Samuel Camhi e o Doutor Cofiño

Samuel Camhi era um comerciante judeu e Ernesto Cofiño um médico católico. A preocupação pelos mais necessitados os unia e chagaram a ser grandes amigos.

Da esquerda para direita: Enrique Fernández del Castillo, Antonio Rodríguez, Samuel e Rose Camhi, Sol Camhi, Cardenal Casariego, Salomón Elías. Em cima; Jacobo e Jaime Camhi e Victor Sandoval, na inauguração de Junkabal (1971).

Oferecemos parte do relato sobre a Amizade entre o dr. Cofiño e Samuel, extraído do livro “Un Mar sin orillas”.


O filho de Samuel Camhi nos conta a história de seu pai.

Samuel Camhi, meu pai, nasceu em Esmirna, na Turquia, em 1900 – junto com o século–, no seio de uma família sefardita pobre. Quando tinha dois anos, seu pai, Abraham Dozzetos, faleceu e sua mãe, Reyna Benchoam, decidiu ir com seus três filhos para Jerusalém, onde residia o seu irmão Moisés.

Lá eles enfrentaram sérios problemas financeiros. E como o trabalho do filho mais velho, Rubem, não garantia a sua sobrevivência, sua mãe decidiu entregar Samuel para adoção, quando ele tinha quatro anos, a Jacó Camhi e Sol Levy, um casal sefardita que tinha perdido dois filhos e não podia ter mais. Eles deram a meu pai todo o amor do mundo, mas ... aquela separação de sua mãe foi uma ferida que sempre sangrou em seu coração.

Alguns anos depois, durante a Grande Guerra, o pequeno Samuel adoeceu gravemente com o que chamaram de “gripe espanhola”. Esteve delirando por quase duas semanas. O casal Camhi teve que vender sua casa por um quarto do valor para salvá-lo...

Durante aqueles anos Samuel sofreu muito: ficaram gravadas nele para sempre as imagens das crianças desnutridas, com rostos abatidos, vagando pelas ruas de Jerusalém, pedindo um pedaço de pão...

Nunca passou fome, mas sofreu com a falta de escola. Somente podia ir a algumas aulas que eram dadas na Aliança Francesa, que era patrocinada pelo Barão de Rothschild ..., mas quando os governos turco e alemão ocuparam Jerusalém fecharam a escola, porque era de origem francesa. E assim perdeu a oportunidade de estudar em Paris... Essa foi outra das grandes frustrações de sua vida. Sua vida era uma sucessão de desgraças.

No início da década de 1920 Jacó e Sol faleceram. Papai ficou sozinho de novo. Nessas circunstâncias, muitos se enchem de ressentimento. Mas isso não aconteceu com meu pai: “todos os anos” –escreveu – “no dia do Perdão, rezo no templo em memória de meus dois pais e duas mães”. E prometeu a si mesmo: “Se algum dia eu tiver dinheiro, farei todo o possível para ajudar as crianças necessitadas!”

E assim foi construindo o seu futuro, graças a seu trabalho e à sua inteligência. Era um rapaz muito esperto: contava-nos que quando Sol lhe dava dinheiro para comprar laranjas, ia ao mercado e pechinchava, pechinchava ... até que ficasse mais barato. Depois, vendia as laranjas, comprava-as e voltava a vendê-las, até a hora de voltar para casa com as laranjas ... e alguns centavos para si mesmo!

Quando ficou sozinho, decidiu vir para a América, para uma aventura... Chegou a Veracruz com a ideia de se estabelecer no México, mas aquela era a época de Plutarco Elías Calles e a revolução mexicana, e dr. Mauricio Guzmán, um médico que conheceu no navio, convenceu meu pai a vir para a Guatemala. E aqui Samuel Camhi chegou, sem nada, em 13 de setembro de 1924.

No princípio começou a fazer viagens pelas costas Norte e Sul vendendo gravatas, lenços, cintos ... Em 1927 montou uma pequena loja, na esquina da Quinta Avenida com a Rua Quinze, o Armazém ‘Meu Amigo’, e quando o negócio estava começando a ir para frente... começou a crise mundial de 1929 e ele ficou com um prejuízo de 17.000 dólares.

Meu pai já estava pronto para declarar falência, pagar os credores e liquidar tudo em três dias, quando uma noite, enquanto caminhava pela Sexta Avenida, viu que, no cine Palácio, Habid Estéffano, um grande orador judeu, estava dando uma palestra sobre O Caminho da Vida. E entrou. Aquelas palavras transformaram a sua vida.

O Caminho da Vida

“Havia um califa”, contava Habid, “que, antes de morrer, dividiu a sua herança entre seus quatro filhos. Deixou seu cavalo para o mais velho, a sua lança para o segundo e para o terceiro, o seu anel. Para o pequeno, porém, disse: Eu não tenho nada para lhe dar. Mas o filho prometeu: Não importa! Eu vou lutar! E com o meu esforço vou conseguir tudo! Meu cavalo, minha espada e meu anel! Pouco depois, numa guerra entre as tribos árabes, o filho ficou ferido. Quando já se aproximava o inimigo e se dava por vencido, esse filho lembrou-se da promessa que havia feito a seu pai. Levantou-se, lutou e venceu...”

Meu pai ficou muito impressionado com essa história, conversou sobre ela com Habid, que lhe disse: “Lute! Recomece! Peça um prazo a seus credores!” Samuel encheu-se de otimismo e assim fez: pediu dinheiro a um amigo que confiou em sua honestidade e continuou trabalhando, com todas as suas forças, das sete da manhã às onze da noite. E Deus o favoreceu: em 1935 ele saldou todas as suas dívidas, e mais tarde fundou uma loja de roupas infantis, uma loja de brinquedos e uma fábrica de tecidos.

O resto da história, padre Antonio, você já sabe: no início dos anos 60, Salomon Elías, seu advogado, apresentou-lhe o Dr. Cofiño, que lhe pediu bolsas para estudantes universitários de baixa renda de Ciudad Vieja. Meu pai viu um caminho aberto para ajudar tantos meninos que, como ele, não podiam estudar por falta de recursos, e se tornou grande amigo do Dr. Cofiño. Tanto, que em casa o chamávamos de “Tio Neto”. Eles se amavam como irmãos.

Sede da Fundação Junkabal, onde capacitam-se muitas mulheres para o trabalho.

Pouco depois, Julio Matheu pediu-lhe que emprestasse uma casa que tinha na rua Martí para montar uma escola para trabalhadores. E assim começou Kinal. Em 1963 levaram meu pai para conhecer Junkabal*, na zona três, próximo ao lixão. Mostraram-lhe as aulas de Cozinha, Primeiros Socorros, Cuidados infantis, essas coisas ..., e contaram-lhe o problema que tinham: não podiam pagar o aluguel e estavam pensando em sair de lá ... Papai ficou feliz em ver a escola, tão cuidada e tão limpa. “Onde há limpeza há trabalho”, pensou e disse: “Não se preocupem. Eu compro a casa. Junkabal vai ficar aqui!”.

E não é que ele tivesse dinheiro sobrando. Fazia-o por generosidade, para ajudar os outros. Pediu um empréstimo e o foi amortizando com os aluguéis que recebia de alguns terrenos. Chegou a hipotecar como garantia várias de suas lojas, mas não se importava: sabia que aquilo estava em boas mãos. E quando criou a Fundação Samuel Camhi, colocou uma condição expressa: que a formação moral de Junkabal fosse confiada ao Opus Dei.

“Por que ele fez isso?” – Me perguntam às vezes – “Nenhum de vocês é católico. É verdade, somos todos hebreus de raça e religião. Papai viveu e morreu judeu. Mas ele sabia que desta forma garantiria um ambiente não discriminatório em Junkabal. “Se o Opus Dei estiver lá”, pensava, “haverá liberdade religiosa”.

Há algum tempo fiz uma escultura para Junkabal: são duas mãos que acolhem e protegem uma criança indefesa. Elas são as mãos do papai. Quis expressar qual era a razão da sua vida: ajudar quem trabalha com os mais necessitados.

Certa ocasião, Samuel visitou Mons. Escrivá, que lhe agradeceu a ajuda que prestava. Então papai lhe disse: “Monsenhor, quero lembrar-lhe, antes de mais nada, que não sou católico. E em segundo lugar ... que eu sou um judeu!” Mas para Monsenhor Escrivá isso não significava nenhuma barreira. “Venha aqui para um abraço!” Disse ele, enquanto o abraçava.

A partir de então, Monsenhor sempre nos escrevia: pelo aniversário de papai ou em datas especiais. E papai afirmava que ninguém nunca o tinha tratado com tanto carinho.

Agora, quando penso em sua vida, entendo a sua alegria quando Junkabal foi inaugurada: finalmente tinha cumprido a promessa de sua infância. Foi, sem dúvida, um dos dias mais felizes de sua vida.

Foi no dia 15 de maio de 1971, e o evento contou com a presença do cardeal Casariego, Kyra Nuila, a diretora do Centro, Olga de Mirón, a presidente do Conselho e, claro, o Dr. Cofiño, que fez um belo elogio ao seu amigo Samuel:

“O Sr. Samuel”, disse o médico, “foi um comerciante de visão clara, que conseguiu trazer muito dinheiro para o seu cofre .... Mas esses fundos foram saindo pela porta do seu coração para fazer boas obras: leva pão onde há fome; alegria onde há lágrimas; e a possibilidade de melhoria onde é necessário, como nesta escola de Junkabal. Por isso, quando conheceu o espírito de serviço que anima as obras do Opus Dei, quando conheceu Junkabal, apaixonou-se por esta iniciativa e desde 1964 tem prestado toda a sua colaboração. Graças ao Sr. Samuel terminamos Junkabal, destinada a todos que aspiram a melhorar, sem levar em conta as diferenças de raça, condições sociais, econômicas ou religiosas. Ele cumpriu aqui o que foi prometido em Jerusalém quando era criança, demonstrando que tem um grande coração e que um homem vale o que vale seu coração”.

Meu pai escutava-o emocionado. E saltaram-lhe as lágrimas quando uma placa, em bronze escuro, foi descoberta ao lado do grande pátio com arcos de tijolos, onde se lê:

“Fundação Samuel Camhi. O Conselho, as professoras e as alunas de Junkabal ao Sr. SAMUEL CAMHI. Em perene homenagem por sua generosidade, altruísmo, sensibilidade social e desvelo pela juventude”.

– “Este dia é muito especial para mim”, disse papai ao descobrir a placa, “porque Deus me deu a vida e a oportunidade de poder cumprir minhas promessas de ajudar os pobres. Agradeço de todo o coração o que recebi do Divino Criador do Universo. Hebreus e católicos devem cumprir o mandato divino: Ama teu próximo como a ti mesmo. O egoísmo humano impede tantas vezes que isso se realize. Mas se todos pudéssemos diminuir nosso egoísmo e amar-nos mais, o mundo mudaria”.

Um dos cursos técnicos promovidos atualmente em Junkabal (foto retirada do site oficial)

História recolhida por A. Rodríguez Pedrazuela em Un mar sin orillas (RIALP)

Tradução: Mônica Diez


* Junakabal é uma palavra cakchikel, adaptada a escrita e língua espanhola que quer dizer “Calor de Lar”.