Por que a Igreja continua a canonizar?

Cardeal D. José Saraiva Martins – Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos

1. A santidade canonizada

Entro sem preâmbulos no tema da minha conferência, que coincide com a razão de ser do Dicastério da Santa Sé a que presido e com o serviço à Igreja por ele prestado. Com efeito, o intenso trabalho desenvolvido pela Congregação das Causas dos Santos tem por finalidade colaborar de maneira directa e imediata com o Papa, no procedimento que precede a proclamação de alguns homens e mulheres como Beatos ou como Santos, para os apresentar a todos os fiéis como modelos ou como exemplos que se podem imitar – porque ao longo da sua vida praticaram as virtudes em grau heróico – e como intercessores diante de Deus, autorizando, ao mesmo tempo, o culto público em sua honra.

A canonização é o acto mediante o qual o Papa inclui o nome de um Servo de Deus no catálogo dos Santos. O Romano Pontífice chega a essa decisão depois de ter escutado não uma voz, que em linguagem musical poderíamos chamar um solo, mas um coro de vozes: a) a voz do povo de Deus – do conjunto dos crentes –, que atribui fama de santidade ou de martírio a esse candidato aos altares; b) a voz das provas, recolhidas num processo judicial, que demonstram o seu heroísmo na prática das virtudes ou a sua aceitação do martírio pela fé; e: c) a voz de Deus, que dá o seu assentimento à canonização mediante um milagre realizado por intercessão do seu Servo.

A natureza da canonização está expressa na fórmula utilizada pelo Papa ao proclamar um novo Santo. A fórmula é:

«Para tributar honra à Santíssima Trindade, para exaltação da fé católica e incremento da vida cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, e com a Nossa autoridade, depois de ter meditado detidamente, de ter invocado repetidamente a ajuda divina e de ter escutado o parecer de muitos Irmãos nossos no Episcopado, declaramos e definimos Santo o Beato N., incluímos o seu nome no Catálogo dos Santos e prescrevemos que em toda a Igreja seja honrado como Santo».

A fórmula que acabo de ler põe de manifesto dois aspectos que constituem parte integrante da canonização de um Santo. As palavras “declaramos e definimos Santo o Beato N. e incluímos o seu nome no Catálogo dos Santos” referem-se a um acto do poder de Magistério do Papa; por sua vez, a frase “prescrevemos que em toda a Igreja seja honrado como Santo” estabelece de maneira preceptiva que lhe seja tributado culto público com carácter universal.

1.1 Os Santos Canonizados

Quantos são os Santos canonizados? Relativamente ao passado, desde que em 1588 foi instituída a Congregação das Causas dos Santos (antes chamada dos Ritos) até ao começo do pontificado de João Paulo II, os Santos eram 296 e os Beatos 808. Ao longo do seu Pontificado, João Paulo II canonizou 459 Santos, dos quais 400 são mártires e 59 confessores; e está previsto que a estes se acrescentem outros 9 no presente ano; proclamou, também, 1274 Beatos (1.019 mártires e 255 confessores). Além disso, outorgou a Santa Teresa do Menino Jesus o título de Doutora da Igreja e, como Padroeiros da Europa, colocou, ao lado de S. Bento, os Santos Cirilo e Metódio e as Santas Brígida, Catarina de Sena, e Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein).

Os dados expostos sugerem espontaneamente uma reflexão e algumas perguntas.

Em nenhuma época faltaram os santos, que constituem uma multidão inumerável, cuja comemoração celebramos na solenidade de Todos os Santos.

Antes de mais, uma reflexão: se o número dos cristãos que viveram santamente se reduzisse aos que foram canonizados ou proclamados Beatos, seríamos obrigados a reconhecer o fracasso total da Igreja no cumprimento da sua missão. Felizmente não é assim, posto que em nenhuma época faltaram os santos, que constituem uma multidão inumerável, cuja comemoração celebramos na solenidade de Todos os Santos. Na Igreja una e única, aqueles que peregrinamos nesta terra sabemo-nos unidos vitalmente com aqueles nossos irmãos falecidos no Senhor, que alcançaram já a glória eterna ou, purificando-se aguardam a sua entrada no Céu. Sentimo-nos em comunhão com eles e, como lemos no Capítulo VII da Constituição Lumen Gentium, «os bem-aventurados, estando mais intimamente unidos com Cristo, consolidam mais firmemente a Igreja na santidade, enobrecem o culto que ela presta a Deus terra e contribuem de muitas maneiras para a sua mais ampla edificação» (n. 49).

1.2 Finalidade da beatificação e da canonização

O que disse antes leva, em primeiro lugar, a reflectir sobre uma questão geral: qual é a finalidade que a Igreja pretende atingir quando, a alguns dos seus fiéis, os declara Santos ou Beatos? Além disso, o elevado número de canonizações e de beatificações ocorridas durante o pontificado de João Paulo II levanta algumas interrogações: será que temos de atribuir um significado e uma função particular às canonizações na pastoral da Igreja nestes alvores do milénio em que acabámos de entrar? Porque quis o Papa actual intensificar o ritmo destas cerimónias, ao ponto de superar – ou melhor: muito mais que duplicar – o número dos Santos e dos Beatos proclamados por todos os seus predecessores desde que foi fundada a Congregação das Causas dos Santos? Será que estes números são excessivos?

Acabo de enunciar várias questões, e procurarei analisar por ordem cada uma delas.

Qual é a finalidade de uma canonização? Encontramos a resposta adequada na fórmula, que citei há pouco, empregue pelo Papa para proclamar um Santo. Com efeito, lemos aí o seguinte: «Para tributar honra à Santíssima Trindade, para exaltação da fé católica e incremento da vida cristâ...».

Estas breves palavras expressam de maneira completa o sentido de cada canonização. Toda a criação e, dentro dela, de maneira eminente, o homem, está orientado para dar glória a Deus. Como diz de forma lapidar S. Ireneu, «a glória de Deus é o homem vivo», mas – podemos acrescentar a modo de glosa – o homem dá glória a Deus não somente porque vive, mas também, e sobretudo, porque torna realidade na sua existência o projecto que o Senhor traçou para ele. Por isso, na vida da Igreja, desde os começos, aparece como nota constante o reconhecimento público da santidade dos mártires ou daqueles que praticaram as virtudes de maneira heróica e têm essa fama entre os fiéis. Ao proclamá-los Beatos, e mais tarde Santos, a Igreja eleva a sua acção de graças a Deus, ao mesmo tempo que honra esses seus filhos que souberam corresponder generosamente à graça divina e os propõe como intercessores e como exemplo da santidade a que todos estamos chamados. As beatificações e as canonizações têm sempre como finalidade a glória de Deus e o bem das almas.

1.3. As canonizações na pastoral de João Paulo II

Na Carta Apostólica em que traça o programa para o novo milénio, o Papa descreve as prioridades da «entusiasmante obra de relançamento pastoral» que aguarda a Igreja no momento presente, que são precedidas da seguinte consideração:

«Em primeiro lugar, não hesito em dizer que o horizonte para que deve tender todo o caminho pastoral é a santidade. [...] É preciso redescobrir, em todo o seu valor programático, o capítulo V da Constituição dogmática Lumen Gentium, intitulado “vocação universal à santidade”. Se os padres conciliares deram tanto relevo a esta temática, não foi para conferir um toque de espiritualidade à eclesiologia, mas para fazer sobressair a sua dinâmica intrínseca e qualificativa. [...] “Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação” (1 Ts 4, 3). É um compromisso que diz respeito não apenas a alguns, mas “os cristãos de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (Const. Lumen Gentium, n. 40)» .

O Santo Padre fornece, assim, a chave para compreender o papel que, no seu plano pastoral, desempenham as beatificações e as canonizações. Ele mesmo nos diz:

«Os caminhos da santidade são variados e apropriados à vocação de cada um. Agradeço ao Senhor por me ter concedido, nestes anos, beatificar e canonizar muitos cristãos, entre os quais numerosos leigos que se santificaram nas condições ordinárias da vida. É hora de propor de novo a todos, com convicção, esta “medida alta” da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nesta direcção» (n. 31).

Ainda o Papa, pondo de manifesto a importância de canonizar leigos, escreveu na Exortação Apostólica Christifideles laici:

«É natural recordar aqui a solene proclamação de fiéis leigos, homens e mulheres, como Beatos e Santos feita durante o mês do Sínodo [que teve lugar no dia 4 de Outubro de 1987]. Todo o Povo de Deus, e os fiéis leigos em particular, podem ter agora novos modelos de santidade e novos testemunhos de virtudes heróicas vividos nas condições comuns e ordinárias da existência humana. Como disseram os Padres sinodais: “As Igrejas locais e, sobretudo, as chamadas Igrejas mais jovens deverão procurar diligentemente entre os próprios membros aqueles homens e mulheres que prestaram nessas condições (as condições quotidianas do mundo e o estado conjugal) o testemunho da santidade e que podem servir de exemplo aos demais, a fim de, se for o caso, os proporem para a beatificação e canonização”» (Exort. Ap. pós-sinodal Christifideles laici, 30-XII-1988, n. 17).

1.4 O número actual de canonizações

Poderíamos continuar sem nos determos mais, mas vale a pena escutar a voz do Papa, que responde directamente a quem pergunta se não terá aumentado em demasia o número das beatificações e canonizações.

«Diz-se, por vezes, – escreve o Santo Padre – que hoje há muitas beatificações. Mas isto, além de manifestar a realidade, que por graça de Deus é aquela que é, corresponde também ao desejo expresso do Concílio Vaticano II. O Evangelho difundiu-se de tal modo no mundo e a sua mensagem lançou tão profundas raízes, que precisamente o grande número de beatificações revela de maneira viva a acção do Espírito Santo e a vitalidade d’Ele promana no campo mais essencial para a Igreja, o da santidade».

E, no âmbito da preparação pastoral de toda a Igreja para a entrada no Terceiro Milénio, João Paulo II afirmou:

«Nestes anos, foram-se multiplicando as canonizações e as beatificações. Elas manifestam a vivacidade das Igrejas locais, muito mais numerosas hoje que nos primeiros séculos e no primeiro milénio. A maior homenagem que todas as Igrejas prestarão a Cristo no limiar do terceiro milénio, será a demonstração da presença omnipotente do Redentor, mediante os frutos de fé, esperança e de caridade em homens e mulheres de tantas línguas e raças, que seguiram Cristo nas várias formas da vocação cristã».

É também notória a insistência com que o Papa sublinhou a importância, para a Igreja, dos mártires do sec. XX:

«No final do segundo milénio, a Igreja tornou-se novamente Igreja de mártires. As perseguições contra os crentes – sacerdotes, religiosos e leigos – realizaram uma grande sementeira de mártires em várias partes do mundo. [...].

É um testemunho que não pode se pode esquecer. A Igreja dos primeiros séculos, apesar de encontrar notáveis dificuldades organizativas, esforçou-se por fixar em particulares martirológios o testemunho dos mártires. [...].

No nosso século voltaram os mártires, muitas vezes desconhecidos, como que “militi ignoti” da grande causa de Deus. Tanto quanto seja possível, não se devem deixar perder na Igreja os seus testemunhos. Como foi sugerido no Consistório [de 13 de Junho de 1994], impõe-se que as Igrejas locais tudo façam para não deixar perecer a memória daqueles que sofreram o martírio, recolhendo a necessária documentação. Isto não poderá deixar de ter uma dimensão e uma eloquência ecuménicas. O ecumenismo dos santos, dos mártires, é talvez o mais persuasivo. A communio sanctorum fala com voz mais alta que os factores de divisão. O martyrologium dos primeiros séculos constituiu a base do culto dos Santos. Proclamando e venerando a santidade dos seus filhos e filhas, a Igreja prestava a suprema honra ao próprio Deus; nos mártires venerava Cristo, que estava na origem do seu martírio e santidade» (1).

Nos ensinamentos de João Paulo II são muitas as referências ao papel que o testemunho dos mártires desempenha não apenas na vida de cada um dos fiéis e da comunidade eclesial, mas também naquelas questões pastorais de envergadura que constituem também um objecto preferencial da solicitude do Papa, como são a nova evangelização da Europa, a união entre o Oriente e o Ocidente e entre todos os cristãos, ou a recuperação da fisionomia cristã por parte das nações submetidas ao comunismo durante muitos anos.

2. A santidade

2.1. A santidade como identificação com Jesus Cristo

Chegou o momento de entrar no ponto central da questão que nos ocupa. O que é a santidade? A santidade refere-se necessariamente à meta última a que deve dirigir-se a pessoa humana.

De maneira mais ou menos explícita, todo o homem coloca a si mesmo questões que se poderiam formular assim: quem sou?; qual é o sentido da minha existência nesta terra?; que hei-de fazer para saciar os desejos que abrigo no meu coração?.

Com a luz da razão natural e da fé compreendemos que Deus criou o mundo para manifestar a sua glória. O Concílio Vaticano I afirma: «na sua bondade e pela sua força omnipotente, não para aumentar a sua felicidade nem para adquirir a sua perfeição, mas para a manifestar pelos bens que concede às suas criaturas, este único Deus verdadeiro, no seu mais livre desígnio, criou do nada simultaneamente e desde o princípio do tempo uma e outra criatura – a espiritual e a corporal».

Pelo simples facto de existir, a criação proclama a glória de Deus: «narram os céus a glória de Deus e o firmamento apregoa as obras das suas mãos». Deus, no entanto, quis dotar o homem de alma espiritual, elevou-o à ordem sobrenatural e, depois da queda, redimiu-o mediante a morte na Cruz do Verbo encarnado, tornando-o filho de Deus pelo baptismo e partícipe da natureza divina. «A razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com Deus» (Cfr. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et Spes, n. 19/1).

«A pessoa humana é “a única criatura sobre a Terra querida por Deus por si mesma” (Ibid. n. 24/3). Desde que é concebida, é destinada para a bem-aventurança eterna» (Catecismo da Igreja Católica, n. 1703), que alcançará a sua plena realização na vida futura: «Em última instância, o que Deus quis ao criar os seres espirituais é que estes alcancem a sua própria plenitude não passivamente, mas como participantes da obra divina. É particularmente importante entender que este plano divino é intrínseco ao acto criador e, portanto, faz parte do núcleo mais íntimo de cada pessoa: pode dizer-se, pois, que o ser humano exige um comportamento moral e que o agir do homem não é outra coisa que um desenvolvimento do seu próprio ser, de maneira que existe uma relação íntima e inseparável entre a pessoa humana, a perfeição que há-de alcançar e o acto humano ou moral».

Alcançar esta plenitude é o fim último e o princípio unificador de toda a existência humana. Expressa-o S. Agostinho com palavras que se tornaram célebres: «Fizeste-nos Senhor para ti, e o meu coração está inquieto enquanto não descansar em ti» (S. Agostinho, Confesiones, I, 1). Esta aspiração ao bem absoluto, que compreende todo o ser e todo o agir do homem «torna-se vida no cristão como aspiração à santidade, entendida como plenitude da filiação divina, que se faz real nesta terra pelo seguimento e imitação de Jesus Cristo».

Compreende-se assim a profundidade do texto da Constituição pastoral Gaudium et Spes onde lemos que só Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe dá a conhecer a sua vocação altíssima.

É oportuno recordar aqui as palavras de S. Paulo aos Efésios: Deus Pai escolheu-nos «n’Ele [em Cristo], antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados a seus olhos, pelo amor; predestinou-nos para sermos Seus filhos adoptivos por meio de Jesus Cristo, por Sua livre vontade».

A santidade consiste essencialmente numa plena e total identificação com Cristo. Ao expressar-nos assim não fazemos senão retomar um capítulo fundamental da teologia paulina. Referindo-se à relação íntima e vital de Jesus Cristo com aqueles que foram regenerados pelas águas do baptismo, S. Paulo afirma, sobre si mesmo, de maneira clara e taxativa: «já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim», palavras que podem igualmente aplicar-se a todo o baptizado.

Pelo baptismo, o cristão é constituído filho de Deus em Jesus Cristo, seu Filho Unigénito, isto é, filho no Filho, como se expressa João Paulo II. Podemos dizer, com S. Clemente Romano, que «Deus escolheu o Senhor Jesus Cristo, e a nós com Ele». Assim, portanto, é santo – ou, melhor, tende à santidade – quem procura a todo o momento ajustar-se fielmente ao projecto que Deus estabeleceu para ele e, na sua conduta, responde com generosidade aos impulsos da graça, abandonando-se filialmente nas mãos de Deus Pai até chegar a tornar-se não já alter Christus, mas – com expressão audaz e, ao mesmo tempo, precisa, frequente no ensinamento do Beato Josemaria Escrivá – ipse Christus. Na Encíclica sobre o Espírito Santo, o Papa sintetiza assim este itinerário, a que todo o cristão está chamado: «Ao Pai – no Filho – por meio do Espírito Santo».

2.2. A santidade na vida corrente

Tivemos ocasião de verificar a insistência do Santo Padre sobre a vida corrente como meio e ocasião de procurar a santidade (cfr. supra, 1.3). Parece-me oportuno insistir neste ponto, porque considero que é o núcleo do desafio pastoral apaixonante que hoje a Igreja deve enfrentar, como sublinha João Paulo II.

Com efeito, a santidade traz consigo o exercício das virtudes em grau heróico, mas: que significa, concretamente, tal heroísmo?

Se recorrermos ao dicionário, vemos que a sua descrição de um herói vale para aquelas pessoas, diferentes do comum dos mortais, que são um pouco menos que deuses, ilustres e famosos pelas suas façanhas ou por realizar um acto heróico; a figura do herói aparece também como o protagonista de um poema épico ou de uma epopeia. Em suma, tudo o que se encontra no extremo oposto de uma vida corrente.

É preciso afirmar, que a santidade exige o heroísmo; mas, ao mesmo tempo, é necessário afastar decididamente da imaginação tudo o que queira fazer dela um conjunto de factos extraordinários.

É preciso afirmar, sem meias tintas, que a santidade, a que não há ninguém que não esteja chamado, exige o heroísmo; mas, ao mesmo tempo, é necessário afastar decididamente da imaginação tudo o que queira fazer dela um conjunto de factos extraordinários. Na apresentação de um livro, e num comentário ao pensamento do Beato Josemaría Escrivá, dias atrás, o Card. Joseph Ratzinger fez notar que a grande tentação do nosso tempo está em olhar a vida pessoal como se, depois do “big bang” da criação, Deus se tivesse “afastado” do mundo e não tivesse nada a ver com a nossa existência diária. Ante esta visão deformada, o Cardeal convida a descobrir que Deus actua continuamente e que a santidade não consiste em gastar a vida fazendo acrobacias (o clássico “e agora, ainda mais difícil” do circo), mas em viver dentro da mais absoluta normalidade – mais ainda, santificando essa normalidade – sem ser, e sem se considerar, superior aos outros, deixando que Deus actue em nós e falando com Ele como com um amigo. Precisamente por isso, para o Card. Raztinger o uso da expressão “virtude heróica” merece reparos, reservas compreensíveis, desde logo, se por heroísmo se tivesse de entender à luz das acepções que o dicionário recolhe e que reflectem uma mentalidade muito estendida.

O desafio pastoral exige uma pedagogia que leve a descobrir a vida corrente como lugar em que se torna realidade o chamamento universal à santidade e ao apostolado. É necessário aprofundar no significado dos trinta anos que Jesus Cristo, o Verbo encarnado, quis viver em Nazaré, conhecido por todos como o artesão que ganhava o seu sustento com o trabalho das suas mãos, sendo um cidadão entre os seus concidadãos.

Não encerrar esta parte sem mencionar o desejo expresso pelo Santo Padre, na sua Carta Apostólica de preparação para o Jubileu do Terceiro Milénio, de ampliar o catálogo dos Santos com os nomes de irmãs e irmãos nossos que tenham santificado a sua vida corrente e se tenham santificado nela: «de maneira especial – lemos esta passagem – haverá que diligenciar o reconhecimento da heroicidade das virtudes de homens e mulheres que realizaram a sua vocação cristã no Matrimónio: convictos, como estamos, de que também em tal estado, não faltam frutos de santidade, sentimos a necessidade de encontrar os caminhos mais oportunos para os verificar e propor a toda a Igreja como modelo e estímulo dos outros esposos cristãos».

São muito claras estas palavras, com que o Santo Padre expressava o seu desejo de canonizar homens e mulheres que tivessem realizada a sua vocação cristã no matrimónio. O desejo cumpriu-se uma vez mais no dia 21 de Outubro de 2001, data em que João Paulo II proclamou Beatos Luigi e Maria Beltrane Quattrocchi, elevando aos altares, pela primeira vez na história da Igreja, juntamente marido e mulher, tendo em conta as virtudes que exercitaram na vida conjugal e familiar.

Põe-se, assim, de manifesto, uma vez mais, que a vida matrimonial é uma verdadeira vocação para aqueles – e são a maioria – que Deus chama a constituir uma família e a santificar-se nela e através dela.

Não podemos esquecer que toda a vocação é sinal de amor pessoal por parte do Senhor, Pai de misericórdia. É obra de artesanato, não de produção em série: a vocação, pois, no seu ser concreto, recebe um toque pessoal, tem em conta as circunstâncias de cada um e de cada uma, leva consigo a graça para viver em plenitude de santidade todos e cada um dos instantes da existência nesta terra. Mais ainda, a família vivifica-se com uma fonte de graça peculiar: o sacramento do matrimónio, cujo efeito não se extingue com a celebração do casamento; estende-se a toda a vida dos cônjuges. Como é importante, por isso, é a reunião da família, para partilhar as alegrias e as dificuldades! Para muitos cristãos, a parte mais importante do seu dia começa quando regressam a casa, tantas vezes fatigados pelo trabalho.

3. Os Santos como exemplo

No Capítulo V da Lumen Gentium lemos a seguinte reflexão: «com efeito, a vida daqueles que fielmente seguiram a Cristo, é um novo motivo que nos entusiasma a buscar a cidade futura e, ao mesmo tempo, nos ensina um caminho seguro, pelo qual, por entre as efémeras realidades deste mundo e segundo o estado e a condição próprios de cada um, podemos chegar à união perfeita com Cristo, na qual consiste a santidade».

Somente Jesus Cristo é o modelo, e é também único porque não está fora de nós, mas em nós, pela acção do Espírito Santo. Os Santos não são modelos em sentido próprio, mas cópias ou reproduções, mais ou menos perfeitas mas sempre incompletas do Modelo que é Jesus Cristo. No entanto, a sua vida mostra-nos um exemplo de como se tornou realidade, nas suas circunstâncias concretas, a identificação com Jesus Cristo, até chegarem a ser alter Christus, ipse Christus, que é a substância e a meta de toda a santidade.

«A verdadeira história da humanidade – ensina o Papa – é constituída pela história da santidade [...]: os santos e os beatos apresentam-se todos como “testemunhas”, isto é, como pessoas que, confessando Cristo, a sua pessoa e a sua doutrina, têm dado uma consistência concreta e uma expressão crível a uma das características essenciais da Igreja, que é precisamente a santidade. Sem este testemunho contínuo, a própria doutrina religiosa e moral pregada pela Igreja, correria o risco de ser confundida com uma ideologia puramente humana. Ela, pelo contrário, é doutrina de vida, ou seja, é aplicável e levada à vida: doutrina “vivível” a exemplo de Jesus mesmo, o qual proclama “Eu sou a vida” (Jo. 14, 8) e afirma ter vindo para dar esta vida e dá-la em abundância (cfr. Jo. 10, 10). A santidade, não como ideal teórico, mas como caminho a percorrer no seguimento fiel de Cristo, é uma exigência particularmente urgente no nosso tempo. Hoje as pessoas confiam pouco nas afirmações verbais e nas declarações enfáticas, mas querem factos, portanto observam com interesse, com atenção e também com admiração as testemunhas. Poder-se-ia dizer, até, que a desejada mediação entre a Igreja e o mundo moderno, para ter verdadeiramente bom êxito, exige testemunhas que saibam transmitir a verdade perene do Evangelho com a própria existência e que, ao mesmo tempo, a tornem instrumento de salvação para os próprios irmãos e irmãs».

Comprovamos uma vez mais a actualidade das palavras pronunciadas por Paulo VI há quase trinta nos: «o homem contemporâneo ouve com maior boa vontade as testemunhas do que os mestres; ou, se ouve os mestres, é porque estes dão testemunho».

Os Santos são-nos propostos como exemplo para a nossa vida. No entanto, devemos advertir que, durante séculos, prevaleceu na hagiografia um género literário que tende a deixar de lado a sua resposta quotidiana aos impulsos da graça e exalta as suas gestas heróicas rodeadas de um halo lendário, mas apropriadas para suscitar admiração do que o desejo de as imitar, ou põe em primeiro plano fenómenos místicos afastados do plano em que se encontra o comum mortal e da vida corrente a que nos referimos há pouco. Que podemos, ou devemos, aprender de tantas de vigília, ou dos jejuns e penitências exorbitantes, dos milagres que lhes são atribuídos quando ainda se contavam entre nós, ou das aparições e revelações descritas com prolixidade? Sem negar que a acção da graça pode levar uma alma pelo caminho que acabo de descrever, temos de precisar que essas almas não se santificaram mediante actos heróicos, tão gritantes com esporádicos, mas pela fidelidade com que souberam ser heróicos esforçando-se por fazer a vontade de Deus no cumprimento dos deveres correntes de cada dia. Se não fosse assim, se a sua vida se tivesse reduzido a actos isolados fora do comum, seguramente não seriam santos e, menos ainda, poderiam ser propostos como exemplo digno de ser imitado.

O que foi exposto até aqui coloca-nos ante uma pergunta que deixamos de lado até agora: com que critério se escolhem os candidatos à canonização? Podemos responder que são propostos para ser canonizados aqueles que constituem uma figura particularmente significativa, porque são conhecidos dentro de um sector amplo do povo de Deus e têm uma verdadeira fama de santidade, de maneira que os fiéis recorrem a eles como intercessores diante do Senhor. É claro que se se nos são propostos como exemplo – ou, se preferimos, como modelo, com as observações anteriormente expostas –, não é para que imitemos a sua vida ponto por ponto, pois somente Cristo é o modelo que havemos de imitar sempre até fazer nossos os seus sentimentos, mas para que transportemos para as circunstâncias da nossa situação e da nossa vida diária a sua resposta radical e total à vontade de Deus.

4. Os Santos como intercessores

Também no Capítulo VII da Lumen Gentium, que foi o nosso ponto de partida nas reflexões expostas até aqui, recolhe-se o ensinamento do Concílio Tridentino, para recordar que é razoável que dirijamos aos santos «as nossas súplicas e recorramos às suas orações, ajuda e patrocínio, para obter de Deus os benefícios, por seu Filho Jesus Cristo, Nosso Senhor e Redentor e Salvador único».

Na unidade do Corpo Místico de Cristo, esta intercessão refere-se sobretudo ao que é fim principal da Igreja: a santificação dos seus membros. Se a santidade implica necessariamente procurar o bem dos outros, é lógico que permaneça sempre e se exercite sem cessar a caridade daqueles que, por gozar da glória eterna e estar perto de Deus, continuam a amar os seus irmãos, mais ainda do que quando se encontravam nesta terra. É natural, portanto, recorrer à intercessão dos Santos para pedir aquilo que importa acima de tudo: a graça de cumprir generosamente a vontade de Deus e encaminhar-se assim para a santidade. E é ainda lógico que eles mostrem interesse, antes de mais, por esta santidade, sem a qual tudo o mais não tem sentido.

No entanto, isto não obsta a que a intercessão dos Santos obtenha de Deus outros benefícios, também de carácter material. O sensus fidei e a experiência quotidiana de muitos fiéis certificam estes favores, fruto da sobreabundância da caridade dos Santos, cuja proximidade de Deus não os afasta de uma autêntica humanidade, antes a faz aumentar.

* * * * *

No contexto do Simpósio sobre Os Santos do século XX, testemunhas do século XXI, os organizadores tinham-me proposto, e eu aceitei com satisfação, fazer uma conferência que tivesse por título Por que razão a Igreja continua a canonizar. Considero ter respondido às perguntas implícitas nesse título. Com efeito, expus as razões perenes pelas quais, desde os começos, a Igreja considera parte da sua fé e da sua identidade a veneração dos Santos. Comentei as palavras com que João Paulo II explica porquê, durante o seu pontificado, não só seguiu a linha dos seus predecessores como aumentou de maneira expressiva o número de canonizações e beatificações: não se trata de um facto acidental, mas de uma opção plenamente consciente que faz parte do programa de santidade e de evangelização que o Santo Padre propõe a toda a Igreja. Num ambiente que, apesar de não faltarem exemplos de santidade, se apresenta com frequência céptico, impregnado de materialismo e encerrado no estreito horizonte de uma procura incessante de bem estar e de um hedonismo sem freio, a reacção da Igreja inclui um empenho redobrado no recurso à intercessão dos Santos e a proposta do seu exemplo como inspiração para a resposta de todos os fiéis a essa urgência de santidade que hoje se experimenta de maneira tão evidente.

Já a concluir, é oportuno regressar ao nosso ponto de partida: a santidade é identificação com Cristo, plenitude da filiação divina, até chegar a ser não só alter Christus, mas ipse Christus, de maneira que a vida inteira, a vida corrente de cada um, se oriente para o Pai pelo Espírito Santo. Jesus Cristo é a Cabeça do Corpo Místico, compacto e sempre unido, de que formam parte aqueles que já chegaram ao Céu ou se purificam para entrar na Glória ou ainda peregrinam sobre a terra. Nesta maravilhosa comunhão dos santos e comunicação de bens torna-se realidade a santidade de cada um dos seus membros.

A Rainha dos Santos, que está nos lábios e no coração de tantas e de tantos nesta Terra de Maria Santíssima, encherá de eficácia o desejo de todos em colaborar, como instrumentos do Senhor, na realização desta tarefa que se manifesta cada dia mais urgente.

Sevilha, 8 de Abril de 2002

(1) João Paulo II, Carta Ap. Tertio millenio adveniente, 10-XI-1994, n. 37. Afirmou também o Papa: «Como testemunha de Jesus Cristo crucificado e ressuscitado, a Igreja não pode esquecer que, durante o nosso século, no Continente europeu maturou uma particular messe de martírio, talvez a maior depois dos primeiros séculos do Cristianismo. Sabemos que a Igreja nasce da colheita desta messe evangélica: sanguis martyrum semen christianorum (cfr. Tertuliano, Apologet., 50: PL 1, 535). Expressão desta convicção são os antigos martirológios. Não deveríamos nós, Pastores do século vinte, acrescentar aos antigos martirológios um capítulo contemporâneo ou, antes, muitos capítulos? Muitos, porque dizem respeito a diversas Igrejas, em diversos países» (Discurso de 1-XII-1992 por ocasião do encontro pós-sinodal dos Presidentes das Conferências episcopais europeias no primeiro aniversário da Assembleia Especial para a Europa do Sínodo dos Bispos).