O que significa “Desagravo”?

“Como chorou, ao pé do altar, aquele jovem e santo Sacerdote - que havia de merecer o martírio -, porque se lembrava de uma alma que se tinha aproximado em pecado mortal a receber Cristo! - Assim O desagravas tu?” (Caminho, 532)

São Josemaria ensinava que o desagravo é um ato próprio do amor, que procura consolar a pessoa amada, que foi ferida pelos nossos pecados, ou dos outros. A seguir oferecemos a definição e contexto histórico do conceito de “desagravo” no Dicionário de São Josemaria Escrivá.

1. O desagravo na história da espiritualidade.

2. Desagravo e reparação nos escritos de São Josemaria.


A linguagem comum entende o termo “desagravo” como a reparação ou compensação de uma ofensa ou preconceito. Quem desagrava “oferece algo que a pessoa ofendida ama tanto ou mais do que detesta a ofensa” (S.Th. III, q. 48, a. 2, c). Na espiritualidade cristã faz referência ao ato de reparar a Deus pelos pecados e faltas próprios e alheios. Essa reparação é entendida como participação do cristão na obra redentora de Cristo, tanto no seu aspecto positivo de restauração da obra de Deus como no negativo de expiação pelo pecado.

1. O desagravo na história da espiritualidade

As ideias de desagravo e reparação pertencem à experiência humana comum. Também à cristã; daí que possam ser encontradas referências a elas na literatura dos primeiros séculos. Essa prática adquiriu um matiz especial na espiritualidade reparadora, que se desenvolveu com maior intensidade no povo cristão a partir da experiência mística de Santa Margarida Maria de Alacoque (+ 1690) e da sua devoção ao Coração de Jesus, e alcançou o seu ápice na época chamada por alguns autores de “era reparadora” da Igreja latina, delimitada entre a universalização da festa do Sagrado Coração de Jesus (1856) e a instauração da solenidade de Cristo Rei (1925). Nesse período a Igreja viveu um florescer de congregações religiosas, associações de sacerdotes e leigos, confrarias etc., dedicadas ao ideal da reparação. O estatuto teológico da reparação ao Sagrado Coração de Jesus foi elaborado e exposto por Pio XI na Carta Enc. Miserentissimus Redemptor (8-V-1928).

São Josemaria recebeu a sua formação teológica e espiritual dentro deste período. Ele conhece, portanto, a literatura sobre a reparação, e devoções como a Comunhão Reparadora, as súplicas e preces da Hora Santa, os exercícios da Primeira Sexta Feira, etc. Pode-se supor que leu a Carta Enc. Miserentissimus Redemptor de Pio XI, publicada em espanhol pelo Boletín Oficial del Obispado de Madrid-Alcalá em 1º de junho de 1928, e que se identificou com essa doutrina como demonstram os seus escritos. Não há dúvida de que conheceu e esteve em contato com a Obra do Amor Misericordioso, movimento devocional baseado no oferecimento a Deus da própria vida em identificação com Cristo vítima para satisfazer por tantas ofensas (cfr. Requena, 2009, pp. 139-174). Isto posto, é preciso acrescentar que não se vinculou de forma plena a nenhuma dessas realidades devocionais, mas manteve uma linha própria.

2. Desagravo e reparação nos escritos de São Josemaria

O fundador do Opus Dei usa indistintamente em suas obras as palavras “desagravo/ar” e “reparação/rar”. E une algumas vezes os dois termos, dando a entender que são equivalentes: “Ama a Deus pelos que não o amam: deves fazer carne de tua carne este espírito de desagravo e de reparação” (Forja, 444). Para São Josemaria os atos de desagravo brotam do íntimo do coração, são uma demonstração prática de amor a Deus. O desagravo se relaciona com a redamatio ou correspondência ao amor que Deus tem por cada um dos homens. Trata-se de um amor que sofre – dor de amor – quando a pessoa amada é ofendida: “Não peças perdão a Jesus apenas de tuas culpas; não O ames com teu coração somente... – Desagrava-O por todas as ofensas que lhe têm feito, que Lhe fazem e Lhe hão de fazer...; ama-O com toda a força de todos os corações de todos os homens que mais O tenham amado (...)” (Caminho, 402). Uma vez que manifestam o amor a Deus, os atos de desagravo se revelam como meio eficaz de progresso espiritual: atraem a graça do Senhor, exercitam a alma na presença de Deus e renovam os desejos de entrega e de luta ascética.

São Josemaria viveu com profundidade o fato de que a Paixão de Cristo é o grande ato de desagravo ao amor divino ferido, o único sacrifício de valor infinito capaz de reparar de modo superabundante as ofensas dos homens. Só unidas à Cruz de Cristo, as ações do cristão podem ser atos eficazes de desagravo: “Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em participação no destino e na vida de Jesus, que experimentou voluntariamente, por Amor aos homens, toda a gama da dor, todo o gênero de tormentos” (É Cristo que passa, 168). Neste sentido, “a dor é um dom, uma possibilidade de identificação com Cristo, e uma tarefa: responsabilidade de completar com Ele livremente e por amor, a obra da redenção” (Binetti, 1995, p. 417).

Na vida e na doutrina de São Josemaria há um sólido nexo entre amor a Deus, Cruz, desagravo, expiação e propósitos de entrega: “Eu subirei com eles até junto da Cruz, apertar-me-ei ao Corpo frio, cadáver de Cristo, com o fogo do meu amor... envolvê-lo-ei com o lençol novo da minha vida limpa, e o enterrarei em meu peito de rocha viva, donde ninguém mo poderá arrancar – e aí, Senhor, descansai! Quando todo o mundo Vos abandonar e desprezar... serviam! Eu Vos servirei Senhor! ” (Via Sacra, XIV Estação).

Para São Josemaria, o desagravo não se limita ao aspecto penitencial ou de mortificação voluntária em expiação pelos pecados; inclui todas as demonstrações de amor da vida diária que desejam consolar e dar alegrias ao Senhor para compensar os desamores. Nesse sentido seria necessário vincular os atos de desagravo a duas dimensões inseparáveis na vida espiritual de São Josemaria: a filiação divina: “as ânsias de reparação, que o teu Pai Deus, põe na tua alma, ver-se-ão satisfeitas, se unires a tua pobre expiação pessoal aos méritos infinitos de Jesus” (Forja, 604); e a infância espiritual: “à vista de tantas ofensas ao Senhor, se dissermos a Jesus, com vontade eficaz, indo no ônibus por exemplo: ‘Meu Deus, quereria fazer tantos atos de amor e desagravo quantas as voltas de cada roda deste carro’, naquele mesmo instante, diante de Jesus, tê-Lo-emos realmente amado e desagravado conforme nosso desejo. – Esta ‘ingenuidade’ não está fora da infância espiritual; é o eterno diálogo entre a criança inocente e o pai, doido por seu filho” (Caminho, 897).

A possibilidade de desagravar não requer momentos especiais, pois qualquer ocasião é boa para elevar o coração a Deus em oração. A espiritualidade secular que São Josemaria viveu e transmitiu tem como objetivo tornar os cristãos contemplativos no meio do mundo: “essas práticas [o plano de vida] hão de levar-te quase sem perceberes, à oração contemplativa. Brotarão da tua alma mais atos de amor, jaculatórias, ações de graças, atos de desagravo, comunhões espirituais. E isso enquanto cuidas das tuas obrigações: quando atendes ao telefone, quando tomas um meio de transporte, quando fechas ou abres uma porta, quando passas diante de uma Igreja, quando começas uma nova tarefa, enquanto a realizas e quando a concluis. Tudo referirás ao teu Pai Deus” (Amigos de Deus, 149).

Há, porém, momentos mais apropriados e convenientes para o desagravo, como o exame de consciência: “acaba sempre o teu exame com um ato de Amor – dor de Amor: por ti, por todos os pecados dos homens...” (Caminho, 246); ou também quando tomamos conhecimentos de atos ou lugares onde a lei divina não é obedecida: “não sejas tão cego ou tão estouvado que deixas de rezar a Maria Imaculada ao menos uma jaculatória sempre que passas junto de lugares onde sabes que se ofende a Cristo” (Caminho, 269).

Vicente BOSCH

Bibliografia: Paola Binetti, “Riflessioni sul significato del dolore negli insegnamenti del Beato Josemaria Escrivá”, AnTh, 9, (1995), pp.409-443; Édouard Glotin, “Réparation”, em DSp, XII, 1988, cols370-413; Federico M. Requena, “San Josemaria Escrivá y la devoción al Amor Misericordioso (1927-1935)”, SetD,3 (2009), pp. 139-174; Andrea Tessarolo, “Reparación” em Ermanno Ancilli (dir), Diccionario de Espiritualidad, III, Barcelona, Herder, 1984, pp. 279-281.