Semear paz e alegria

D. Javier Echevarría, o segundo sucessor de São Josemaria à frente do Opus Dei, conviveu diariamente com o fundador durante mais de 20 anos. No livro Recordações sobre Mons. Escrivá, conta alguns detalhes sobre a sua alegria e otimismo no dia a dia.

Em 1972, numa época em que São Josemaria sofria muito com a situação por que passava a Igreja, rezava em voz alta: “Senhor, que eu não esteja triste, que me ate sempre à tua Santa Cruz, que queira co-redimir contigo. Dá-me a tua alegria, mesmo nestes momentos de dor, para saber cumprir a Vontade do Pai”.

Tinha por lema da sua atividade o de que a alegria – tesouro que nos pertence por direito próprio aos cristãos – tem as suas raízes em forma de cruz: não a contemplava como suplício, mas como o trono em que o nosso Salvador triunfa. Assim condensava, em 31 de dezembro de 1973, boa parte do que tinha dado sentido à sua vida: “Hoje daremos graças ao Senhor pelos benefícios que recebemos no ano que termina. Para o que começa, vendo em que pé estão as coisas deste mundo em que vivemos e o modo de proceder de tanta gente, queremos ter a retidão de intenção de ser humildes, de retornar sempre à verdade e de agarrar-nos com mais força a Nosso Senhor. Pedir-me-eis talvez outras palavrinhas para este ano que vem, e antes eu desejaria que nos decidíssemos a servir de verdade, completamente. Então, dir-vos-ei, concretizando: Servite Domino in laetitia![1]; e também: Gaudete in Domino semper![2] A humanidade, cada um de nós, custou todo o Sangue de Cristo. Vemos que, infelizmente, agora tudo cambaleia; que as almas se perdem; que na Igreja muitos tentam destruir a vida de tantos séculos. Não tardará a vir a luz, entre outras razões porque ninguém pode nada contra Deus, e não se perderá nem uma gota desse Sangue divino, derramado para que sejamos felizes e para que sejamos fiéis. Portanto, estai contentes! E repito-vos o mesmo de sempre: não estareis contentes se não lutardes; e, se não lutardes, é então que caireis. Gosto de prevenir-vos, dizendo que a luta custa e que, quando se caiu, custa mais refazer-se. Sede fiéis ao Senhor, com alegria! Meus filhos, não vos preocupeis, aconteça o que acontecer; mas cuidai, sim, de ser fiéis, defendei a formosura, a pureza e a verdade da nossa fé, oferecendo ao Senhor toda a vossa vida, até essas benditas pequenas incomodidades de viver como numa família numerosa e pobre. Estai decididos a ser humildes, com a experiência do nosso nada e com a certeza de que temos Deus conosco. Eu quereria dar-vos a fortaleza da fidelidade, que nasce da humildade, de saber que somos de barro de moringa. Portanto, lutar, contagiar esta loucura divina, para que isto continue pelos séculos, para que sempre haja gente disposta a semear esta alegria e a repartir este Amor que possuímos, este Amor de Deus: que trigal nos espera!”

Vê-se que essa alegria e otimismo, traços do seu caráter, aparecem ancoradas nas virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade, e que, além disso, manifestam o gaudium[3], fruto da ação do Espírito na alma.

Nunca se deixou levar pelo pessimismo. É verdade que se julgava muito pouca coisa, semelhante a uma criança pequena e desvalida, mas tinha a certeza de que Deus se ocupa de cada um de nós e de que não lhe é indiferente nada do que se passa conosco, pois Ele tudo governa ou permite para nosso bem. (...)

Confirmava-nos em 1969: “Otimistas, alegres: Deus está conosco! Por isso, encho-me diariamente de esperança. Esta virtude faz-nos ver a vida como é: bonita, de Deus!; faz-nos viver sob uma nova perspectiva as diversas circunstâncias por que passamos. Temos a obrigação de cultivar sempre na nossa vida a esperança, especialmente agora que o pessimismo, o cálculo, a ambição fizeram a sua aparição no mundo de um modo tão violento: não se lembram de Deus, que é o único tesouro que não se perde e que não se degrada”.

Compreende-se assim que vencesse os medos e os nervosismos.

Contou-nos mais de uma vez a mons. Álvaro del Portillo e a mim: “Quando prestei exame de admissão no Secundário, em Lérida, passei o meu medo. E o superávamos, no aspecto humano, tomando sorvetes com bolachas, que nos custavam dez centavos; e, no aspecto da piedade, rezando. Lembro-me de que trazia no bolso um terço, que usava todos os dias, como fazia quando estava com meus pais; algumas noites, adormeci rezando”.

Vivi ao seu lado situações que traziam perigo de morte: por exemplo, numa viagem por estrada, o carro patinou e estivemos a ponto de cair num precipício; em outra ocasião, viajávamos de avião e houve uma forte tormenta, que causou um grande susto entre os passageiros; enfim, quando se declarou a insuficiência renal, sofreu crises de aflitivas faltas de ar. Nunca temeu essa “boa irmã”, a morte, porque estava convencido de que, quando chegasse, teria a oportunidade de saborear “o abraço eterno de Deus”. Essa esperança cumulava-o de paz.

É impossível descrever os graves e incontáveis perigos de morte em que se encontrou durante a guerra civil espanhola. Por exemplo, na véspera do dia 2 de outubro de 1936, comentava ao padre Álvaro del Portillo: “Que nos oferecerá o Senhor amanhã, aniversário da fundação da Obra?” Pouco tempo depois dessa confidência, um parente do padre Álvaro avisou-lhes que os milicianos anarquistas estavam revistando as casas da família a quem pertencia também a casa que ocupavam. Perante aquela notícia, encheu-o de alegria a possibilidade de ser mártir da fé, aceitando com gosto a morte violenta, com a ajuda da graça divina. Simultaneamente, enquanto experimentava esse júbilo na alma, notou que o seu corpo tremia ostensivamente. Comentou depois que viu nessa reação – “só tive medo duas vezes na minha vida”, precisava – o presente do Senhor pela festa do dia 2 de outubro: “Por um lado, a alegria imensa de ir unir-me definitivamente com a Trindade; por outro, a clareza com que Ele me fazia ver que eu não valho nada, não posso nada, e, por isso, tremia com autêntico medo”.

Vivia sempre com paz, com fortaleza, sem nervosismo. Proclamava com simplicidade: “Com o amor de Deus, eu corro todos os riscos, porque Ele não me pode abandonar”.

Todos víamos que a sua alegria era contagiosa. Criava à sua volta um clima de paz e contentamento, sem por isso esconder ou negar as dificuldades, nem exigir manifestações externas ruidosas.

Ao terminar uma das suas viagens à América, os membros da tripulação do avião disseram a mons. Álvaro del Portillo e a mim, numa conversa cheia de espontaneidade, que dessa vez o seu trabalho tinha sido diferente, e a explicação que davam, cada um à sua maneira, tinha este denominador comum: “Geralmente, quando fazemos esta rota, que dura mais de onze horas, com escalas, em que há que estar atento a tantas necessidades do vôo e das pessoas, acabamos esgotados, com vontade de terminar, e custa-nos ser amáveis. Temos que dizer que a viagem de hoje foi completamente diferente: sentimo-nos humanamente descansados, porque temos uma paz interior que recebemos nos momentos de conversa com mons. Escrivá”.

Durante a sua catequese pela Península Ibérica, em 1972, recebeu em Madri uns operários – dois deles pertenciam ao Opus Dei – que tinham formado um trio de palhaços para divertir, nos seus tempos livres, a gente dos bairros periféricos. Contaram-lhe que muitos dias, à hora de atuarem, iam cansados, devido ao trabalho da jornada. Mons. Escrivá conversou afetuosamente com eles e, à despedida, corroborou-lhes que os que estamos enamorados de Deus devemos viver com a preocupação de tornar amável a vida aos outros: “Vós podeis torná-la ainda mais amável com o vosso ofício, pondo sentido sobrenatural nessas atuações que distraem as pessoas e oferecendo-as para que tenham a alegria própria dos filhos de Deus. Reparai que, com o vosso ofício de palhaços, podeis fomentar a sã alegria de uma vida cristã”.

Incutia nas almas a certeza confiante de que Deus não rejeita ninguém. Ensinava que, em conseqüência, não devemos repelir nenhuma pessoa, porque o Senhor pôs cada uma no nosso caminho para que a ajudemos a descobrir o amor de Deus. Impelido por essa convicção, destacou a alegria como uma das virtudes que os membros do Opus Dei devem lutar por praticar sempre. E, em 1961, precisava: “Gaudium! Alegria, que não é o agitar de guizos da risada boba, algo animal. A alegria, baseada na esperança em Deus, é algo muito profundo; não tem por que manifestar-se externamente e é compatível com o cansaço, é compatível com a dor, que Deus permite, mas que temos de arrostar com o garbo de um filho de Deus. Portanto, vivei a alegria de saber que, se não quisermos afastar-nos de Deus, seremos vencedores: é a alegria de saber que na vida externa, na vida apostólica, na vida interior, quando parece que tudo desaba, nunca será assim, porque Cristo não perde batalhas”.

Muitas pessoas me confirmaram que, às vezes, chegavam pela primeira vez à presença de mons. Escrivá com o nervosismo da emoção, mas que poucos segundos depois se sentiam cheios de uma tranqüilidade e uma paz que não consideravam lógicas: encontravam-se absolutamente à vontade na conversa com ele, como se o conhecessem há muito tempo.

O Fundador do Opus Dei tinha habitualmente o aspecto de um homem perfeitamente recolhido, que vivia sempre na presença de Deus. Isso não levantava nunca uma barreira no trato com os outros; antes pelo contrário, verificava-se o que tantas vezes nos ponderou: “Tudo o que é sobrenatural, quando se refere aos homens, é também muito humano”.

Trecho do livro: Javier Echevarría Rodríguez e Salvador Bernal Fernández, Recordaçõessobre Mons. Escrivá, Quadrante, São Paulo, 2000


[1] “Servi o Senhor com alegria!”: Sl 99, 2.

[2] “Alegrai-vos sempre no Senhor!”: Fil 4, 4.

[3] O gozo, a alegria.