Escrivá acredita profundamente no amor

Josemaria Escrivá é um homem de paz, não de confrontos. Ele acredita absolutamente no amor e não é inimigo de ninguém, diz Anna Biriukov, sobrinha bisneta de Dolores Ibárruri, entrevistada por Pilar Urbano.

Pilar Urbano. El Mundo, 27/3/2011

Convidaram-me para uma sessão de apresentação de Encontrarás dragões, de Roland Joffé, galardoado com um Óscar, realizador de A Missão, Terra sangrenta, Cidade da alegria, e outros. «Não é um biopic de Josemaria Escrivá», previne-me Ignacio Gómez-Sancha, o produtor. «A história decorre na Guerra Civil de Espanha, e há amor, ciúmes, jogos duplos, mentiras, ódios e perdão. Vamos ver Escrivá mais de gravata ou de camurcine do que de batina». E agora coisas práticas: «Vão assistir quatro pessoas: tu, um agente da bolsa, um catedrático de Filosofia e uma economista russa… que, por acaso, é bisneta da Passionária (Dolores Ibárruri)».

Dá-se um clic no meu cérebro. «Podias perguntar à russa se, depois da projeção, se deixaria entrevistar… sem ‘anestesia’?». Dentro de poucas horas, Gómez-Sancha dá-me a resposta: «Só há um problema: ela nunca prestou declarações». Melhor ainda, assim tenho eu o exclusivo.

Aviso o Pepe Ayma, que se apresenta na sala de projeção com a sua aparelhagem de fotografia, grande angular, zoom, tripé e… um pôster de Escrivá e outro da Passionária. Não sei de que malabarismos se terá ele servido. Passa o filme. E ali estamos, calados, na penumbra, apanhados pelos dragões. Até me esqueci da economista russa.

Chama-se Anna Biriukov. Ali eslava ela, loira, olhos claros. Aprumo e carácter. Uma mão cheia de apelidos espanhóis e russos. Em sexto lugar, Ibárruri.

- Dolores Ibárruri e a minha bisavó Bernardina eram irmãs. Em1937, quando a Guerra Civil de Espanha começou, Bernardina enviou para a Rússia três dos seus filhos mais pequenos, Amelio, Elsa e Sira, para os pôr a salvo. Eram bascos e saíram por Bermeo num dos navios de meninos da guerra. Aí distribuíram-nos por orfanatos. Dolores, a Passionária, que também fugiu para a Rússia, encarregou-se deles. Visitava-os nos orfanatos, levava-lhes roupa, alimentos, brinquedos, livros… carinho.

A minha mãe chama-se Dolores em agradecimento à Passionária

- Chamavam-lhes os meninos de Stalin. «Marcharemos atrás de ti, Stalin, pelo caminho que Lenine traçou...». Era uma marcha patriótica que se cantava nas casas de crianças espanholas da URSS.

- Passaram por tudo: a guerra espanhola, a guerra mundial… Aquelas crianças não voltaram a ver os pais. Para eles, a Passionária não foi a tia Dolores: foi uma verdadeira mãe. Passado tempo, Amelio foi para Cuba. Elsa e Sira ficaram na Rússia. Ali passaram a vida. Elsa é a minha avó materna. Em Stalingrado conheceu outra criança da guerra, Adolfo, filho de um mineiro asturiano. Formaram-se em Química na Universidade de Moscou. Apaixonaram-se, casaram e puseram o nome de Dolores à filha, em sinal de agradecimento à Passionária. Esta segunda Dolores, nascida e criada na Rússia, é a minha mãe. Esta é a saga.

- Então, sangue espanhol dos quatro costados?

- Não. O meu pai, Leonid Biriukov, os meus avós Vladimir e Raïsa, e todos os antepassados dele e dela são russos, russos… de todas as Rússias — ao ver que me rio, começa a rir.

-Tens alguma recordação da Passionária?

- Eu nasci em Moscou em 1975, e Dolores estava lá; mas depois de Franco morrer, passado pouco tempo voltou para Madrid. Quando ia a Moscou, visitava a nossa casa. Trazia-nos presentes de Espanha. Eu era pequena e sei mais pela história e pelo que se dizia dela na minha família do que por conhecimento pessoal.

Bisnetos bonitos e russos

- É curioso, Anna, no dia em que conheci a Passionária, ela falou-me de ti. Sem dizer o teu nome. Foi numa manhã de junho de 1977, nas primeiras Cortes da democracia. Cortes Constituintes. Ela presidia à Mesa de Honra. Fui cumprimentá-la no Salão dos Passos Perdidos. Impressionou-me a sua majestosa figura, alta, de luto, imponente. Perguntei-lhe: «Depois de tantos anos de vida lá fora, é importante para si voltar a sentar-se ali?». Respondeu-me rápida: «O importante não é sentar-se, mas sentir-se». E para aliviar a tensão, soltou uma gargalhada. Enquanto se ria, vi-lhe vários dentes de ouro. Disse-lhe uma brincadeira: «Esse é o ouro de Moscou?». Foi um tema muito debatido durante o franquismo: o Governo republicano tinha transferido para Moscou 510 toneladas de ouro, das reservas do Banco de Espanha, que nunca voltaram a Espanha. A Passionária ficou muito séria e respondeu-me: «Em Moscou não deixei ouro. Deixei algo de muito mais valor: um filho enterrado, uma filha viva, sobrinhos, netos, bisnetos… - aí começou a subir de tom gradualmente – altos, fortes, bonitos, comunistas, soviéticos!». Entre esses «bisnetos bonitos, comunistas, soviéticos » estavas tu, Anna.

- Sim, a minha educação foi comunista e ateia. Estudei em escolas soviéticas. Era o que havia, o normal. E alistei-me nas organizações do Partido. Era o que estava estabelecido. Se não, não nos carimbavam o cartão. Aos 7 anos entrei para o Oktiabriata, os Outubristas, organização infantil comunista, e deram-me a estrela vermelha de Lenine. Dois anos mais tarde, passei para o Pionery, Movimento de Pioneiros, onde me impuseram a insígnia e o lenço vermelho de atar ao pescoço com um nó especial. Aos dezesseis anos, quando devia entrar para o Komsomol, União Comunista da Juventude, começou a Perestroika, abrandou o rigor, as coisas mudaram bastante. E em 1992 viemos para Espanha. Mas enquanto vivi na Rússia, não me ensinaram democracia, nem economia de mercado, nem religião. Bem, há sempre uma avó que… Era eu pequena, a minha avó Raïsa, em vez de me dizer “vem aí o lobo”, dizia-me “Anna, Deus está a ver-te”, “Anna, isso que fizeste não agrada a Nossa Senhora”. Pequenos ditos, mas ia-me ficando a ideia de que havia alguma coisa mais.

- Quando vieste para Espanha, filiaste-te na Esquerda Unida?

- Não. Tinha 17 anos e concentrei-me nos estudos de Economia. Comecei a namorar com o Nacho. É engenheiro como o meu pai e o meu avô. É 9 anos mais velho do que eu. À minha futura sogra não lhe agradava a ideia de que o seu filho casasse com uma rapariga não batizada. Eu não tinha nada contra a religião católica, mas também não a conhecia.

Na Rússia nem jurei sobre a Bíblia, nem cuspi na Bíblia. Não havia Bíblia

- Não sei se reparaste, no início de Encontrarás dragões, aparecem duas legendas: uma diz que «em 1936 se deu em Espanha um golpe militar contra o Governo legalmente estabelecido»; a outra transmite o ambiente de crispação religiosa: «Era preciso jurar sobre a Bíblia, ou cuspir nela. E todos perguntavam: “De que lado estás?”».

- Na Rússia nem jurei sobre a Bíblia, nem cuspi na Bíblia. Não havia Bíblia, pura e simplesmente. Já em Madrid, por amor a Nacho, comecei a receber aulas de catecismo. Fui descobrindo o Antigo Testamento, o Evangelho, as riquezas espirituais da Igreja… Acima de tudo, fui-me encontrando com uma pessoa: Jesus Cristo. Foi um processo sereno. Não quis que fosse uma formalidade para me casar. Mais, só houve casamento três anos depois. Cheguei à fé racionalmente, com sinceridade, com liberdade. E com muita alegria. Bem, digo “cheguei à fé”, mas não cheguei sozinha. Deus levou-me. E recebi o baptismo.

- Consternação familiar russo-soviética?

- Hmmm… Não assistiram à minha festa. Tive pena, mas a liberdade tem esse preço. Eu sou a ovelha negra de uma família… vermelha. O meu pai foi batizado segundo o rito ortodoxo quando era pequeno, e nunca praticou. A minha mãe nem sequer foi batizada.

- Anna, desde ainda antes da projeção do filme que me pergunto a mim mesma: «Que faz aqui uma pessoa como tu?»

- Interessa-me a figura de Josemaria Escrivá, interessa-me o Opus Dei.

- Atreves-te a dizer isso, neste país do politicamente correto, sem o teu advogado estar presente?

- Interessa-me. E ponto final.

- Castiça!

- Conheci o catolicismo através do meu marido. E o Opus Dei, através dos meus filhos. Temos seis filhos. Queria que, além de uma educação escolar de qualidade, com bons professores, tivessem o que eu não tive em Moscou: uma formação cristã. Deus está acima de tudo, como iria encobri-lo aos meus filhos? Um primo do meu marido, que não é lá muito de ir à igreja, recomendou-nos dois colégios do Fomento, Aldeafuente e Aldovea.

- Aí, a formação religiosa está entregue ao Opus Dei. Não tinhas preconceitos?

- Não, porquê? Com preconceitos não se vai a lado nenhum. O que é preciso fazer é informar-se. Estou atenta e gostei do que via dia a dia nos meus filhos; e o que ouvia nas reuniões de pais dizia-me que ali havia qualquer coisa de mais sólida do que um mero projeto educativo. Decidi ir à fonte. Conhecê-lo…

- Encontraste dragões?

- Nem dragões, nem quartos escuros. Tudo claro como a luz do dia. Sente-se que nos movemos no campo da liberdade e do amor. Começa-se a pensar mais nos outros do que em si próprio. Descobre-se um caminho muito simples, que não sei qual a razão de nem toda a gente a ver, porque é elementar: o cristão tem de ser santo, não é? E a santidade constrói-se com o normal e o corrente. Ora bem, como não se trata de uma pessoa se inscrever num clube, mas de uma vocação, de um chamamento, é preciso aproximar-se e escutar quem chama.

- E?

- Deus fez-se ouvir. Não respondi imediatamente. Demorei. Então houve uma evasiva, um jogo de esconde-esconde. Mas Deus respeitou as minhas dúvidas, os meus temores. Até que um dia descobri o talismã com que seria capaz de tudo: a graça. E disse: “Aqui estou. Quero ser do Opus Dei».

- Uma bisneta da Passionária…! Que te disseram na Obra?

- Na Obra? Era como se estivessem à minha espera.

Escrivá e o seu Filme

Comemos umas tapas e comentámos Encontrarás dragões: a briga de Escrivá com outro seminarista, o espião infiltrado na frente vermelha, o amor entre Ildiko, membro das brigadas, e o anarquista Oriol, a traição, o parto na cabana, Josemaria com os doentes infecciosos do Hospital del Rey, Josemaria a flagelar-se junto da banheira…

- Há em Escrivá um instinto de superação dos antagonismos…

- Sim, isso vê-se em vários momentos. Quando o judeu Honorio está agonizante e rezam juntos ao mesmo Deus, um como judeu e o outro como cristão.

- Salmodia a duas vozes.

- Honorio entoa Shemá Yisrael, Adonai Eloeinu… «Escuta, Israel, o Senhor é o nosso Deus…» E Josemaria, «Pai Nosso, que estais nos céus...». E depois pisca o olho e diz-lhe: «O amor da minha vida é um judeu!».

- Há uma cena, quando desfecham dois tiros a um sacerdote em plena rua, e um dos rapazes da Obra lhes chama porcos…

- Josemaria atalha: «Porcos não. Homens como nós! Tu, mesmo agora, que lhes farias? Sê sincero… E não gostarias de o fazer? E não somos porcos, não é verdade?”.

- A frase de Escrivá «eu não estou em guerra» pode interpretar-se como uma postura neutral, indiferente, de evasão?

- Ele é um homem de paz, não de confrontos. Acredita profundamente no amor e não é inimigo de ninguém. Está à margem de grupos.

- Durante o saque e a queima de igrejas, vê-se Josemaria a abrir um sacrário, pegar na píxide com as hóstias, envolvê-la com um pano, apertá-la debaixo do braço e meter-se no metro a correr…

- É aí que um piquete o provoca com uma faca. Chamam-lhe parasita. Mas ele não se intimida e responde: «Parasita, não; eu trabalho».

- Quando já está dentro da carruagem, o revisor diz-lhe: «Para um burguês de m…, tens tomates».

- Surpreendeu-me a cena no banco do Retiro, quando está vestido como leigo, aproxima-se uma jovem para se confessar, e oferece-lhe a sua casa como esconderijo. «És muito bonita… Sou sacerdote, mas também sou um homem. Agradeço o teu gesto, mas… não».

- Isso aconteceu. Até lhe deram a chave dessa casa, e atirou-a para uma sarjeta.

- Morto o cão, acabou-se a raiva.

- Não te parece que, no filme, os estudantes entendem melhor o Opus Dei do que os bispos?

- Sim, quando Josemaria explica ao bispo que o Opus Dei é para homens e mulheres, solteiros e casados, sem hábitos, sem votos, sem viver em conventos, cada um na sua casa…, o bispo olha para ele como se estivesse a falar com um sonhador, e pergunta-lhe: «Isso não tem a ver um pouco com os protestantes?». Claro, a Obra era muito inovadora, revolucionária.

- Há uma sequência de Roland Joffé, que me parece magistral: Josemaria refugiado no manicómio do doutor Suils. À sua volta, loucas e loucos excitados pelos bombardeamentos. Uma rapariga mostra a Josemaria os pulsos com feridas recentes porque a ataram enquanto a violavam. Há um olhar frontal intenso. «Gosto de ti», diz ela. «Olhas-me nos olhos e não tens pena de mim». E ele: «Pena? não, acho que és extremamente valente».

- Josemaria é um sacerdote que olha para os olhos das pessoas e as vê como são de verdade, vê-as por dentro.

- A Passionária e Escrivá foram contemporâneos. Durante a Guerra Civil, ele vivia como um padre clandestino em Madrid dominada pelos vermelhos, e a Passionária arengava aos milicianos nas frentes. Achas que se conheceram?

- Ter-se-iam dado bem. Teria saltado uma chispa. Porque ambos eram grandes, fiéis aos seus ideais, de forte personalidade. E porque Dolores não teria escapado a Josemaria. Tenho a certeza. A Deus não escapou! Sei que Dolores se confessou antes de morrer.

- Então, devem estar juntos e... muito ativos.