O amor aos pobres em São Josemaria

O Papa Francisco colocou o amor aos pobres no centro de sua ação pastoral. Na sua Exortação apostólica Evangelii Gaudium afirma que “no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida”. São palavras que encontram profunda ressonância nos escritos de São Josemaria, como podemos apreciar neste artigo do professor Martin Schlag.

Poucos temas suscitam tanta paixão como o da pobreza socioeconômica e da miséria material em que se encontram indivíduos e amplos estratos da sociedade. Revoluções, protestos, lutas de classe foram e ainda são convulsões sociais originadas pelas condições de indigência: o sentido humano de justiça rebela-se contra a distribuição profundamente desigual dos bens da terra, e ainda mais interpelado se sente um coração cristão, imbuído do espírito de justiça e caridade pregado e vivido exemplarmente por Jesus de Nazaré.

Também no seu aspecto ascético-espiritual, a pobreza, como virtude individual e coletiva, tem suscitado acesas controvérsias no seio da comunidade eclesial. Basta recordar a disputa sobre as Ordens mendicantes do séc. XIII e a luta entre os «espirituais» e a corrente maioritária nos Franciscanos. Todas essas tensões nasceram em torno da pergunta sobre a pobreza: como vivê-la? Em que medida é necessária uma carência absoluta de bens para viver uma pobreza «evangélica» e identificar-se desse modo com Cristo Jesus? E em que medida está um cristão obrigado a dar esmola aos pobres? Só do supérfluo? Ou também do necessário? O que é o necessário?

Todas estas interrogações não são questões meramente acadêmicas, mas afetam a vida cotidiana do cristão, consciente de que Cristo, no Juízo Final, vai nos julgar segundo as nossas obras, também as de amor e de misericórdia.

São Josemaria tratou ambos os aspectos da pobreza: o socioeconômico e o ascético-espiritual. Pode afirmar-se que o Fundador do Opus Dei vivia e ensinava uma «opção preferencial, mas não exclusiva, pelos pobres», conforme a formulação da Conferência de Medellín, embora sem a empregar, fato que se explica se considerarem o abuso e a confusão que, durante a sua vida, tinham criado com essas expressões no âmbito da «teologia da libertação».

O desafio metodológico com que se enfrenta um trabalho como este é próprio de uma reflexão histórica, quando se investiga um conceito que faz parte integrante da sensibilidade contemporânea, em um autor que, para designá-lo, usa palavras distintas das que outros empregam. O perigo é fazer dizer ao autor coisas que não diz ou, pelo contrário, não descobrir a sua riqueza de conteúdo pela falta de uma determinada roupagem exterior.

Amor Cristocêntrico aos pobres

Para orientar a nossa busca esclarecemos que o conceito que aqui queremos investigar é o de amor aos pobres em sentido socioeconômico, quer dizer, aos pobres entendidos como um grupo social, distinto dos poderosos e proprietários de bens. Neste artigo, portanto, não vai ser tratado do desprendimento, mas, e aqui já entramos no núcleo da questão, não se pode falar do amor aos pobres segundo a mente de São Josemaria sem mencionar a virtude da pobreza (a Santa Pobreza, como a chamou por vezes, com maiúscula, cf. Forja [F] nº 46), porque ambas as virtudes, o amor aos pobres e a pobreza, nascem da mesma fonte: do desejo do cristão de imitar Cristo, nosso Senhor, até se fazer um com Jesus, o modelo. Quer dizer, fonte, motivo e força propulsora do amor aos pobres é o amor a Cristo. Primeiro vem o amor ao Senhor, depois o amor aos pobres. Por certo, quando se fala de «amor aos pobres», estamos falando deles no sentido socioeconômico, ou seja da classe de pessoas na sociedade que sofrem de indigência de meios materiais, e não das pessoas que se esforçam por viver individualmente o desprendimento. Contudo, os dois aspectos se entrelaçam: a opção preferencial pelos pobres requer a pobreza interior. A generosidade da doação pressupõe a generosidade e a liberdade do coração desapegado dos bens e capaz de ajudar.

Em uma reflexão teológica sobre o Opus Dei, José Luis Illanes coloca o ponto de partida para uma análise da responsabilidade social do cristão, de acordo com o pensamento de São Josemaria, na unidade da vida. É à volta dessa característica, que define a condição de um fiel cristão no meio do mundo, que o fundador do Opus Dei organiza os outros aspectos dos seus ensinamentos sobre a santificação da vida corrente, que inclui também a vida social e o esforço por configurar a sociedade de um modo justo. Segundo Illanes, a unidade de vida, como a ensinava São Josemaria, compõe-se de três elementos que devem dar-se simultaneamente:

1. A normal existência no mundo, com tudo o que abrange de relações, desejos, ilusões, esperanças, alegrias, obrigações e tarefas, sobretudo no que se refere ao trabalho profissional feito com espírito de serviço. Tudo isto chama-se secularidade, indoles saecularis, caráter secular.

2. A referência de toda essa realidade a Deus, Pai e Criador, de cujas mãos o mundo saiu bom e digno de amor.

3. O sentido da missão apostólica que, brotando dos sacramentos da iniciação cristã, ilumina toda a existência e a converte em encontro com Deus e ocasião para O dar a conhecer com a própria vida e com a palavra.

“Unidade de vida implica, em resumo” – tal como São Josemaria a entende –, “na unidade da dimensão secular com a ascética e a apostólica, até formarem as três uma só coisa em quem, ao aprofundar a fé, reconhece que a vida corrente e quotidiana pode e deve ser vivida em comunhão com Deus e em atitude de amor e serviço aos que o rodeiam”.

Tudo isto equivale a proclamar o valor teologal da existência humana e de cada instante desta existência. Nesse sentido, a responsabilidade social não é algo que se acrescente à vida cristã desde fora, antes faz parte da vocação cristã. «O cristão não é alguém que, além de ser cristão, tem uma responsabilidade social, mas alguém que, ao saber-se cristão, se reconhece situado no mundo para desenvolver aí todas as implicações, também sociais, da fé. A responsabilidade social é, afinal, elemento integrante, dimensão fundamental da vocação cristã». E particularmente da missão dos leigos, que permanecem no mundo para o vivificar a partir de dentro.

Escolher a unidade de vida como ponto de partida para o amor aos pobres realça o cristocentrismo dessa atitude, uma vez que a unidade de vida é consequência de ver toda a realidade com os olhos de Jesus. Quando o Senhor observa os que deitam esmolas no gazofilácio, e vê a pobre viúva que acaba de dar tudo o que tinha, chama os apóstolos para que aprendam a ver como Ele.

Só depois de olhar para Cristo, «nosso modelo», São Josemaria prega o desprendimento como «senhorio, dignidade» referindo-se aos seus vários aspectos e consequências no porte externo, elegante e atraente como o de Cristo, e ao mesmo tempo radicalmente desprendido (cf. Amigos de Deus [AD], nº 122). «Meu Deus, vejo que não te aceitarei como meu Salvador, se não te reconhecer ao mesmo tempo como Modelo. - Já que quiseste ser pobre, dá-me amor à Santa Pobreza. O meu propósito, com a tua ajuda, é viver e morrer pobre, ainda que tenha milhões à minha disposição» (Forja [F], nº 46).

São Josemaria dedicou a sua vida a abrir um caminho espiritual no meio do mundo para cristãos leigos e sacerdotes seculares de todos os ambientes sociais. Essa missão fundacional exigiu, entre muitos outros aspectos, a necessidade de distinguir modos de conceber a pobreza mais específicos da vida religiosa e não apropriados à secularidade de uma mulher ou de um homem no meio do mundo, da sociedade e de sua família. A virtude da pobreza compete a qualquer cristão batizado. O que varia é o modo de a viver, quanto às manifestações externas, que não têm por que ser sempre as mesmas. Por isso São Josemaria sublinhou: «Não consiste a verdadeira pobreza em não ter, mas em estar desprendido, em renunciar voluntariamente ao domínio sobre as coisas. - Por isso há pobres que realmente são ricos. E vice-versa» (Caminho [C], nº 632).

Viver a virtude da pobreza, o desprendimento das coisas que se usam, significa para São Josemaria perguntar-se: «Tenho os afetos de Jesus Cristo, e os seus sentimentos, no que se refere à pobreza e às riquezas?» (F, nº 888) «Se estamos perto de Cristo e seguimos os seus passos, temos que amar de todo o coração a pobreza, o desprendimento dos bens terrenos, as privações» (F, nº 997).

Se o amor ao desprendimento deriva do desejo de imitar Cristo e de estar perto d’Ele, com mais força há que afirmar o mesmo sobre o amor aos pobres. Imitar Cristo e amar a sua santa vontade é amar e vê-Lo em todas as pessoas, especialmente nos enfermos, nas crianças, nos pobres e nos humildes: «é justamente entre eles que se sente melhor» (Sulco [S], nº 228). Ser cristão exige «visão límpida e uma vontade decidida de agir como Deus quer», superando «as pequenas metas do prestígio ou da ambição» e ir até «finalidades aparentemente mais nobres, como a filantropia ou a compaixão perante as desgraças alheias; é avançar em direção ao termo último e radical do amor que Jesus Cristo manifestou ao morrer por nós» (Cristo que passa [CP], nº 98). Ser cristão significa, portanto, ver todos com os olhos de Jesus.

São Josemaria é muito claro ao denunciar como falsas a espiritualidade e a religiosidade encerradas na piedade «pessoal», e alheias às exigências da justiça social. «Não se ama a justiça, se não se deseja vê-la estendida aos outros. Como também não é lícito encerrar-se numa religiosidade cômoda, esquecendo as necessidades alheias. Quem deseja ser justo aos olhos de Deus esforça-se também por fazer com que se pratique de fato a justiça entre os homens. E não apenas pelo bom motivo de que não se injurie o nome de Deus, mas porque ser cristão significa acolher todas as instâncias nobres que existem no ser humano. Parafraseando um conhecido texto do Apóstolo São João , podemos dizer que quem se proclama justo com Deus, mas não é justo com os outros homens, é um mentiroso; e a verdade não habita nele» (CP, nº 52).

«Compreende-se muito bem a impaciência, a angústia e os anseios inquietos daqueles que, com alma naturalmente cristã , não se resignam perante as situações de injustiça pessoal e social que o coração humano é capaz de criar. Tantos séculos de convivência entre os homens, e ainda tanto ódio, tanta destruição, tanto fanatismo acumulado em olhos que não querem ver e em corações que não querem amar.
Os bens da terra, repartidos entre poucos; os bens da cultura, encerrados em cenáculos. E, lá fora, fome de pão e de sabedoria; vidas humanas - que são santas, porque vêm de Deus - tratadas como simples coisas, como números de uma estatística. Compreendo e partilho dessa impaciência, levantando os olhos para Cristo, que continua a convidar-nos a pôr em prática o mandamento novo do amor» (CP, nº 111).

Nestas citações chama a atenção a constante referência a Cristo ao tratar das tremendas injustiças humanas. Lutar pela justiça social significa «praticar o bem sem espetáculo, de ajudar os necessitados por puro amor, sem obrigação de publicar essas tarefas a serviço dos outros» (CP, nº 69). Amar todas as pessoas é «venerar [...] a imagem de Deus que há em cada homem, procurando que também ele a contemple, para que saiba dirigir-se a Cristo». (AD nº 230) A caridade que deve habitar no coração humano está feita à medida do amor do coração de Jesus: «A caridade com o próximo é uma manifestação do amor a Deus. Por isso, não podemos estabelecer limite algum ao nosso esforço por melhorar nessa virtude» (AD, nº 232).

O contato pessoal de São Josemaria com a pobreza

Ao longo do séc. XX verificou-se uma grande evolução tecnológica que acelerou a transição de uma economia estática para outra, em contínuo crescimento, iniciada já no séc. XIX com a revolução industrial. O Magistério da Igreja reflete sobre esses movimentos sociais nos seus documentos de doutrina social. Se na encíclica Rerum Novarum (1891) de Leão XIII predominava a «questão operária», no decurso do séc. XX acrescentam-se novos temas, especialmente o desenvolvimento e a distinção entre países desenvolvidos e países em vias de desenvolvimento. Na percepção social geral, passou-se do otimismo de um «progresso técnico e econômico sem limites», que tinha reinado nos anos 1950 e 1960, à preocupação pela ecologia e pelo problema de uma eventual escassez de recursos naturais, que se torna presente a partir da década de setenta. E difundiu-se um amplo consenso sobre a necessidade de que o desenvolvimento fosse integral e não se limitasse ao mero crescimento quantitativo.

Parte dos acontecimentos mencionados são posteriores ao falecimento de São Josemaria. Outros, pelo contrário, estiveram presentes ou começaram a aflorar durante a sua vida. Em uma de suas homilias recorda que, já na sua infância, tinha ouvido falar da «questão social» (AD, nº 170); posteriormente, durante os seus estudos de Teologia, em Saragoça, teve oportunidade de conhecer a doutrina da Rerum Novarum, as cartas pastorais que os bispos espanhóis, entre eles o arcebispo saragoçano Cardeal Soldevila, foram dedicadas aos problemas do mundo do trabalho. Ainda em Saragoça, na universidade civil onde fez o curso de Direito, teve como professores alguns dos representantes da que se chamou «Escola Social de Saragoça», um dos núcleos mais significativos do pensamento social cristão da época. O decurso da sua vida colocou-o, por outro lado, frente a situações duras. E o seu coração sacerdotal levou-o a prestar sempre atenção às mudanças e problemas sociais.

São Josemaria experimentou na sua adolescência, como consequência da falência do negócio que o seu pai dirigia em Barbastro, os problemas que acompanham uma quebra de ordem econômica e que obrigaram a família a deixar a cidade natal e a mudar-se para Logronho, onde viveu muito modestamente. A morte do pai em 1924 fez com que a família – a sua mãe e dois irmãos – ficasse a seu cargo, sendo ele um sacerdote jovem e com escassos recursos. Já em Madrid, a família atravessou momentos de verdadeira pobreza.

Nessa mesma temporada, São Josemaria empenhou-se em um profundo serviço entre os mais pobres dos pobres da cidade de Madrid que, como outras capitais europeias, se encontrava em um período de expansão o que atraía uma quantidade de pessoas que demorava para encontrar acomodação. Passou muitas horas por dia caminhando pelos bairros mais miseráveis, atendendo moribundos e enfermos incuráveis e contagiosos. Administrava-lhes os sacramentos, atendia-os materialmente com um serviço abnegado, levava-lhes carinho e fortaleza nos seus sofrimentos. Dedicava-se aos pobres de corpo e alma, conhecendo as suas dores e, ao mesmo tempo, comovendo-se perante a inteireza cristã que muitos deles manifestavam. Em mais de uma ocasião comentou que o Opus Dei tinha nascido nos hospitais e no meio dos pobres de Madrid, e que tinham sido precisamente eles a fortaleza da Obra, palavras com que sublinhava o valor redentor da dor e a dignidade do ser humano também na extrema pobreza.

Quando iniciou o seu apostolado com universitários – continuamos em Madrid, na primeira metade dos anos trinta – iniciou um costume, que logo tornaria universal: as «visitas aos pobres». Quer dizer, o costume de convidar jovens universitários – que costumavam ser de condição abastada – para visitar pobres e enfermos, fazendo-lhes companhia, prestando-lhes serviços e manifestando-lhes um carinho que os consolasse na em sua solidão. Estas visitas eram um autêntico meio de formação para esses jovens, que aprendiam assim a ver Cristo nas pessoas necessitadas e a tomar consciência da seriedade da vida. Nessa «escola» de generosidade, os jovens gravavam no coração a convicção de que a caridade não consiste em dar uma ajuda anônima e fria, mas sim em perceber os problemas dos outros e em torná-los próprios.

Deste modo se assentavam as bases para que, no futuro, essas pessoas jovens enfrentassem a vida com uma atitude responsável e generosa, e soubessem ajudar sem humilharmas, ao contrário, elevando. São Josemaria insistia muito neste aspecto, que constitui um dos traços característicos de sua pregação e dos seus ensinamentos. «A caridade cristã não se limita a socorrer os necessitados de bens econômicos; seu primeiro propósito é respeitar e compreender cada indivíduo como tal, em sua intrínseca dignidade de homem e de filho do Criador» (CP, nº 72). Proclamava que a autêntica caridade não é oficial nem seca, nem se pode confundir com uma beneficência mais ou menos estereotipada, com uma esmola ou um serviço sem alma. Proceder de outra maneira é uma «aberração» – comenta em uma das suas homilias – bem expressa na “queixa resignada” de uma doente: « “Aqui tratam-me com caridade, mas a minha mãe cuidava de mim com carinho”. O amor que nasce do coração de Cristo não pode dar lugar a este gênero de distinções» (AD, nº 229).

Caridade universal sem excluir ninguém

Na linha do que até agora foi dito, é de assinalar outra característica dos escritos de São Josemaria sobre o amor aos pobres: sublinha fortemente a necessidade de viver a solidariedade sem classismos e sem exclusivismos de nenhuma espécie. Jesus Cristo veio à Terra para trazer a paz a todos os homens, escreve São Josemaria em uma homilia: a todos, «não só aos ricos, nem só aos pobres! A todos os homens, a todos os irmãos! Pois irmãos somos todos em Jesus: filhos de Deus, irmãos de Cristo. E sua Mãe é nossa Mãe» (CP, nº 13). E mais adiante repete: «Nós, cristãos, não podemos ser exclusivistas nem separar ou classificar as almas; virão muitos do Oriente e do Ocidente ; todos têm lugar no coração de Cristo. Seus braços - voltamos a admirá-lo no Presépio - são de criança, mas são os mesmos que se abrirão na Cruz, atraindo todos os homens a Si» (CP, nº 38).

Estas palavras opõem-se a uma redução do amor aos pobres e necessitados, a um programa político de luta de classes, como faziam as abordagens da teologia da libertação de cariz radical. A sensibilidade que os cristãos têm de ter para as injustiças sociais está motivada pela urgência da caridade. Portanto, não deve levar a adotar soluções relacionadas com a violência.

A resposta de São Josemaria à crise da sociedade contemporânea é a «rebelião do homem que não tolera viver como um animal, que não se conforma - não sossega - se não conhece o Criador, se não procura a sua intimidade» (AD, nº 38). É a revolução de quem não quer submeter-se à «lógica» do egoísmo e da avareza, dos atalhos fáceis que levam a espezinhar os direitos dos outros; é a revolução cristã que quer configurar a sociedade com os princípios da igualdade dos filhos de Deus, realizando «o grande milagre da fraternidade» (CP, nº 157). Mais de 200 anos depois da Revolução Francesa, estamos novamente perante o desafio de descobrir a fraternidade como princípio social, coisa nada fácil.

É certo, o bem comum da sociedade rege-se pela justiça; mas, em última instância, a justiça sem o perdão e a misericórdia, ou seja, sem a caridade, não é sustentável. São Josemaria, em alguns parágrafos particularmente iluminadores deste aspecto da ética social escreveu: «Convencei-vos de que só com a justiça não resolvereis nunca os grandes problemas da humanidade. Quando se faz justiça a seco, não vos admireis de que a gente se sinta magoada: pede muito mais a dignidade do homem, que é filho de Deus. A caridade tem que ir dentro e ao lado, porque tudo dulcifica, tudo deifica: Deus é amor. Temos de agir sempre por Amor de Deus, porque torna mais fácil querer bem ao próximo e porque purifica e eleva os amores terrenos.
Para chegarmos da justiça estrita à abundância de caridade, temos todo um trajeto a percorrer. E não são muitos os que perseveram até o fim. Alguns se conformam com aproximar-se dos umbrais: prescindem da justiça e limitam-se a um pouco de beneficência, que qualificam como caridade, sem perceber que isso é apenas uma parte pequena do que estão obrigados a fazer. E mostram-se muito satisfeitos de si mesmos, como o fariseu que pensava ter preenchido a medida da lei porque jejuava dois dias por semana e pagava o dízimo de tudo o que possuía» (AD, nº 172).

A realidade das injustiças, lutas e violências, do cúmulo de mal que existe no mundo, pode fazer pensar que a fraternidade é um ideal belo mas inatingível. São Josemaria ensina que a fraternidade é possível, embora continue a ser um milagre, ou seja, uma conquista cultural que transcende as meras forças humanas. Na libertação de energia altruísta viu-se a principal contribuição da religião para a sociedade secular. É uma das razões por que a fé cristã chegou a ser reconhecida como algo imprescindível também para um mundo político que, com razão, se entende como o resultado de um processo de secularização.

A percepção de injustiças, pobreza, miséria, etc. «deve ferir o cristão no mais profundo do seu ser, pois não é em vão que é discípulo de um mestre, Jesus de Nazaré, que provou ter coração, capacidade de sofrer e de se compadecer do sofrimento dos outros». A fé cristã não adormece a reação de rejeição perante a injustiça. Pelo contrário, essa reação será tanto mais profunda, quanto mais de perto se contemplar a vida de Cristo. Assim foi Jesus, e assim deve ser o cristão. «A responsabilidade social é uma dimensão intrínseca do humano, assim como, consequente e ainda mais radicalmente, do cristão».

Serviço centrado no trabalho profissional

De acordo com o carisma da santificação do trabalho que tinha recebido ao fundar o Opus Dei, São Josemaria sempre atribuiu ao trabalho e, mais concretamente, ao trabalho profissional, uma grande importância, «enquanto fator decisivo quanto à configuração e desenvolvimento da sociedade humana». O trabalho não é a única força, mas sim uma das principais para edificar a sociedade, plasmando nela a justiça.

Neste sentido vê no trabalho profissional um meio privilegiado para concretizar o amor aos pobres, pressupõe uma fonte de criação de novos bens e, portanto, de progresso. Para obter esse valor em plenitude, deve ser bem feito, com domínio técnico do campo ou setor em que desempenha suas funções, de maneira efetiva ligadas aos princípios éticos, e alimentado pelo espírito de serviço e de solidariedade. O trabalho tem, portanto, um valor social intrínseco; daí a importância das atividades educativas e de formação, para habilitar as pessoas de modo que não só melhorem a sua situação, mas que também contribuam, por seu lado, para o desenvolvimento dos outros. Os pobres, escreve São Josemaria, «têm necessidade do pão da terra para sustentar as suas vidas, e também do pão do céu para iluminar e dar calor aos seus corações. Com o nosso próprio trabalho, com as iniciativas que possamos promover a partir das nossas ocupações, nas nossas conversas, no convívio com os outros, podemos e devemos concretizar esse preceito apostólico (cf. Ef 4,28)» (CP, nº 49).

Neste contexto, São Josemaria acentua tanto a responsabilidade dos leigos perante as injustiças sociais como a sua liberdade. Considerava que, como sacerdote, não devia propor nem sugerir soluções técnicas concretas: estas deviam ser procuradas pelos fiéis leigos, chamados a humanizar e santificar as realidades terrenas desde dentro, através do diálogo e do trabalho qualificado (cf. CP, nº 180 e 184). Mas despertava com muita força a responsabilidade social dos cristãos, promovendo, desse modo, em todo o mundo, uma grande variedade de iniciativas para a promoção humana e social: obras de assistência, de promoção social e rural, de formação cristã de empresários e industriais, de voluntariado. «Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos - conservando sempre a mais ampla liberdade à hora de estudar e de aplicar as diversas soluções, e, portanto, com um lógico pluralismo - devem identificar-se no mesmo empenho em servir a humanidade. De outro modo, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um logro perante Deus e perante os homens» (CP, nº 167).

Álvaro del Portillo, resumiu assim os ensinamentos e o espírito de São Josemaria: «Deus quer que permaneçais no vosso lugar. A partir dele, podeis realizar – estais a realizar – um trabalho gigantesco em benefício dos pobres e indigentes, dos que padecem de ignorância, solidão e dor – em tantas ocasiões devido à injustiça dos homens –, porque ao procurar a santidade com todas as vossas forças, santificando o trabalho profissional e as relações familiares e sociais, contribuís para informar a sociedade humana com o espírito cristão» (Carta pastoral, 9 de Janeiro de 1993, nº 20).

Em ligação com o trabalho profissional relacionado com a ajuda aos pobres, também é recorrente nas obras de São Josemaria uma visão original da ideia de gratuidade. Por meio de uma bela imagem, fruto da sua rica vida interior, ao traçar as caraterísticas que corresponderiam ao trabalho e ao carácter de S. José, expõe as suas próprias convicções sobre a reta ordem da atividade profissional na sua dimensão econômica: «As vezes, quando se tratasse de pessoas mais pobres do que ele, José devia trabalhar aceitando em troca alguma coisa de pouco valor, que deixasse a outra pessoa com a satisfação de pensar que tinha pago. Normalmente, cobraria o que fosse razoável, nem mais nem menos. Saberia exigir o que em justiça lhe era devido, já que a fidelidade a Deus não pode significar renúncia a direitos que na realidade são deveres: São José tinha de exigir o que era justo, pois com a recompensa desse trabalho precisava sustentar a Família que Deus lhe havia confiado» (CP, nº 52). Estimulando a magnanimidade, acrescenta: «Não pode um cristão conformar-se com um trabalho que lhe permita ganhar o suficiente para viver ele e os seus. A sua grandeza de coração arrastá-lo-á a meter ombros para sustentar os outros, por um motivo de caridade, e também por um motivo de justiça (...)». E continua, perguntando: «Quanto vos custa - também economicamente - ser cristãos?» (AD, nº 126).

Em linha com essa «pedra de toque» do sacrifício econômico, São Josemaria costumava apresentar outra prova da autenticidade do amor aos pobres, a «ordem da caridade». Com essa ideia expressava que a caridade começa com as pessoas com quem se convive, não certamente para se encerrar em um círculo estreito, mas para, captando as obrigações do amor, abrir-se a todos. Não acredito, dizia, «que te interesses pelo último pobre da rua se martirizas os da tua casa» (AD, nº 227).

Conclusão

«Um segredo. - Um segredo em voz alta: estas crises mundiais são crises de santos. Deus quer um punhado de homens “seus” em cada atividade humana. - Depois... "pax Christi in regno Christi" - a paz de Cristo no reino de Cristo» (C, nº 301).

Estas palavras de São Josemaria pressupõem uma distinção, mas também são uma relação, entre ética individual e ética social. A santidade pessoal, quando é autêntica, leva a configurar humana e cristãmente a sociedade, os costumes, as leis, as estruturas; em uma palavra, a cultura. Seria um autoengano pensar que um mero esforço individualista já seria santidade; e que, por algum mecanismo invisível, esse empenho por alcançar a própria perfeição poderia gerar automaticamente o bem comum. Os homens e as mulheres, vivendo o espírito de Cristo, e estando presentes em todas as atividades humanas, contribuirão para mudar as estruturas, se souberem dirigi-las para o bem comum terreno: a paz, a liberdade e a justiça social. Para levar a fraternidade a todos os seres humanos, em primeiro lugar aos pobres, exige-se uma motivação que exceda a mera filantropia; exige-se o amor do coração de Jesus, que deseja realizar, se o deixarmos atuar em nós, o «milagre da fraternidade».

Texto do professor Martin Schlag publicado no número 8 da revista Studia et Documenta, editada pelo Istituto Storico San Josemaria Escrivá.