muitas pessoas que contribuem com o seu trabalho profissional e social para o desenvolvimento das nações mais pobres.

Em primeiro lugar, a consciência profunda da dignidade do homem encerra um conceito integral do desenvolvimento, que contempla não só necessidades de bem-estar material, mas também a dimensão espiritual das pessoas. “Salvarão este nosso mundo não os que pretendem narcotizar a vida do espírito, reduzindo tudo a questões econômicas ou de bem-estar material, mas os que têm fé em Deus e no destino eterno do homem, e sabem receber a verdade de Cristo como luz orientadora para a ação e para a conduta”[7].

2. Virtudes humanas da Cooperação

A mensagem cristã, que São Josemaria transmitiu, apresenta, também, outras formulações que se tornam relevantes quando se trabalha na cooperação internacional para o desenvolvimento. Entre as manifestações que surgem da consciência profunda da dignidade humana, atrevo-me a destacar algumas e ilustrá-las com alguns exemplos.

Confiança nas capacidades de cada pessoa, considerando cada uma não só como beneficiária passiva mas como protagonista do desenvolvimento. Isto exige, portanto, situar cada um perante as suas responsabilidades individuais e sociais. Referiram-me que num encontro com estudantes na Universidade de Navarra em 9-X-1972, um jovem nigeriano abriu o seu coração e contou que, como outros muitos africanos, lhe dava medo regressar ao seu país, por todo o tipo de dificuldades que iria encontrar. Josemaria Escrivá interrompeu-o com carinho e disse-lhe mais ou menos estas palavras. “Seria uma pena que não voltassem à sua terra. Não tenham medo e voltem. A sua terra é um encanto! Merece que regressem, que voltem com a luz da consciência cristã com a luz da ciência que adquiriram. Podem fazer um bem muito grande: Não devem privar a Nigéria desse vosso carinho e eficácia. O meu conselho é de que regressem. As gentes da sua terra são generosas e hospitaleiras. Têm vontade de estudar, de saber, de conhecer. Podem fazer um trabalho admirável. Sem excluir ninguém! De modo que muito ânimo e, quando estiverem preparados, voltem! Entretanto, formem-se bem aqui e estudem muito. Diz aos teus professores que te ajudem. Porque interessaria muito que fosses professor na tua terra, que exercesses a tua profissão”.

Amor à liberdade. É importante referir, pelas repercussões que tem no tema que aqui nos ocupa, o apreço tão elevado que Escrivá tinha pelo princípio da subsidiariedade. Era claro que preferia as associações que vêm debaixo para cima, àquelas que são impostas pela autoridade[8]. A solidariedade não é um problema do Estado, mas da sociedade, dos cidadãos livres e responsáveis que podem e devem organizar-se de acordo com o seu entender e as suas inclinações.

Espírito de iniciativa e vontade empreendedora; otimismo e visão positiva do mundo; audácia que não se detém perante as dificuldades econômicas, organizativas, de distância, etc., porque as omissões nos deveres de caridade têm de pesar na consciência de um cristão que, no meio do mundo, deseja ser consequente com a sua fé. “Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do amor do Coração de Cristo”[9].

Sentido de responsabilidade cívica e social, sem desculpas: o estilo habitualmente positivo, alegre, amável de Josemaria Escrivá – que sempre repudiou qualquer espécie de ciúme amargo ou de reação de ressentimento – torna-se duro, quando se trata de despertar as consciências adormecidas e os ânimos aburguesados. “Quando o teu egoísmo te afasta da comum preocupação pelo bem-estar sadio e santo dos homens, quando te fazes calculista e não te comoves com as misérias materiais ou morais do teu próximo, obrigas-me a lançar-te em rosto uma palavra muito forte, para que reajas: se não sentes a bendita fraternidade com teus irmãos os homens, e vives à margem da grande família cristã, és um pobre enjeitado”[10].

Conceito do trabalho como eixo do progresso humano, que exige oportunidades de educação adequadas e a promoção necessária de direitos e deveres laborais. “Cumpre-nos defender o direito, que todos os homens têm, de viver, de possuir o necessário para desenvolver uma existência digna, de trabalhar e descansar”[11]. Neste Congresso tratou-se com grande desenvolvimento da formação profissional da juventude, da mulher, dos empresários e dos quadros. Seja-me permitido acrescentar a seriedade profissional de que aqueles que se dedicam ao desenvolvimento deverão estar munidos, se seguem os ensinamentos de São Josemaria: não basta a boa vontade, necessitam de competência específica e de perfeição humana no trabalho.

Mentalidade realista, que leva a contar com as dificuldades e não desconhece o egoísmo nem as consequências do pecado. “É preciso ensinar as pessoas a trabalhar - sem exagerar a preparação: “fazer” é também formar-se - e a aceitar de antemão as imperfeições inevitáveis: o ótimo é inimigo do bom”[12]. Ao estar em cheio na realidade das coisas, será mais fácil ser flexíveis e, portanto, retificar os planos sempre que seja necessário, ante os imprevistos que forçosamente vão surgir, ou então ao verificar que os programas planeados inicialmente estavam errados ou pouco adequados às circunstâncias.

Realismo é também amor à verdade das coisas, com apreço pelo concreto e exequível, com sentido prático, sem se deixar enganar e sem confiar em grandes mudanças de estruturas, que provavelmente não estarão ao alcance de pessoas normais. São Josemaria respondeu a um pai de família venezuelano, que em Fevereiro de 1975, lhe perguntou sobre o modo de educar os filhos: “Eu levava-os a passear um pouco por essas ‘favelas’ de Caracas. Por-lhes-ia uma mão nos olhos, e depois tirá-la-ia para verem as barracas, umas em cima das outras. Que saibam que têm que administrar o dinheiro, de modo a que todos possam participar dos bens da terra”[13] (Ver este diálogo em vídeo).

Paciência: saber esperar, e contar com o tempo, porque quase nada se consegue à primeira tentativa, especialmente se se procuram frutos maduros e duradouros. Esta atitude serena requer uma retidão de intenção delicada. Se se procuram resultados aparentes e imediatos ou se as entidades públicas e privadas que financiam os projetos de desenvolvimento exigem prazos demasiado curtos, multiplicam-se os riscos de saltar as etapas necessárias, com prejuízo dos beneficiários, que talvez se possam sentir frustrados nas suas expectativas.

Espírito de justiça e de fortaleza, que não confunde a virtude da solidariedade com impulsos passageiros e emotivos, nem com modas de estética bem pensante. “Não nos enganemos: a vida não é um romance cor-de-rosa. A fraternidade cristã não é uma coisa que venha do céu de uma vez por todas, mas uma realidade que se constrói em cada dia. E que tem de ser assim numa vida que conserva toda a sua dureza, com choques de interesses, com tensões e lutas, em o contacto diário com pessoas que nos parecem mesquinhas, e com alguma mesquinhez da nossa parte”[14].

Domínio e elegância, humildade, ao fim e ao cabo: porque o desejo de protagonismo é um dos maiores inimigos da cooperação para o desenvolvimento. São Josemaria praticou exemplarmente um desprendimento total: impulsionou muitas e variadas iniciativas, mas nunca se sentiu proprietário de nenhuma. Também não procurou reconhecimentos ou medalhas, mas servir sem ruído nem ostentação, não como as galinhas que, mal põem um ovo, aturdem cacarejando todo o bairro. Pelo contrário, trata-se de ajudar sem criar dependências – nem psicológicas, nem afetivas – e sem a menor atitude paternalista ou de superioridade, de maneira “ que nem mesmo o favorecido repare que estás fazendo mais do que em justiça deves”[15].

E talvez como síntese de tudo o referido anteriormente, deixar fazer, fazer fazer e dar que fazer a muitas pessoas de boa vontade – cristãos ou não – para sentirem a alegria de serem úteis, de se darem ao serviço dos outros[16]. Esta foi a “estratégia” que empregou durante toda a sua vida e que explica em boa parte o segredo da sua eficácia ao promover tantas iniciativas nos cinco continentes e nos sectores mais diversos: da educação à saúde, da formação de mineiros ou agricultores aos meios de comunicação social. Efetivamente são numerosos os fiéis da Prelazia do Opus Dei, cooperadores e amigos, que promoveram, trabalham ou colaboram em Fundações, Associações, Cooperativas, etc., que procuram contribuir para o progresso dos países menos desenvolvidos economicamente. As ONG são um fenômeno do nosso tempo, que responde muito bem aos ensinamentos de Escrivá – reconhecidas como precursoras do Concílio Vaticano II – sobre o papel dos leigos e a autonomia das realidades temporais.

A sua vida foi uma incessante mobilização de todos, despertando em cada um enorme capacidade –dom de Deus – de fazer o bem e ser útil. Nunca promoveu iniciativas de apostolado – trabalhos profissionais e civis – com mentalidade de distribuidor de beneficência. Muito pelo contrário, viveu “o apostolado de não-dar”[17], sabendo que quase sempre acabamos por desvalorizar o que nos é dado ou podemos conseguir sem esforço pessoal. Por isso, ao incentivar projetos em países em vias de desenvolvimento, animou os promotores – se não eram do país – a contarem sempre com pessoas do lugar para se disporem a meter o ombro e a dar o seu tempo, dinheiro e trabalho. Deste modo, também rapidamente todas essas tarefas contariam com profissionais locais, bem preparados para as dirigirem sem depender de uma assistência financeira ou técnica do exterior contínua.

3. A força do sinal mais

Deixei, para o final desta enumeração, uma característica que considero particularmente importante na vida e na mensagem de São Josemaria e que está também na base de qualquer tarefa de ajuda ao desenvolvimento. Refiro-me à cooperação entendida como atitude ou como hábito, ou melhor dito, virtude ou talvez mesmo compêndio de virtudes.

“Mas não fales da caridade: vive-a!”

A caridade é a base de toda a virtude cristã e, muito diretamente, da cooperação. “Mas não fales da caridade: vive-a!”, dizia com força São Josemaria, como ainda recordam os que tiveram a sorte de escutá-lo no IESE, em Barcelona, nos finais de Novembro de 1970.

“Mais do que em ‘dar’, a caridade está em ‘compreender’”[18]. Dito por outras palavras, assumir a situação, no seu duplo significado de conhecer e de desculpar: colocar-se no lugar do outro é requisito indispensável, não só do ponto de vista cristão mas também em termos de eficácia profissional, em qualquer projeto de cooperação internacional.

Contudo, em muitos ambientes ligados a tarefas de desenvolvimento – especialmente nas ONG- continua a moda de uma visão reivindicativa da cooperação, que talvez seja uma herança das doutrinas marxistas, que dominaram durante décadas o pensamento em torno das questões do desenvolvimento econômico e social. Segundo essa dialética de luta de classes, é imprescindível a denúncia (advocacy é o termo anglo-saxónico de difícil tradução).

Certamente com boa intenção, mas com excessiva impaciência, talvez suceda nestes casos que se esqueça a própria natureza da cooperação, que exige essencialmente o esforço tenaz e perseverante de união, de superação de preconceitos e de apagar as feridas da memória, de limar asperezas e mal entendidos, de procurar a harmonia e a concórdia. E em tudo isto Josemaria Escrivá foi um mestre, com a sua vida e os seus ensinamentos. Poderiam publicar-se – e valeria a pena – livros inteiros citando e comentando os seus escritos sobre a sua paixão pela unidade, o seu desejo de ser e de ensinar a ser semeador de paz e de alegria, as suas glosas do texto paulino[19] “levai uns as cargas dos outros”[20], e de outras passagens do Novo Testamento relacionadas com o mandamento novo do amor. Basta uma citação, que exprime a convicção e a radicalidade com que trabalhou durante toda a vida para tornar realidade esses “sonhos” de convivência e de cooperação a que nos referimos no início desta intervenção.

“É preciso unir, é preciso compreender, é preciso desculpar. Não levantes jamais uma cruz só para recordar que uns mataram outros. Seria o estandarte do diabo. A Cruz de Cristo é calar-se, perdoar e rezar por uns e por outros, para que todos alcancem a paz.”[21].

A vida não se alimenta de contradições, mas de paradoxos, aparentes oposições, que na realidade são fonte de riqueza. Em Josemaria Escrivá encontramos a superação destas presumíveis incompatibilidades, mas sem cair em relativismos morais nem transigir em valores irrenunciáveis. Cooperar é, às vezes, dizer que não, quando o contrário suporia cooperação com o mal, isto é, cumplicidade. As diferenças existem e os contrastes também. É preciso aprender a colaborar e a construir a paz, apesar dos conflitos que possam existir. O diálogo pressupõe ter entendido que as diferenças não têm que conduzir necessariamente a divisões ou a confrontos.

Nos seus escritos – e, ainda mais, na sua vida e nas centenas de tarefas que impulsionou – é notório o repúdio pela uniformidade, pela sensaboria de estar de acordo com tudo. Foi um profeta do pluralismo, também no âmbito teológico, e antecipador em muitos sentidos do diálogo entre religiões[22].

4. Cooperação com os muçulmanos

Deveria terminar aqui este trabalho; mas ao mesmo tempo sinto necessidade de fazer uma referência à crise que estamos a viver na hora atual, agudizada de maneira dramática pelos acontecimentos do passado 11 de Setembro.

O meu trabalho atual num projeto de cooperação educativa e empresarial, entre a União Europeia e a Liga de Estados Árabes, leva-me a conviver diariamente com muçulmanos. Esta colaboração tinha começado há uns anos atrás, quando trabalhava numa ONG italiana e participei no plano e arranque de vários projetos de cooperação com instituições dirigidas por muçulmanos: na Albânia, para estabelecer uma rede de assistência domiciliária a doentes oncológicos terminais, no Líbano, para a reorganização do sistema de produção e a criação de cooperativas agrícolas para drusos e maronitas; ou na ilha de Basilan (ao sul de Mindanao, nas Filipinas) onde, a pedido do bispo católico diocesano, se promoveu a criação de emprego para ex-guerrilheiros do MNLF e a reabilitação das suas aldeias, incluindo centros de saúde e, pelo menos num caso, a mesquita.

De passagem, de modo episódico, gosto de recordar que a primeira vez que visitei um lugar de culto muçulmano foi na Escola de Contabilidade e Administração de Strathmore College, um trabalho de apostolado corporativo do Opus Dei em Nairobi: ali, com efeito, tive ocasião de ver a sala – ampla e bem situada, na zona central da Escola – destinada a lugar de oração para os alunos muçulmanos.

Procurarei, pois, apontar muito brevemente algumas notas em relação ao impulso que Josemaria Escrivá deu à colaboração com não cristãos e, em particular, com muçulmanos.

“Tenho muito afeto aos muçulmanos. Já se fizeram duas edições de Caminho em árabe, ‘levam-me’ no bolso da jilaba!”. Como eu, milhares de pessoas – certamente milhões, através do documentário que se filmou – ouviram a voz afetuosa e alegre de São Josemaria no Teatro Coliseo de Buenos Aires, a 26 de Junho de 1974, ao responder – com essas ou semelhantes palavras – a alguém que se apresentou como descendente de muçulmanos.

Anos antes, numa entrevista que se reeditou no livro Temas Actuais do Cristianismo, manifestava: “Respeito todas as opiniões diferentes da minha, como respeito aqueles que têm um coração grande e generoso, ainda que não compartilhem comigo a fé de Cristo. Vou contar-vos uma coisa que me tem sucedido muitas vezes, a última delas aqui, em Pamplona. Aproximou-se de mim um estudante que queria cumprimentar-me.

- “Monsenhor, eu não sou cristão” – disse-me – “sou maometano”

- “És filho de Deus como eu” – respondi-lhe. E abracei-o com toda a minha alma”[23].

Testemunhas presenciais relataram com mais pormenor esse encontro com Adnán, de nacionalidade síria, estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de Navarra. Foi no Colégio Universitário Aralar a 23 de Abril de 1967. Quando o cumprimentou dizendo que era muçulmano, a resposta foi imediata: disse-lhe mais ou menos algo assim: “Temos muitas coisas em comum. Venerais Jesus Cristo e considerai-lO como Profeta; sentis muito respeito pela Mãe de Jesus a quem chamais Virgem. Além disso, quero-vos muito e tenho muitos amigos muçulmanos”.

No final da década de 50, tinha dado início ao apostolado do Opus Dei no Quênia, que desde o primeiro momento esteve aberto a pessoas de todas as etnias e religiões. Custou muitos sofrimentos a São Josemaria que as autoridades aceitassem o caráter inter-racial, inter-tribal e inter-religioso que se desejava tivessem os trabalhos de apostolado corporativo que se estavam promovendo. Não é de estranhar o lema escolhido, por sugestão do Fundador, para o escudo de Strathmore College: “Unum sint”. Esse mesmo lema, ou outros parecidos – “ex pluribus unum” – encontram-se nos escudos de outros trabalhos apostólicos promovidos por fiéis da Prelazia do Opus Dei.

Valeria a pena transcrever testemunhos de muçulmanos, que foram residentes de Netherhall House em Londres ou de muitas outras residências universitárias estabelecidas pelo impulso de São Josemaria. E talvez fossem mais significativos os relatos dos que não só narrassem a ajuda recebida, mas também e sobretudo a colaboração prestada a trabalhos que se inspiram no carisma de São Josemaria. Na Nigéria, por exemplo, os presidentes dos comitês patrocinadores de iniciativas, tais como Iroto Conference Center ou Lagos Business School, eram muçulmanos.

Que estes apontamentos sejam uma pequena contribuição para o esforço que o Santo Padre nos está a solicitar: construir uma cultura de paz, que – como disse em numerosas ocasiões – se conseguirá mais facilmente mediante a cooperação em projetos comuns de promoção dos mais necessitados e a favor do desenvolvimento.

Alberto Ribera

Atas do Congresso “La Grandeza de la vida corriente”, Vol. IX. La solidariedad de los hijos de Dios, EDUSC, 2003


[1] Cf. U. FARRI, Perspectivas y objetivos de la cooperación universitaria, en: El mundo que viviremos. 25 años de los Congresos UNIV, Madrid, 1993, p. 65.

[2] É Cristo que passa, 36.

[3] Ibidem, 13.

[4] Ibidem, 72.

[5] Ibidem 99.

[6] Cf. artigo: As Riquezas da fé, publicado no jornal ABC, 2-XI-1969.

[7] Discurso proferido no ato de investidura de doutores Honoris Causa da Universidade de Navarra, 9-V-1974, publicado em Josemaria Escrivá de Balaguer y la Universidad, EUNSA, Pamplona, 1993, p. 105-110.

[8] Cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 21.

[9] É Cristo que passa, 167.

[10] Sulco, 16.

[11] Amigos de Deus, 171.

[12] Sulco, 402.

[13] Citado por A. SASTRE, Tempo de Caminhar, Lisboa, Diel 1994, p. 594.

[14] As Riquezas da fé

[15] Caminho, 440.

[16] Cf. Forja, 591.

[17] Caminho, 979.

[18] Ibidem, 463.

[19] Cf. Gal. 6, 2.

[20] Cf., por exemplo, entre outros muitos, Caminho, 385; Forja, 557.

[21] Via Sacra, VIII, 3.

[22] Cf. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 22.

[23] Ibidem, 85.