O Santo das Causas Ordinárias

"No caso de Josemaría Escrivá, sua canonização significa, fundamentalmente, a confirmação de que a santidade pode e deve ser alcançada, por qualquer cristão leigo que vive no meio do mundo, através das suas ocupações e deveres profissionais, familiares, sociais, desenvolvidas no dia a dia".

No próximo dia 6 de outubro, o Papa João Paulo II presidirá na Praça de São Pedro, à cerimônia de canonização de Josemaría Escrivá, nascido há cem anos em Barbasto, Espanha e falecido em Roma no dia 26 de junho de 1975. São Josemaría Escrivá - como passará a ser chamado - é mundialmente conhecido por ser o fundador do Opus Dei, obra apostólica surgida em Madrid no ano de 1928 e hoje difundida em países dos cinco continentes.

O processo de canonização de Monsenhor Escrivá começou há mais de vinte anos quando se postulou a sua causa na Congregação para a Causa dos Santos. Decretado Venerável em 1990 - ou seja, constatando-se que viveu as virtudes em grau heróico - e beatificado em 1992, sua canonização ou elevação aos altares de toda a Igreja foi decidida depois do reconhecimento de um milagre atribuído à sua intercessão no caso de uma cura inexplicável pela ciência de um médico radiologista que padecia de um tipo de câncer dermatológico considerado incurável.

O milagre, última etapa do processo de canonização, apresenta-se como uma espécie de atestado sobrenatural de um veredicto ditado primeiro pelos fiéis e depois pelos especialistas da Igreja e por fim ratificado pela sua autoridade máxima que é o Papa. Entretanto, mais do que reconhecer sua capacidade de realizar milagres , ou melhor, sua eficácia intercessora , a canonização de um fiel católico significa o reconhecimento de sua vida como exemplo de luta por realizar os desígnios de Deus a seu respeito e, ao mesmo tempo, como um modelo a ser seguido e ensinado. Neste sentido, a canonização, além de oficializar a santidade de alguém, canoniza, pode-se dizer, um determinado caminho de santificação , ou seja, revela um meio, uma maneira concreta de santificação. Assim, por exemplo, a canonização de São Camilo de Lellis, pode ser vista como a ratificação de um caminho específico de santificação que é o da dedicação aos enfermos e a de Santa Teresa de Ávila, por outro lado, como o da santificação através da contemplação e do silêncio no claustro.

No caso de Josemaría Escrivá, sua canonização significa, fundamentalmente, a confirmação de que a santidade pode e deve ser alcançada, por qualquer cristão leigo que vive no meio do mundo, através das suas ocupações e deveres profissionais, familiares, sociais, desenvolvidas no dia a dia. Esta foi a mensagem que ele deixou; este foi o caminho que se revelou através dele; este foi o seu caminho, a sua vida.

Nascido no seio de uma família normal de classe média, numa cidadezinha aragonesa de princípios do século passado, Josemaría levou também uma vida normal, com as alegrias e percalços próprios de um rapaz do seu tempo.

Vítimas de um revés econômico de certa magnitude - aliás, bastante comuns tanto ontem como hoje entre as famílias que lutam por "sair adiante" - os Escrivá viram-se obrigados a deixar a cidade natal para tentar a sorte em outra localidade, Logronho, também na região de Rioja. Foi ali, em meio às dificuldades, alegrias e descobertas da adolescência que Josemaría sentiu-se chamado por Deus a realizar algo que então e até vários anos depois não podia ver nem saber o que era.

Contrariando seus sonhos e desejos iniciais e, de certa forma, surpreendendo seu pai, que nele colocava justas esperanças econômicas e profissionais, Josemaría, levado pela certeza desta chamada incerta mas efetiva, decidiu fazer-se sacerdote. Achava que desta forma estaria mais bem preparado para realizar aquilo que Deus lhe pedia e que ainda não sabia bem o que era.

Depois de um curto período no seminário de Logronho, Josemaría se mudou para Saragoça, onde completou sua formação e foi ordenado em 28 de março de 1925. Poucos dias antes, seu pai, José Escrivá falecera, deixando totalmente desamparados a sua mãe, Dolores e os seus dois irmãos, Carmen e Santiago - este ainda criança -.

Percebendo que suas receitas como sacerdote não seriam suficientes para manter a família, Josemaría mudou-se para Madrid, a fim de terminar sua carreira civil, em direito, que havia iniciado na Universidade de Saragoça, e fazer um doutorado em leis, com o propósito de dar aulas e assim assegurar o sustento familiar.

Sempre conciliando a vida sacerdotal, o trabalho pastoral, os estudos e as atividades docentes, Josemaría transcorria seus dias em Madrid ainda à espera da revelação daquele algo que Deus lhe estava para pedir e que ele acreditava que mais cedo ou mais tarde veria.

Finalmente, na manhã do dia 2 de outubro de 1928, festa dos Santos Anjos, enquanto revia algumas anotações pessoais de tom espiritual que havia acumulado ao longo dos últimos anos, numa cela de um convento dos padres de São Vicente de Paulo, onde fazia alguns dias de retiro, Deus se dignou revelar aquele algo que Josemaría há tanto tempo pressentia mas que até então não sabia do que se tratava. Neste dia, como ele mesmo sempre fez questão de frisar, Josemaría viu. Viu o que Deus lhe estava pedindo: uma fundação, uma obra de caráter apostólico, dirigida fundamentalmente aos leigos, às pessoas comuns de todas as condições sociais, de todas as raças, nacionalidades e idades, destinada a difundir a boa nova - tão nova e tão velha quanto o Evangelho - de que todas estas pessoas estavam chamadas a serem santas, a se santificarem através das suas ocupações profissionais, familiares e sociais, sem necessidade de mudarem de estado ou condição de vida. Era a renovação da chamada universal à santidade.

Sem dúvida, a mensagem nada tinha de original, pois a vocação universal à santidade faz parte do conteúdo original do cristianismo, desde as pregações de Jesus Cristo, passando pelas de São Paulo e dos Padres da Igreja. O que se apresenta como novidade, entretanto, é a maneira como esta verdade é agora apresentada, na forma de uma iniciativa apostólica concreta, a Obra, e nas indicações precisas de como tal realidade pode ser atingida através de procedimentos concretos dirigidos e adaptados às pessoas concretas do nosso tempo: homens e mulheres, jovens ou velhos, casados ou solteiros, profissionais ou estudantes, empregados ou desempregados, ricos ou pobres, cultos ou ignorantes.

O Opus Dei, como mais tarde foi batizada esta Obra que Josemaría viu naquele 2 de outubro de 1928, era, portanto o instrumento desenhado por Deus e mostrado a Josemaría para propagar um caminho de santificação no meio do mundo, destinado a todas as classes de pessoas que, no desempenho de suas atividades familiares, profissionais, sociais, e através delas, se sintam chamados a seguir a Jesus Cristo, sem ter de, por isso, mudar de estado ou profissão.

Anos mais tarde, esta mensagem fundamental do cristianismo seria proposta a todo Povo de Deus através do Concílio Vaticano II, que, na explicitação da chamada universal à santidade, apontam o trabalho profissional e o cumprimento dos deveres de estado como caminho natural de santificação do fiel leigo e secular. A canonização de Josemaría Escrivá significa, neste contexto, o coroamento deste processo de reconhecimento do caminho de santificação através da vida ordinária. Sua canonização confirma e demonstra a real possibilidade de que todos podemos nos santificar no lugar e condição em que nos encontramos, fazendo com plenitude de amor cristão aquilo nos cabe fazer, realizando nossos deveres, exercitando nossos direitos, sem precisar fazer coisas extraordinárias. E isto está garantido não apenas pelo que disse ou pregou, mas, fundamentalmente, pelo que ele viveu, pois, tal como a grande maioria dos fiéis cristãos e como a grande maioria das pessoas neste mundo, Josemaría Escrivá viveu uma vida absolutamente ordinária, dedicada ao seu trabalho que, depois de 1928, consistiu fundamentalmente, em difundir e governar o Opus Dei. Um trabalho difícil e às vezes monótono, mas também edificante e gratificante, igual a todo trabalho digno que possa existir neste mundo.

Através de uma existência absolutamente ordinária, Josemaría Escrivá tornou-se um santo, um homem extraordinário. Agora, e principalmente depois do dia 6 de outubro, sua vida e sua obra passarão a estar sendo propostas como modelo a todos os fiéis católicos e a todos os homens de boa vontade que, de alguma forma, acreditam ser possível transformar sua existência ordinária em algo extraordinário, sem que ela deixe de ser, aparentemente, o que sempre foi: o cumprimento fiel e por vezes monótono de nossos deveres e o exercício, por vezes difícil, de nossos direitos.

E se isto nos parecer impossível, já temos também a quem acudir para realizar este milagre extraordinário: ao santo das causas ordinárias.

    Dante Marcello Claramonte Gallian // Gazeta do Povo