O "lugar" do cristão

Artigo escrito pelo Pe. José Rafael Espírito Santo e publicado pelo jornal Público no dia 10 de outubro. O Vigário Regional do Opus Dei em Portugal fala sobre os 40 anos da homilia “Amar o mundo apaixonadamente”.

8 de Outubro de 1967. Um padre prega a sua homilia de domingo durante a Missa celebrada ao ar livre. A pequena multidão apertada ouve em silêncio: soam expressões que parecem chocantes, até provocativas, e ninguém quer perder uma palavra. “Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho.”

O padre fala da única vida, feita de carne e espírito, que tem de ser – na alma e no corpo – santa e cheia de Deus, do Deus invisível que "encontramos nas coisas mais visíveis e materiais"; ouve-se falar do "materialismo cristão"; de viver santamente a vida de cada dia...

Josemaria Escrivá, Fundador do Opus Dei, por ocasião da II Assembléia de Amigos da Universidade de Navarra pronunciou uma homilia que se tornou emblemática. Já tinham passado quase dois anos do encerramento do Concílio Vaticano II.

O "Maio de 68" está prestes a despontar e na vida universitária. Pressente-se, um pouco por todo o lado, o ambiente de contestação: é a época da preponderância do marxismo nas universidades européias e, entre muitos cristãos, do diálogo com o marxismo como único horizonte intelectual digno. A vida da Igreja começa a experimentar os atritos crescentes entre aquilo que Bento XVI chamou "a hermenêutica da descontinuidade e da ruptura" e "a hermenêutica da reforma".

A chamada teologia da secularização – a afirmação do progresso intramundano sem necessidade da intervenção de Deus, muito menos do protagonismo de Deus – difundia-se por todo o lado abalando os próprios alicerces do Cristianismo. E, no entanto, como ressaltou o teólogo Pedro Rodríguez, o então grão-chanceler da Universidade não situou a sua homilia numa posição dialeticamente oposta a esse pensamento secularizante.

O seu discurso lança, antes, um alerta para os riscos que vêm de outro quadrante: o perigo da deformação espiritualista, pietista, do Cristianismo. Ali não há um ataque direto ao secularismo, mas um aprofundamento do que é a verdadeira secularidade.  

O "lugar" paradigmático da existência cristã não pode ser o templo: há de ser o mundo de cada dia. Há que superar as antinomias espírito/matéria, mundo eclesiástico/mundo comum, templo/vida corrente. É na agitação da vida cotidiana que acontece o encontro com Deus; é essa vida real, de carne e osso, que havemos de viver com Deus; é aí que daremos testemunho do amor de Deus por cada ser humano e pelo mundo que Ele criou.

"Meus filhos: aí onde estão nossos irmãos os homens, aí onde estão as nossas aspirações, nosso trabalho, nossos amores — aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo. Em meio das coisas mais materiais da terra é que nós devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens."

Palavras atualíssimas: hoje, o marxismo já passou; o secularismo está talvez mais impetuoso do que nunca. Para alguns o seu singular conceito de tolerância leva-os a não tolerar a menor expressão pública de crença. Ora, a expressão da identidade pessoal só é livre se também puder ser expressão do que a pessoa pensa sobre o mundo, sobre o homem e sobre Deus.

É a liberdade que abre caminho para que também o cristão assuma a sua identidade cristã na vida diária. Sem coações nem constrangimentos. Com o mesmo espaço, com a mesma legitimidade, com o mesmo gesto de cidadania que desejamos que tenha o crente de qualquer credo e que tenham também os não crentes.  

Se o cristão viver genuinamente enraizado em Deus e aberto aos concidadãos sem qualquer discriminação, melhor fará ver que a cidadania da sua fé não só não é uma ameaça como é uma contribuição positiva para a harmonia e progresso social.

    Pe. José Rafael Espírito Santo