Querer o bem para o outro

“Enganar-se a respeito do amor é a perda mais terrível; é um dano eterno, para o qual não há compensação nem no tempo nem na eternidade!” (Kierkegaard).

“Enganar-se a respeito do amor é a perda mais terrível; é um dano eterno, para o qual não há compensação nem no tempo nem na eternidade!” Estas palavras de Kierkegaard, escritas há mais de um século e meio, continuam plenamente atuais; mais ainda, parecem-nos hoje mais próximas e sugestivas do que no momento em que foram escritas. Já não sabemos o que significa amar. Longe de reduzir-se a um simples estímulo para o prazer ou a auto realização egocêntrica – numa espécie de “egoísmo a dois” compartilhado apenas aparentemente –, o amor consiste essencial, embora não exclusivamente, num ato da vontade, firme e estável, que imprime uma fecunda tensão à pessoa inteira e que permite descobrir, escolher, procurar e realizar o bem do ser amado.

O amor consiste essencialmente, num ato da vontade, que imprime uma fecunda tensão à pessoa inteira e que permite descobrir, escolher, procurar e realizar o bem do ser amado.

Para começarmos a desenredar o magno e assombroso mistério do amor, podemos recorrer à singela descrição que Aristóteles faz dele na sua Retórica. Diz-nos o filósofo grego que amar é “querer o bem do outro enquanto outro”.

São, pois, três os elementos que compõem a realidade que nos propomos estudar:

a) querer;

b) o bem;

c) do outro enquanto outro.

Um breve comentário de cada um destes componentes nos situará na estrada adequada para começarmos a compreender a natureza do amor.

1. QUERER

a) A vontade... e algo mais

Quando Aristóteles descreve o amor como “querer”, tenta deixar claro que o nervo ou a coluna vertebral de toda a ação amorosa tem a sua base na vontade. Mas nós sabemos que o amor não se esgota nisso; que, em sentido forte e profundo, amamos com toda a nossa pessoa. O amor abrange:

– desde os atos mais transcendentes, como a oração e o sacrifício pelo ser amado, ou como o projeto conjunto e progressivo daquilo que virá a ser a vida conjugal e familiar,

– passando pelos sentimentos e afetos nos quais ressoa e se exterioriza o nosso carinho,

– até as questões aparentemente mais ínfimas e intranscendentes, como o empenho por mostrar-se elegante e atrativo (ele! e ela, ela e ele!); o esforço por sorrir com amabilidade; a carícia ou o olhar de carinho, mesmo nos momentos de cansaço ou nervosismo ou desalento; ou ainda os pequenos detalhes que tornam mais saborosos e entranháveis a volta ao lar e o descanso em família, que iluminam a existência cotidiana com brilhos fulgurantes de entrega, que encarnam e dão vida à íntima e escondida dedicação dos pais a cada filho ou dos irmãos e amigos entre si.

Amamos, pois, com tudo o que somos, sabemos, sentimos, podemos, fazemos, temos e desejamos (e, portanto, também com os nossos ideais!). Absolutamente tudo. Neste sentido, amar consiste em derramar o nosso ser inteiro no apoio e na promoção do ser querido.

Mas a amplitude do amor é tão vasta e impossível de abarcar que esse repertório quase infinito de ações – a palavra ou o silêncio compreensivos, o trabalho intenso ou a generosa disponibilidade para os filhos ou amigos quando andamos muito escassos de tempo, o cuidado da própria aparência ou da casa, com minúcias frequentemente quase imperceptíveis, mas sempre indispensáveis... – só se transforma em amor pleno, sincero e provado na medida em que todas essas atividades sejam “pilotadas” por uma operação da vontade (o querer), e estejam como que envolvidas ou “imersas” nesse querer que procura de maneira nobre, franca e resoluta o bem da pessoa a quem se estima.

Amar, querer: estamos diante de palavras e realidades-chave. Pois o amor não se esgota nas disjuntivas “gosto” ou “não gosto”, “agrada-me” ou “desagrada-me”, nem se identifica com o puro e simples “atrai-me”, “interessa-me”, “apaixona-me”... com que tantos dos nossos contemporâneos, jovens e não tão jovens, pretendem justificar o seu comportamento. No fim das contas, se considerarmos isoladamente cada um desses verbos e os absolutizarmos, veremos que acabam por revelar-se mais próprios dos animais do que do homem.

Com efeito, os animais movem-se por atração-repulsão, por instintos; buscam o seu bem, estreito, puntiforme e exclusivo, de uma maneira quase automática. Gostam daquilo que os beneficia a eles ou à sua espécie, e rejeitam aquilo que lhes é daninho. São Tomás de Aquino descrevia assim essa realidade: magis aguntur quam agunt, “mais do que mover-se, são movidos” pelo objeto externo que os atrai ou repele; mais do que agir por iniciativa própria, são “levados a agir”.

Já o homem, não. O homem transcende as simples necessidades biológicas, e é capaz de realizar ações que não se explicam de maneira nenhuma pelo mero impulso da sua conservação física. Para dizê-lo de algum modo, o homem pode pôr entre parênteses os seus instintos (melhor seria dizer as suas tendências), e querer e realizar uma ação boa em si mesma, por mais que ela não o atraia pessoalmente, por mais que não lhe agrade nem desperte o seu interesse... e até lhe desagrade e repugne; ou, em sentido contrário, pode não a querer nem a levar a cabo mesmo que esteja “morrendo” de desejo de realizá-la, se perceber que esse ato não contribui para o bem dos outros.

Uma das realidades que manifestam de maneira mais clara a superioridade do homem sobre o animal – e que os distancia infinitamente um do outro, segundo Pascal – é que, deixando de lado os seus gostos e apetites quando as circunstâncias o exigem, o ser humano é capaz de conjugar em primeira pessoa o eu quero ou, se for o caso, o não quero, dotado às vezes de muito maior importância antropológica e ética.

É o que diz também Julián Marías: “Quando nego que o amor seja um sentimento – identificá-los parece-me um grave erro, e talvez o mais difundido –, não nego a enorme importância que têm os sentimentos, incluídos os amorosos, que acompanham o amor e formam como que o séquito da sua realidade central; esta, porém, pertence a níveis mais profundos”[1] da pessoa: os da vontade.

Também São Josemaria Escrivá comentou amplamente essa realidade, com diversos desdobramentos que não é possível comentar aqui. Num dos seus textos mais significativos, depois de deixar claro que o amor “não se confunde com uma atitude sentimental”[2], pergunta-se diretamente em que consiste o amor humano. E responde: “A Sagrada Escritura fala-nos de dilectio – dileção –, para que se compreenda bem que não se refere apenas ao afeto sensível. Exprime antes uma determinação firme, da vontade. Dilectio deriva de electio, escolha. Eu acrescentaria que amar, em linguagem cristã, significa querer querer...”[3]

b) Querer querer

Portanto, podemos distinguir três degraus que nos permitem alcançar a substância mais pura do amor:

– Em primeiro lugar, é preciso negar que se trate de um simples sentimento, de um afeto sensível, embora não devamos excluir em nenhum caso a presença desses afetos.

– A seguir, precisamos ressaltar o seu caráter eminentemente ativo, qualificando-o como determinação firme da vontade.

– Por fim, devemos potenciar essa índole ativa por meio daquilo a que chamei por vezes “a maior prerrogativa do ser humano do ponto de vista operativo”: areflexividade da vontade, capaz de libertar energias volitivas praticamente infinitas.

Na citação de São Josemaria Escrivá feita acima, fala-se de “querer querer”, mas o autor comenta em outras passagens que a possibilidade de reduplicação não é apenas uma: também podemos “querer querer querer”, e “querer querer querer querer”..., e assim até alcançar o objetivo desejado[4].

Amar: querer, querer querer... O homem ultrapassa infinitamente o animal precisamente mediante esse querer por meio do qual supera e excede os meros desejos, paixões e afetos: pode suscitá-los, reforçá-los ou contrariá-los segundo lhe parece conveniente. Amar é, pois, um ato refinadamente humano, talvez o mais humano de todos. É um ato livre e, portanto, inteligente: sapientíssimo; decidido, audaz e vibrante, fonte de iniciativas criadoras, e por isso mesmo libertador e surpreendente, e por vezes esmagador, muitas vezes custoso, sempre desprendido, generoso, altruísta, liberal...

2. QUERER “O BEM”

a) Ensinar e facilitar o amor

O segundo elemento que define o amor, “querer o bem”, parece ser o mais evidente e o que menos problemas levanta, tanto teóricos como práticos: ninguém duvida, em princípio, de que uma mãe ou um pai de família normais queiram o melhor para os seus filhos. No entanto, quando esses pais tentam determinar concretamente o que convém a um filho em determinadas circunstâncias particulares, a questão já se torna mais complicada. Que é realmente o bem para esse filho, aqui e agora? [...]

Por agora, basta apontar dois requisitos concatenados na procura e no oferecimento do autêntico bem:

– Em primeiro lugar, que esse bem seja o bem do beneficiado, e não – através de um autoengano mais ou menos consciente e hoje bastante difundido – o bem do benfeitor. No caso da mãe ou do pai do nosso exemplo, ao darem um presente ou um prêmio ao filho ou à filha, talvez procurem na realidade, mais do que favorecê-los, serem eles deixados em paz, evitar um confronto, poupar desgostos a si mesmos, projetar a sua própria vida na vida dos filhos, ou outras vantagens desse estilo.

– Em segundo lugar, e quase como corolário ou explicitação do item anterior: quando amamos alguém, o que é necessário é que o bem que lhe oferecemos seja um bem real, objetivo; ou seja, algo que o torne melhor, que faça do ser amado uma pessoa mais cabal, mais completa, mais plena e perfeita; algo que o aproxime de uma maneira ou de outra do seu destino final, que é amar os outros e a Deus e ser por eles amado.

Em última e definitiva instância, devemos, pois, procurar que a pessoa que amamos aprenda a amar de maneira mais sincera, profunda, intensa e eficaz, através e por meio das nossas intervenções e dádivas. (E não esqueçamos que entre essas dádivas, ocupa um lugar principal o esforço da nossa inteligência por conhecer essa pessoa a fundo e descobrir o que mais lhe convém.) Estabelece-se assim uma espécie de “círculo virtuoso”, graças ao qual, quando alguém ama de verdade outra pessoa, tem de procurar por todos os meios que esta, por sua vez, saiba amar mais e melhor.

Podemos dizer, portanto, mesmo que à primeira vista possa parecer estranho ou até contraditório, que no fim das contas, amar equivale a ensinar a amar e – acrescento agora – a facilitar o amor, a fazer-nos amar.

Por isso, o melhor modo de o marido amar a esposa (e vice-versa) é ser muitoamável com ela, no sentido mais certeiro e penetrante da palavra: no fim das contas, é facilitar ao cônjuge a tarefa de amar-nos; é tornar-lhe simples e agradável o amor por nós, receber sem entraves o seu carinho, não levantar barreiras que impeçam a sua entrega, os seus definitivos desejos de unir-se a nós.

Por exemplo, à hora da reconciliação depois de uma pequena briga, é não nos enquistarmos na nossa posição, mas sair abertamente ao encontro do outro, tornar-nos acessíveis e bem-dispostos para que volte a depositar em nós o seu afeto, e corresponder com a mesma delicadeza... ou, melhor ainda, adiantarmo-nos nós, pedindo-lhe perdão[5].

O mesmo acontece na convivência diária com os outros membros da família e os restantes amigos e conhecidos. Em todas essas circunstâncias, facilitamos o amor quando nos mostramos francos, próximos e disponíveis. Isto costuma equivaler a estarmos pendentes dos outros ou, o que é quase a mesma coisa, a não nos fazermos ásperos, esquivos, distantes... por estarmos encerrados nos nossos próprios problemas e ocupações ou entrincheirados nos orgulhosos direitos do “eu”: no “meu... enquanto meu”.

De maneira um tanto negativa, e com o dramatismo tão próprio do seu estilo, o poeta Gustavo Bécquer dizia:

Assomava aos seus olhos uma lágrima
e aos meus lábios uma frase de perdão;
falou o orgulho e secou o seu pranto,
e a frase nos meus lábios expirou.
Eu vou por um caminho, ela por outro;
mas, ao pensar no nosso mútuo amor,
ainda digo: “Por que calei naquele dia?”,
e ela dirá: “Por que não chorei eu?”
(Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, XXX)

E de forma mais positiva, com palavras à primeira vista um tanto complicadas, mas muito sugestivas se forem lidas com vagar, o filósofo Jean Guitton afirma: “O que o amor tem de admirável é que o serviço que prestamos a nós mesmos ao amar, também o prestamos ao outro amando-o; mais ainda, prestamo-lo pela segunda vez deixando-nos amar”[6].

b) Abússola de todo o ato educativo

Ser amável – facilitar o amor – como modo sublime e supremo de amar: esta é, sem dúvida, uma conclusão reveladora. E caberia acrescentar-lhe outra não menos relevante, afirmando sem perigo e sem receio de sermos considerados ingênuos que o fim de toda a educação consiste em ensinar a pessoa que formamos a amar, em fazer dela alguém mais enérgica e decididamente interessado no bem dos outros do que no seu próprio.

Por isso, em todas as tarefas educativas ou de orientação familiar ou profissional, à hora de tomarmos ou sugerirmos uma decisão mais ou menos complexa, a pergunta que sempre deveremos fazer-nos como educadores será: “Isto que vou sugerir ou proibir ao meu filho ou ao meu aluno, o modo como pretendo fazê-lo, o grau de liberdade que lhe concederei para divergir da minha opinião ou, pelo menos, manifestar a sua..., tudo isso ajudará essa pessoa a amar mais e melhor os outros, ou, pelo contrário, a levará a encerrar-se em si mesma, no seu «bem» míope e egoísta?”

A resposta a esta pergunta – que nunca poderemos encontrar sem um esforço perspicaz e comprometido de todas as nossas capacidades de conhecimento teórico e sem recorrer à nossa experiência de vida – indicará, praticamente na totalidade das vezes, qual a decisão que deveremos tomar.

Pode acontecer, por exemplo, que uns pais tenham sérias dúvidas sobre se é conveniente ou não enviar a filha adolescente à Inglaterra ou aos Estados Unidos a fim de aperfeiçoar os seus conhecimentos de inglês. Por um lado, há hoje em dia a imperiosa necessidade de conhecer esse idioma; por outro, estão os perigos às vezes notáveis da solidão, da desadaptação e da desorientação que uma estadia fora de casa poderia provocar, sobretudo nessa idade. Mas estes aspectos negativos podem ter por sua vez alguns efeitos positivos, na medida em que contribuam para o amadurecimento da jovem.

Na realidade, porém, a questão decisiva é outra. O essencial é que formulemos a pergunta-chave: na situação anímica e de maturidade em que se encontra a minha filha, a estadia no estrangeiro por um certo tempo poderá ajudá-la a amadurecer, a crescer em capacidade de amar, ou, pelo contrário, poderá introduzir no seu desenvolvimento uma deformação que atrase por muitos anos o seu crescimento como pessoa? Esta é que é a “pergunta do milhão”, e é a ela que os pais devem responder antes de tomarem qualquer decisão a esse respeito; e para isso é preciso que lancem mão de todos os recursos da sua inteligência potenciada pelo carinho, e peçam conselho a pessoas que considerem sensatas e bem informadas sobre o tema.

3. QUERER O BEM DO OUTRO... ENQUANTO OUTRO

É na reduplicação “o outro... enquanto outro” que está a chave do amor genuíno. Com efeito, amar, na sua concepção mais nobre e certeira, é procurar o bem do outro não por mim, mas por ele.

Por ele, isto é, não pelos benefícios mais ou menos materiais que uma amizade – por exemplo – poderia proporcionar-me: desde melhorar as minhas avaliações de desempenho na empresa, até introduzir-me num âmbito social que favoreceria o meu progresso ou me ofereceria a oportunidade de conseguir um bom trabalho para um filho ou um conhecido...

Também não há de ser pela satisfação, pelos efeitos secundários, saborosíssimos, mas muito pouco saboreados hoje em dia, que o relacionamento com os autênticos amigos nos traz. Nem sequer porque é assim e só assim, valorizando a qualidade dos meus amores, que me torno uma pessoa melhor, dou maior consistência às minhas virtudes humanas e me aproximo da perfeição e da felicidade... Nem sequer por isso, embora estes aspectos não devam ser rejeitados: seria inumano; o que não devem é ser propostos como fim expresso e primordial.

Trata-se, pois, de amar o “outro” unicamente pelo “outro”, por ser aquele a quem amamos. E a razão disto é muito clara: porque é pessoa e, só por esse motivo, merecedor de amor. Ou então, se preferirmos – pois vem a dar na mesma –, porque Deus o destinou a manter com Ele um colóquio de afeto apaixonado por toda a eternidade, entregando-lhe, justamente através de um amor recíproco e inteligente, o mais imenso dos bens: Ele mesmo. E quem sou eu para pôr em dúvida os planos do próprio Deus?

Tomás Melendo
Catedrático de Filosofia e Diretor dos Estudos Universitários sobre a Família da Universidade de Málaga (Espanha)

Fonte: “O que significa amar?”, Quadrante, São Paulo, 2006.
Tradução: Henrique Elfes


[1] Julián Marías, La educación sentimental, Alianza Editorial, Madrid, 1992, pág. 26.

[2] São Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, Quadrante, São Paulo, 2000, n. 230.

[3] São Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, n. 231.

[4] No texto que citei, não deveria passar despercebido que o querer querer é qualificado como amor “em linguagem cristã”. Entre as diversas interpretações que se poderiam dar a essas palavras, gostaria de sugerir duas, que não são de forma alguma incompatíveis entre si: a) esse “querer querer” – o autor fala em outras ocasiões de “desejos de ter desejos” – manifesta por um lado a absoluta impotência da criatura, sobretudo depois do pecado original, que por isso chama em sua ajuda o Deus que tudo pode; b) simultaneamente, a elevação à ordem da graça multiplica o vigor e a capacidade de agir que a vontade teria no âmbito natural meramente natural..., mas do modo que lhe é próprio; ou seja, incrementando ou pondo em jogo a sua reflexividade, o “querer querer”.

[5] Permito-me remeter, nesta matéria, a Tomás Melendo, Un seguro de vida para el matrimonio, em Escritos Arvo, ano XXIII, n. 237, set. 2003, e id., San Josemaría Escrivá y la familia, Rialp, Madrid, 2003, págs. 85-95.

[6] Jean Guitton, Ensayo sobre el amor humano, Ed. Sudamericana, Buenos Aires, 1968, pág. 74.