O interesse pelos estudos sobre os primeiros séculos do cristianismo continua a aumentar de dia para dia, não só entre os que se dedicam a fundo ao estudo da história da Igreja, mas também e de um modo especial, nos últimos tempos, entre filólogos e historiadores do mundo antigo, de modo crescente e talvez com maior vigor. Os estudos sobre história social do cristianismo vão ganhando cada vez mais terreno no âmbito histórico-patrístico. Este movimento foi precedido, especialmente a partir do renascimento, por outro, de um âmbito muito mais específico, que consiste no recurso aos primeiros tempos do cristianismo como modelo de autenticidade de vida e fonte de espiritualidade.
Estas correntes contemporâneas, de ordem espiritual e intelectual, sugeriram-nos o presente estudo, em que se examina a expressão “primeiros cristãos” nas obras publicadas de São Josemaria Escrivá.
Importância da expressão e do seu conteúdo
A expressão “primeiros cristãos” aparece nas obras publicadas de São Josemaria em número considerável[1], sobretudo se o compararmos com outros escritos contemporâneos, ou inclusive mais recentes. Para dar um exemplo que ilustra o que acabamos de dizer, no Catecismo da Igreja Católica, que tem como uma das fontes os textos do Concílio Vaticano II, só se encontra uma vez a expressão, no número 1329; ao falar da Fração do pão indica-se que com esta expressão os primeiros cristãos designaram as suas assembleias eucarísticas[2]. Nenhuma delimitação, portanto, ao uso do conceito, antes sim, uma vaga referência aos tempos primitivos. Mas há mais. Entre os escritos do Concílio Vaticano II, o qual, por sua vez, preconizou a chamada universal à santidade, poderíamos esperar alguma referência em que basear esta doutrina. A expressão, contudo, nunca se encontra.
Se retrocedermos ainda um pouco mais no tempo e considerarmos a produção de alguns grandes autores espirituais, é clara uma despreocupação absoluta pelo tema. Nunca se menciona em São João da Cruz, nunca em Santa Teresa de Jesus[3], uma só vez aparece a expressão em Santa Teresa de Lisieux, para desejar o martírio que obtiveram como graça alguns primeiros cristãos[4]. Resta-nos o recurso aos próprios primeiros cristãos para ver que conceito eles tinham de si mesmos, aos autores medievais, para ver como receberam a terminologia, e aos estudos históricos contemporâneos, para descobrir outras perspectivas em relação ao tema.
Patrística
Como é sabido, o termo “cristãos” aparece pela primeira vez nos Atos dos Apóstolos, quando se explica que os habitantes de Antioquia, provavelmente pagãos, deram este nome aos seguidores de Cristo. O nome, embora imposto por pessoas alheias à doutrina, foi o que depois vingou na designação dos discípulos de Cristo. Anteriormente a este nome existiram outros que não gozaram tanto do apoio da história[5].
É Santo Inácio de Antioquia quem nos apresenta o segundo testemunho do emprego deste nome que, como é lógico, não constitui ainda um termo técnico. É inútil, pois, procurar em época tão recuada a expressão à qual dedicamos o nosso estudo. É preciso esperar até Sozomeno († 448), entre os de língua grega, que a utiliza uma só vez para fazer referência aos primeiros que abraçaram a fé na povoação de Betelia de Gaza, os seus próprios avós[6], embora na realidade seja Santo Agostinho quem usa pela primeira vez a expressão.
O sintagma “primeiros cristãos” é usado pelo santo em três ocasiões. Em primeiro lugar, no seu manual de instrução catequética, De cathechizandis rudibus, escrito pelo ano 400 sendo já bispo, quando explica que os primeiros cristãos eram movidos a acreditar por causa dos milagres pois as profecias não se viam ainda cumpridas. Nós, pelo contrário– afirma o bispo de Hipona– já as vemos cumpridas e, portanto, não sentimos a falta de milagres[7].Uma primeira observação que se impõe imediatamente é que a comparação augustiniana entre primeiros cristãos (primi christiani) e nós (nos), estabelece uma grande diferença entre o cristão do século V, contemporâneo do norte africano, e uma época anterior, que se julga já como passada e de algum modo irrepetível na atual situação. Santo Agostinho, embora a nós nos possa parecer outra coisa, já não se considera como primeiro cristão.
Um segundo elemento interessante que se pode depreender desta primeira afirmação augustiniana é o fato de estabelecer um modelo, com o qual é possível comparar-se, naqueles seguidores de Cristo dos primeiros tempos. A segunda passagem encontra-se no tratado contra Fausto, o maniqueu[8]. Nessa ocasião Santo Agostinho quer explicar como acreditaram os cristãos procedentes da circuncisão e como se lhes permitiu conservar algumas das suas tradições. A referência a primeiros tempos é também clara: um momento passado que já não se apresenta como válido, tendo em conta a mudança das circunstâncias.
O terceiro texto é, em nossa opinião, o mais eloquente. Consiste numa referência indireta, mas que esclarece de modo definitivo a época a que se deve circunscrever o emprego deste sintagma “primeiros cristãos” em Santo Agostinho. Trata-se aqui de um dos seus sermões, muito provavelmente primeiro pronunciado e depois transcrito, em que Agostinho explica: por isso diz o Apóstolo Paulo falando aos primeiros cristãos: reparai na vossa vocação, irmãos, porque entre vós não há muitos sábios segundo a carne, não há muitos poderosos, não há muitos nobres[9]. Dois elementos muito claros se depreendem da leitura deste texto: Primeiro: são contemporâneos de São Paulo e, poderíamos dizer, dos Apóstolos em geral, limitando o uso desta terminologia ao tempo apostólico. Segundo: atribui à condição de cristão uma vocação que não exclui nenhum tipo de condição pessoal, pois não se trata de ser sábio, rico ou poderoso. Indiretamente está indicando que tipo de pessoas se encontra entre as fileiras dos primeiros cristãos.
Assim, para Santo Agostinho, “primeiros cristãos” são os seguidores de Jesus Cristo, contemporâneos dos Apóstolos, pessoas de qualquer condição social, excluídos, em princípio, os Apóstolos os quais não entram na categoria de primeiros cristãos formando um grupo à parte superior a eles. Santo Agostinho é um caso isolado na época patrística – quase o único a falar sobre os primeiros cristãos– e ao mesmo tempo a rocha firme sobre a qual se apoiam os autores que o seguem.
A expressão em São Josemaria
Vimos, no início, o grande número de vezes que São Josemaria utiliza a expressão. Só por si este fato revela a importância que dá ao seu conteúdo. A nossa investigação limita-se aos escritos publicados, em que a frequência da expressão é de dezessete ocorrências, sem contar com os termos sinônimos que por agora não nos interessam tanto. Referimos aqui apenas a distinção, nestes, entre o uso independente do adjetivo “primeiros” ou também “os primeiros”, sem acompanhamento de nenhum substantivo[10], e o emprego de outros substantivos diferentes de “cristãos”, como “fiéis”, “seguidores”, etc.[11]. Evidentemente não se trata de entender como incluídos na nossa expressão todos os vocábulos acompanhados do adjetivo cristãos mas, inversamente, as expressões primeiros fiéis, primeiros autores, primeiros escritores, acompanhadas ou não do substantivo cristãos, têm de se considerar sinônimas do nosso sintagma só quando do contexto se infira a equivalência dos termos[12]. Assim, por exemplo, com um significado próximo, mas ao mesmo tempo diverso, encontra-se no seguinte texto[13]:
Assim como os bons religiosos se empenham em conhecer a maneira como viviam os primeiros da sua ordem ou congregação, para se ajustarem àquela conduta, assim tu – cavalheiro cristão – procura conhecer e imitar a vida dos discípulos de Jesus, que conviveram com Pedro e com Paulo e com João, e quase foram testemunhas da Morte e da Ressurreição do Mestre.
Mais do que o número de vezes que emprega a expressão, surpreendem outros dois fatos. Primeiro, o de que está disseminada ao longo de toda a obra: não há um único livro em que não se encontre referência ao tema. Em segundo lugar, o relevo dado à expressão, por exemplo quando afirmava numa entrevista concedida em 1967 a um correspondente da revista Time:
Se se quer procurar um termo de comparação, o modo mais fácil de entender o Opus Dei é pensar na vida dos primeiros cristãos. Eles viviam profundamente a sua vocação cristã; procuravam seriamente a perfeição a que estavam chamados pelo fato, simples e sublime, do Batismo. Não se distinguiam exteriormente dos demais cidadãos. Os sócios do Opus Dei são pessoas comuns; desenvolvem um trabalho corrente; vivem no meio do mundo de acordo com o que são: cidadãos cristãos que querem corresponder cabalmente às exigências da sua fé[14].
A comparação delimita claramente a noção de primeiros cristãos e pensamos que este texto se deve considerar a base para qualquer outra afirmação que se queira fazer acerca do tema em São Josemaria.
As referências aos primeiros cristãos nas obras do fundador do Opus Dei como contemporâneos dos Apóstolos são mais frequentes, por exemplo no seguinte texto:
“Na Igreja existe esta unidade radical e necessária que já São Paulo ensinava aos primeiros cristãos: Quicumque enim in Christo baptizati estis, Christum induistis. Non est Iudaeus, neque Graecus: non est servus, neque libertus, non est masculus, neque femina (Gal. 3, 26-28); não há judeu, nem grego; não há servo, nem livre; não há homem nem mulher”[15].
O texto tem grande semelhança com o terceiro de Santo Agostinho que citamos, em que também São Paulo se dirige aos primeiros cristãos. De todas as formas, não faltam textos em que se amplia o lapso temporal.
Que bem puseram os primeiros cristãos em prática esta caridade ardente, que sobressaía com excesso para lá dos cumes da simples solidariedade humana ou da benignidade de caráter! Amavam-se entre si, doce e fortemente, enraizados no Coração de Cristo. Um escritor do século II, Tertuliano, transmitiu-nos o comentário que os pagãos faziam ao contemplarem, comovidos, a conduta dos fiéis do seu tempo, tão cheia de atrativo sobrenatural e humano: Vede como se amam, repetiam[16].
A citação de Tertuliano amplia o horizonte até ao século III incluído, se não fosse pelo esclarecimento que introduz o próprio autor: um escritor do século II. Com efeito, Tertuliano situa-se entre o século segundo e terceiro. Os primeiros cristãos são também os do século II, mas especialmente são-no os da época apostólica.
É agora o momento de analisar, como já anunciamos, a qualificação dos primeiros cristãos.
Concretamente perguntamo-nos se são apenas personagens comuns ou se também está incluído o grupo dos doze. Como já vimos na entrevista da Time, são pessoas vulgares que não se distinguem em nada dos seus concidadãos. Em Santo Agostinho vimos que se excluíam os Apóstolos. Em São Josemaria nunca se diz expressamente que os Apóstolos estejam excluídos, mas parece depreender-se do contexto geral das afirmações que o modelo que se propõe não é exclusivamente o dos doze, mas também o de outras muitas pessoas que atuaram como “apóstolos” sem ser “os Apóstolos”.
Isto que acabamos de afirmar vê-se claramente no seguinte texto:
Por isso, talvez não se possa propor aos esposos cristãos melhor modelo que o das famílias dos tempos apostólicos: o centurião Cornélio, que foi dócil à vontade de Deus, e em cuja casa se consumou a abertura da Igreja aos gentios ; Áquila e Priscila[17], que difundiram o cristianismo em Corinto e em Éfeso, e que colaboraram com o apostolado de São Paulo[18]; Tabita, que com a sua caridade assistiu os necessitados de Jope[19]. E tantos outros lares de judeus e gentios, de gregos e romanos, aos quais chegou a pregação dos primeiros discípulos do Senhor[20].
Por isso, relativamente à particularidade do uso da expressão por São Josemaria, deve dizer-se que ele não ‘inventou’ uma nova expressão, porque ela já existia – como vimos – desde Santo Agostinho mas acrescenta alguns matizes que a fazem de certa maneira nova. Não é simplesmente uma categoria histórica, mas, sem deixar de o ser, entra em pleno na reflexão teológica e, concretamente, na espiritual. Por isso a característica que acrescenta São Josemaria é a nota teológico-espiritual: não se trata de uma mera referência à situação histórica dos começos da cristandade, nem de um mero bom exemplo a seguir. Inclui a sintonia interior com uma situação de proximidade aos primeiros passos da vida da Igreja e identifica-se a situação histórica pessoal com uma situação histórica coletiva. Mas, por outro lado, não é um termo técnico exclusivo, visto que, como vimos, há termos e expressões sinônimas e as fronteiras do tempo não estão estritamente fixadas.
A originalidade de São Josemaria em relação a Santo Agostinho é a capacidade de se sentir nessa situação viva: os primeiros cristãos não são algo que passou, mas uma situação que espiritualmente se pode repetir em qualquer cristão: basta que este se encontre animicamente próximo de Cristo. Mas esta originalidade é-o também se a compararmos com os outros autores espirituais: nenhum – que nós tenhamos podido examinar– viu nos primeiros cristãos um modelo vivo.
Concluindo, do ponto de vista histórico, como objetivo pessoal e desafio para os estudiosos da antiguidade, propomos que nos dediquemos a estudos sobre o cristianismo primitivo, que em nossa opinião se devem multiplicar, com a finalidade de conhecer a fundo a vida dos primeiros cristãos aprofundando assim nos ensinamentos de São Josemaria.
Jerónimo Leal é professor de Patrologia e História da Igreja Antiga na Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia da Santa Cruz
Resumo do artigo publicado em Annales Theologici, Revista da Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia da Santa Cruz, n. 16
[1] Para citar alguns casos, parte dos quais se estudam depois, encontram-se nos seguintes lugares: Caminho, 925, 971, 570, 799, 469; Sulco, 490, 921, 320; Forja, 10; É Cristo que passa, 153, 3; 96, 3; 66, 5; 30, 4-5; 131, 8; 134, 2; Amigos de Deus, 296, 1; 186, 3; 225, 2; 269, 1; 241, 2; Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 24, 7; 61, 1; 103, 2.
[2] Em outra ocasião afirma-se "’O mundo foi criado em vista da Igreja’, diziam os cristãos dos primeiros tempos” (Catecismo da Igreja Católica, 760, 1).
[3] Cf. J. L. ASTIGARRAGA. Concordancias de los escritos de Santa Teresa de Jesus, Vol. I, voz “cristão”, pp. 631-632.
[4] Trata-se do seguinte texto: Ao pousar os meus lábios sobre o pó purpurado pelo sangue dos primeiros cristãos, latia-me fortemente o coração. Pedi a graça de morrer também mártir por Jesus, e senti no fundo do coração que a minha oração tinha sido escutada… (SANTA TERESA DE LISIEUX, História de uma alma, 6, 65).
[5] Cf. A. HARNACK, Die Mission und Aasbreiiung des Cbristentums in den ersien drei Jaahrunderten, Leipzig 1902, tradução italiana Missione e propagazione del cristianesimo nei primi tre secoli, Cosenza 1986. pp. 296-314.
[6]P. POVEDA, Vivir como los primeros cristianos, Madrid 1995.
[7] AUGUSTINUS HIPONENSIS, De catechizandis rudibus, 24, 45 (CCL 46, pp. 168-9).
[8] AUGUSTINUS HIPONENSIS, Contra Faustum, 19, 17, (CSEL 25/1, p. 514).
[9] AUGUSTINUS HIPONENSIS, Sermo 43, 6 (CCL, 41, pp. 510-1).
[10] Cf. por exemplo, Amigos de Deus, 186, 3 e Caminho, 799:” O que a ti te maravilha, a mim parece-me razoável.– Por que foi Deus procurar-te no exercício da tua profissão? Assim procurou os primeiros: Pedro, André, João e Tiago, junto às redes; Mateus, sentado à mesa dos impostos... E– admira-te! - Paulo, na sua ânsia de acabar com a semente dos cristão” Caminho, 799.
[11] Por exemplo “primeiros discípulos do Senhor”. É Cristo que passa, 30, 4
[12] Numa ocasião emprega-se o sintagma “primeiros fiéis”: “E que meios temos?– Os mesmos dos primeiros fiéis, que viram Jesus ou O entreviram através dos relatos dos Apóstolos ou dos Evangelistas”, Forja, 10. Em outro lugar são os “primeiros fiéis cristãos”: “Saudai todos os santos. Todos os santos vos saúdam. A todos os santos que vivem em Éfeso. A todos os santos em Cristo Jesus que estão em Filipos”.– Que comovente esse apelativo– santos!– que os primeiros fiéis cristãos empregavam para se designarem entre si, não é verdade?”Caminho, 469.
[13] Caminho, 925.
[14] Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 24, 7
[15] Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 14, 2. Mas cf. também Caminho, 570 e este outro texto: “Vem agora a propósito recordar um episódio que põe em evidência o maravilhoso vigor apostólico dos primeiros cristãos. Não tinha passado um quarto de século desde que Jesus subira aos céus, e já em muitas cidades e povoados se propagava a sua fama. Chega a Éfeso um homem chamado Apolo, varão eloquente e versado nas Escrituras. Estava instruído no caminho do Senhor, pregava com fervor de espírito e ensinava com exatidão tudo o que dizia respeito a Jesus, embora só conhecesse o batismo de João” (Amigos de Deus, 269, 1). Outros textos em: É Cristo que passa, 96, 3. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 103, 2.
[16] Amigos de Deus, 225, 2.
[17] Cfr. At.10, 24-48.
[18] Cfr. At. 18, 1-26.
[19] Cfr. At. 9-36
[20] É Cristo que passa, 30, 4