João Paulo II e o seu legado de santidade

João Paulo II mudou o mundo "apenas com a força de uma vida inquestionavelmente santa". Neste primeiro aniversário, D. Javier Echevarría rememora os funerais do Papa e reflete sobre o seu legado.

A imagem do caixão simples de madeira, com uma Bíblia aberta em cima, colocado em frente à Basílica de São Pedro, e do vento que ia virando as páginas, permanece inesquecível em nossa memória. Em volta, parecia que o mundo inteiro estava ali reunido: cardeais, reis, presidentes, fiéis comuns, líderes religiosos, jornalistas... e sobretudo jovens, vindos de todos os recantos da Terra. Outras muitas pessoas contemplavam a cena em suas casas, pela televisão.

João Paulo II gastou toda a sua vida indo ao encontro das pessoas, e no seu funeral o mundo inteiro retribuiu-lhe o gesto: foi ao seu encontro. Apenas com a força de uma vida inquestionavelmente santa, o falecido Papa conseguiu atrair até aqueles que não pensavam como ele. Tal como um ímã silencioso, converteu-se num ponto de convergência de unidade, de caridade, de respeito mútuo e de boa vontade.

Ainda é cedo para fazer um balanço de uma vida tão rica, mas ao recordarmos os acontecimentos de abril de 2005 é inevitável perguntar: qual é a herança, qual é o legado permanente de João Paulo II? O historiador Cristopher Dawson disse em certa ocasião que “para um cristão mudar o mundo, basta-lhe sê-lo”, e não parece precipitado dizer que, nesse sentido, João Paulo II foi um cristão.

"O seu encontro com Ali Agca; o hábito de beijar o chão de um país logo ao descer do avião; o silêncio eloquente da janela papal por causa do sofrimento... Eram sinais tangíveis de algo muito mais profundo".

É evidente que João Paulo II mudou o papel do papado no mundo. Em Roma a sensação da sua presença mantém-se viva e real na interminável fila de peregrinos que rezam diante do seu túmulo e nas multidões que vêm escutar o seu sucessor.

Mesmo tendo sido um Papa de muitas palavras (homilias, discursos, poemas, livros e até mesmo obras de teatro), João Paulo II sabia melhor do que ninguém que o seu impacto mais profundo não seria o que pudessem provocar os seus escritos ou as suas palavras, por muito valiosas que fossem. De fato, o que lembramos mais facilmente são as suas ações simbólicas: a primeira visita à Polônia, o seu encontro com Ali Agca, a sua espontânea e fácil sintonia com as crianças e com os doentes; o hábito de beijar o chão de um país logo ao descer do avião, o silêncio eloquente na janela papal por causa do sofrimento... Todos esses eram sinais tangíveis de algo muito mais profundo.

Em certa ocasião, após ser hospitalizado, falou sobre a necessidade de pregar "o Evangelho do sofrimento". E quando chegaram, silenciosos, os seus últimos dias — durante a Semana Santa, que comemora o mistério da morte e a esperança da vida eterna — foram o seu sofrimento e a sua morte o que mais atraiu a atenção do mundo inteiro. A personalidade, o amor e o sacrifício têm a sua linguagem própria, e foi por meio dele que milhões de homens e de mulheres que jamais lerão uma Encíclica “escutaram” claramente a sua mensagem durante aqueles dias.

Mas o que João Paulo II quis acima de tudo foi preparar a Igreja para servir a Humanidade no novo milênio. E bem sabia o Papa que o maior presente que a Igreja pode dar ao mundo é justamente a santidade “encarnada” em pessoas, isto é: nos santos, sempre necessários e sempre poucos.

"Bem sabia o Papa que o maior presente que a Igreja pode dar ao mundo é justamente a santidade “encarnada” em pessoas, isto é: nos santos, sempre necessários e sempre poucos".

Um dos santos que ele canonizou — São Josemaria Escrivá — havia dito: “Essas crises mundiais são crises de santos”. Todos nós conhecemos o impacto que causaram na História as vidas de Agostinho, de Bento, de Tomás de Aquino ou de Joana D'Arc. Mas, quantos poderiam se lembrar dos nomes dos imperadores e dos Papas que dominaram o mundo durante a vida desses santos? Quem através dos séculos realmente enriquece a vida intelectual e espiritual da Igreja e do mundo são os santos: modelando as mentes, os corações e as vidas de milhões de pessoas.

João Paulo II canonizou mais santos do que todos os seus predecessores juntos, o que constitui um fato da maior importância: “Agradeço ao Senhor — escreveu, tendo em vista o novo milênio — que me concedeu beatificar e canonizar durante estes anos tantos cristãos, entre os quais muitos leigos que se santificaram nas circunstâncias mais comuns da vida. É este o momento de propor novamente a todos, com convicção, esse «alto grau» de vida cristã comum. A vida inteira da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve ir nessa direção” (Novo millennio ineunte).

Essas canonizações não foram apenas um reconhecimento do serviço heróico e das virtudes dos santos, mas também um urgente apelo a todos os cristãos para que se lembrem da vocação a que estão chamados. E, de fato, os santos canonizados por João Paulo II — homens e mulheres que realmente foram cristãos e por isso mudaram o mundo — são ao mesmo tempo um presente e um desafio para o mundo: um mundo em que sempre haverá problemas. Eles são uma impressionante herança de santidade, talvez a maior que João Paulo II nos deixou... pelo menos até o dia em que ele próprio seja contado entre os santos: nesse dia o seu legado já não mais será o dos santos que ele canonizou, mas o do santo que ele mesmo foi.

+ Javier Echevarría