“O cristão não adere a uma doutrina, mas segue e ama uma pessoa: Cristo”

Entrevista feita por Teresa Gutiérrez de Cabiedes a Mons. Fernando Ocáriz, publicada no semanário espanhol “Alfa y Omega”.

Monsenhor Ocáriz, com una família em Roma. Foto: Ismael Martínez Sánchez.

Cruza os braços e, então, abre um sorriso do qual brotam palavras tímidas, mas salpicadas de humor. Aos seus 72 anos, tem um bom backhand no tênis. Sua sobriedade expressiva é compensada com um olhar afável e profundo.

Na historia recente do nosso país (Espanha) o Opus Dei deixou uma marca profunda. Não só pela origem aragonesa do fundador, que propagou um carisma divino pelos cinco continentes. A sua presença influi fundamentalmente no âmbito educativo, público e, sobretudo, na vida cotidiana de milhares de pessoas comuns. É estimulante interrogar com profundidade o guia que lidera uma nova etapa.

Esta conversa se apresenta como um diálogo de coração a coração. Não é demais explicar aos leitores que começamos essa entrevista mendigando, com força, as bênçãos do Espírito Santo sobre estas palavras e o eco que elas poderão produzir. O desejo é perguntar com a mente daqueles que questionam; conversar com sinceridade corajosa e construtiva, com toda a confiança e franqueza possíveis.

Decorridos mais de cem dias da sua eleição como prelado da Obra, não sei se o parabenizo ou se manifesto as minhas condolências pela carga que caiu sobre os seus ombros. Como é ser pai espiritual de milhares de pessoas espalhadas pelo mundo inteiro?

Estou consciente de que recai sobre mim uma grande responsabilidade, mas estou tranquilo. Ajuda-me especialmente saber que Deus, quando dá uma missão, dá também a graça necessária para levá-la a cabo.

Conforta-me a proximidade e o afeto que o Santo Padre manifestou de maneira tão tangível, quando da minha nomeação e depois, quando tive a oportunidade de estar com ele

Além disso, conforta-me a proximidade e o afeto que o Santo Padre manifestou de maneira tão tangível, quando da minha nomeação e depois, quando tive a oportunidade de estar com ele. Sinto-me também sustentado pela oração e pelo carinho de muitos. Vem-me à cabeça uma carta que recebi de um jovem, que me brindava o oferecimento dos seus sofrimentos no hospital; de tantos membros do Opus Dei e de outras pessoas. Assim explico a serenidade que tomou conta de mim durante estes meses.

Depois de ser eleito prelado, os seus adversários nos jogos de tênis o deixam ganhar?

Penso que não; eu perceberia com facilidade e o jogo perderia a graça.

Recentemente fez a sua primeira viajem pastoral à Espanha para visitar fiéis e amigos do Opus Dei. Que mensagem desejava transmitir em tantos encontros face a face?

Nesta viagem à Espanha quis recordar, sobretudo que, como cristãos, temos de pôr Jesus Cristo no centro das nossas vidas. Como frisou Bento XVI numa frase da sua primeira encíclica (que o Papa Francisco gosta de citar), o cristão não adere a uma ideia, nem só a uma doutrina, mas segue e ama uma pessoa: Cristo.
Nesta viagem à Espanha quis recordar, sobretudo que, como cristãos, temos de pôr Jesus Cristo no centro das nossas vidas

Quis insistir nisso nesta viagem, pondo o acento no espírito próprio do Opus Dei, isto é, em que temos de levar a caridade de Cristo à vida cotidiana, à família, ao trabalho, ao relacionamento com os amigos.

O Opus Dei deu grandes frutos espirituais e sociais na Espanha. Mas também suscita controvérsia. Muitos encontraram a salvação de Deus graças a este carisma e são felizes. Também são numerosos os que contam (até publicamente) que a sua passagem pela Obra deixou feridas profundas. É possível que não se tenha feito bem alguma coisa?

Ao longo dos 22 anos que trabalhei ao seu lado, ouvi a dom Javier pedir perdão às pessoas que se sentiram feridas pelo comportamento de alguns dos seus filhos. Eu me uno a essa petição de perdão e desejo com toda minha alma, que essas pessoas curem as suas feridas e superem a sua dor.

São Josemaria costumava dizer que mantinha o afeto por todas as pessoas que se aproximaram do trabalho de formação da Obra, mesmo que fosse apenas por um breve tempo. Imagine o afeto que conservava pelas pessoas que chegaram a pertencer à Obra. Ele sentia uma profunda paternidade espiritual: nunca se deixa de querer bem a um filho ou a um irmão.

Ao longo dos 22 anos que trabalhei ao seu lado, ouvi a dom Javier pedir perdão às pessoas que se sentiram feridas pelo comportamento de alguns dos seus filhos. Eu me uno a essa petição de perdão

Convém considerar dois planos diferentes. Por um lado, a mensagem do Opus Dei representa um caminho aberto para seguir Cristo. Por outro, as atividades que realizam as pessoas e os Centros da Obra, em que, como é natural, influem as circunstâncias e os modos de ser. Certamente com um número tão grande de pessoas e atividades deve ter havido – com a melhor intenção – erros, omissões, descuidos ou mal-entendidos. Eu gostaria de pedir perdão por cada um deles.

O senhor fala do perdão. Uma das benções da fé católica é sabermos que a misericórdia de Deus nos acolhe apesar das nossas falhas. Mesmo quando esses erros desonram o seu nome. Talvez um dos momentos de maior júbilo da nossa historia aconteceu quando João Paulo II pediu perdão em nome dos filhos da Igreja universal.

Penso que não devemos separar a petição de perdão do louvor a Deus próprio do agradecimento, pela multidão de dons que derrama constantemente pela sua misericórdia e nos chegam através da mediação humana que se converte em instrumento da ação divina.

perdoar e pedir perdão são atitudes cristãs que não humilham, antes engrandecem

São João Paulo II deu-nos um grande exemplo, ao longo da sua vida, dessas duas dimensões que devem estar sempre presentes ao contemplar a magnificência de Deus e a debilidade dos homens. Assim aconteceu naquela jornada do Perdão que convocou durante o Grande Jubileu de 2000. E Bento XVI afirmou que o perdão é a única força que pode vencer o mal, que pode mudar o mundo. Em primeiro lugar, temos que pedir perdão a Deus. Além disso, penso que temos que incorporar à nossa vida, como algo habitual, o pedir perdão e perdoar. Repetimo-lo todos os dias ao rezar o Pai Nosso, mas na prática, esquecemo-lo com muita frequência. É certo que temos de respeitar a verdade, que não podemos pedir perdão acusando indireta e injustamente a outras pessoas com um mea-culpismo superficial. Mas perdoar e pedir perdão são atitudes cristãs que não humilham, antes engrandecem.

A cristandade ocidental vive um inverno vocacional preocupante. Ao mesmo tempo, existem botões de uma primavera na Igreja: frutos esperançosos em comunidades que amadureceram uma pedagogia da fé renovada. O Espírito impulsionou a passagem de uma ascética eminentemente voluntarista a um aprofundamento na gratuidade do amor de um Deus que procura, que não exige que o conquistemos com os nossos méritos, que precisa da nossa pobreza para estender sua misericórdia. Como se vive e se anuncia atualmente esta relação com Deus no Opus Deis?

O fundamento do espírito do Opus Dei é a consciência viva da nossa filiação divina. São Josemaria escreveu em Caminho: “Deus é um Pai cheio de ternura, de infinito amor. Chama-o Pai muitas vezes ao dia, e diz-lhe – a sós, no teu coração – que o amas, que o adoras; que sentes o orgulho e a força de ser seu filho.” O anúncio da relação com Deus no Opus Dei tem esse enfoque. Como escreve são João: “Considerai com que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos!”.

O fundamento do espírito do Opus Dei é a consciência viva da nossa filiação divina

Neste mundo nosso tantas vezes prisioneiro da cultura da queixa, saborear assim o amor de um Pai é crucial para viver com esperança.

Sempre, e especialmente nestes momentos, temos de ter muito presente esta maravilhosa realidade, que ajuda a superar os pessimismos que vêm ante os problemas da vida, a consciência dos nossos defeitos pessoais, as dificuldades da evangelização e inclusive ante da situação do mundo.

A paz do mundo depende mais do que cada um de nós contribuir, na vida diária, (sorrindo, perdoando, tirando importância a nós mesmos), do que das grandes negociações dos Estados

A nossa vida não é um romance cor de rosa, mas um poema épico. Saber que somos filhos de Deus nos ajuda a viver com confiança, gratidão e alegria. Convida-nos a amar este mundo nosso, com todos os seus problemas e com toda a sua beleza. A paz do mundo depende mais do que cada um de nós contribuir, na vida diária, (sorrindo, perdoando, tirando importância a nós mesmos), do que das grandes negociações dos Estados, por mais necessárias e relevantes que estas sejam.

Desde a sua primeira carta pastoral como prelado, insiste muito na centralidade de Jesus Cristo. Para não desvirtuar o cristianismo em ideologia, ou ritual bem-intencionado, necessitamos experimentar e reviver constantemente um encontro pessoal com o amor de Deus. Só como consequência disso brota a vida cristã e a graça na Igreja é superabundante. Como o Opus Dei deseja anunciar hoje esse querigma, que é uma boa notícia inesgotável?

Fundamentalmente através de uma amizade sincera: de pessoa para pessoa, que é sempre mutuamente enriquecedora. Para a evangelização, é essencial o valor do testemunho e compartilhar a própria experiência de vida: é muito mais eficaz que os discursos teóricos.
Para a evangelização, é essencial o valor do testemunho e compartilhar a própria experiência de vida

Logicamente, isto não exclui a multiforme iniciativa pessoal que dá origem também a atividades evangelizadoras muito variadas (Obras educativas, assistenciais, etc.), de algumas das quais a Prelazia se responsabiliza da sua orientação cristã e presta a atenção ministerial através dos seus sacerdotes.

O Opus Dei nasceu na Igreja com caráter profético. Porém, a morte do Fundador coincidiu com os primeiros anos do tsunami pós-conciliar. Parece lógico que a Obra tenha se segurado nos seus alicerces. Mas, é possível que tenham ficado alguns restos de entrincheiramento diante de tanta confusão e caos que viveu (e vive) a barca de Pedro?

A fidelidade a Deus é uma dimensão que sempre iluminou a história ao longo dos vinte séculos de cristianismo. A fidelidade à fé cristã, que é a fidelidade a Jesus Cristo, sempre foi dinâmica, inovadora e transformadora. Penso que, de fato, depois do Vaticano II, ao ver as consequências da “hermenêutica da ruptura” (como a denominou Bento XVI num famoso discurso), tenha aparecido essa tentação de entrincheiramento que menciona.

Na Igreja não há, não deve haver, bandos nem partidos, mas unidade dentro do legítimo pluralismo

Em todo caso, são reações conjunturais que é necessário superar – tanto a ruptura como o entrincheiramento. São consequência de ter cedido a uma mentalidade dialética, política, que é alheia à Igreja, porque divide e rompe a comunhão. Na Igreja não há, não deve haver, bandos nem partidos, mas unidade dentro do legítimo pluralismo.

O relativismo causa estragos na nossa sociedade desnorteada. A Obra é “famosa” pela sua fidelidade à Igreja e ao Papa. Isto significa uma bênção em tempos agitados. Afirmar a doutrina no meio da tormenta traz segurança; por outro lado, pode desembocar no desejo de ter tudo “regulamentado”. Como harmonizar a fidelidade sem fissuras à Lei divina com a liberdade gozosa dos filhos de Deus?

Surgem muitos problemas quando colocamos dilemas desnecessários ou reduzimos a realidade a estereótipos dialéticos. Fidelidade ou criatividade, ortodoxia ou liberdade, doutrina ou vida... Penso que temos de viver com uma atitude integradora que é, sem dúvida, muito cristã. A realidade não se deixa encerrar num esquema excludente. Exige de nós um equilíbrio, uma ponderação, uma integração que acaba sendo muito positiva também nas relações entre pessoas.

De fato, a dialética gera curtos-circuitos. Olhemo-lo sob um prisma mais integrador. O senhor gosta muito de Beethoven: Como seguir a partitura fazendo a própria interpretação?

Vejo perfeitamente compatível a fidelidade à doutrina com a abertura às inspirações do Espírito. A história da Igreja o confirma. É uma novidade permanente, que ao mesmo tempo não perde a sua identidade. Dentro deste contexto, considero importante a liberdade de espírito, que, evidentemente, não consiste na ausência de obrigações e compromissos, mas no amor. É o que santo Agostinho exprimiu na famosíssima frase “Ama e faz o que quiseres” ou como escreveu são Tomás de Aquino com uma linguagem diferente: “Quanto mais uma pessoa tem a caridade, tanto mais tem a liberdade”.

Então, uma fidelidade criativa supõe viver a liberdade de amar, desejando abrir-se à novidade perene do Espírito...

De fato, os modos de dizer e de fazer mudam, mas o núcleo, o espírito, permanece inalterado. A fidelidade nunca vem de uma repetição mecânica; realiza-se quando conseguimos aplicar o mesmo espírito em circunstâncias diferentes.
A fidelidade nunca vem de uma repetição mecânica; realiza-se quando conseguimos aplicar o mesmo espírito em circunstâncias diferentes

Isso implica, às vezes, manter também o acidental; mas em outros casos leva a mudá-lo. Nesse sentido, o discernimento sereno e aberto à luz do Espírito Santo é fundamental; sobretudo para conhecer os limites (às vezes não evidentes) entre o acidental e o essencial.

Outro risco da hipertrofia do zelo doutrinal na nossa Igreja é a proliferação de almas presas a um racionalismo que descarta a dimensão sensível na relação pessoal com Deus: como se viver a fé com o coração fosse cair no sentimentalismo. Como físico, atreve-se a anunciar uma equação para crescer na intimidade com Deus?

Os anos de estudo de teologia, a proximidade com determinadas pessoas, levaram-me a valorizar muito a luz da fé, também para o exercício da razão. Mas sem menosprezar a importância da dimensão sensível, do coração, das emoções, que são profundamente humanas. Nosso Deus é sempre próximo: e na Eucaristia Jesus Cristo se faz especialmente próximo à intimidade do nosso coração.

Um dos desafios mais importantes que apresenta a nossa época é recuperar o valor fecundo do silêncio. A Obra é perita em formar cristãos chamados a viver na presença de Deus no meio do mundo. Talvez são Josemaria nos ofereceu um dos atalhos ao convidar-nos a entrar no Evangelho, manancial permanente de sabedoria e paz, como um personagem mais. Como tocar em Jesus vivo, hoje e agora?

São Josemaria, ao aconselhar a entrar nos relatos do Evangelho como um personagem mais, transmitia a sua própria experiência. Deus lhe concedeu uma fé viva na encarnação, da qual surgia um amor ardente a Nosso Senhor, a seguir as pegadas da sua passagem pela terra e a vê-lo como modelo.

Podemos tocar em Jesus vivo em todas as ocasiões da existência diária. Principalmente, nos lugares privilegiados da presença do Senhor: nas crianças, nos pobres, nos enfermos...

Jesus Cristo, sendo Deus, ao ser e viver como um homem entre os homens, que cresce e se educa, vive num lar de família, trabalha, tem amigos, convive com os vizinhos, sofre e chora... Mostra-nos o valor de tudo o que é humano aos olhos de Deus e que a nossa vida corrente, vivida em união com Ele, tem, por isso, valor divino. Assim, podemos tocar em Jesus vivo em todas as ocasiões da existência diária. Principalmente, nos lugares privilegiados da presença do Senhor: nas crianças, nos pobres, com quem Ele quis identificar-se especialmente; nos doentes a quem o Papa chama a “carne sofredora de Cristo”; e de modo mais intenso, como indicava antes, na Eucaristia.

O Opus Dei goza da imagem de ter uma unidade forte, e isso é meritório. Porém, às vezes não se constata com facilidade a prática de uma autocrítica sadia. Suas primeiras palavras escritas aos fiéis da Obra glosavam a quantidade de boas obras (reais!) que tinham protagonizado juntos. Questiono se o falar só do bom e do ideal (e entendo que é preciso fazê-lo) talvez possa gerar um caldo de cultura propicio à autocomplacência ou levar ao idealismo de confundir o que se deseja ser (o carisma divino) com o que na realidade se está sendo (a pobre execução humana, tantas vezes).

A autocomplacência é sempre um perigo para quem deseja fazer o bem. E no Opus Dei, como todo o mundo, também temos que estar vigilantes perante esse perigo. Como dizia antes, trabalhei perto de dom Javier Echevarria durante mais de 20 anos. Ele costumava repetir que as pessoas da Obra não somos nem nos sentimos superiores a ninguém; que cada um é capaz de qualquer maldade.
Peço a Deus que nos livre da autoengrandecimento, contra o qual dom Javier nos punha em guarda com frequência, seguindo nisto também a São Josemaria

Mas não é suficiente a humildade pessoal, existe também uma humildade coletiva, institucional, que tem muitas manifestações: na maneira de falar, na admiração sincera pelos outros, etc. Por isso, quando reconhecemos as obras boas é para dar graças a Deus, que é quem no-las concede, não para jogar-nos confetes. Peço a Deus que nos livre da autoengrandecimento, contra o qual dom Javier nos punha em guarda com frequência, seguindo nisto também a São Josemaria.

Neste sentido, gosto da expressão que utiliza ao falar do Opus Dei como uma partezinha da Igreja. As famílias eclesiais, inspiradas pelo Espírito Santo, correm às vezes um risco. Na minha terra o chamamos não ver a um “palmo do nariz”, isto é, viver na miopia do culto à instituição, ao próprio carisma, ao fundador... Como evitar promover a marca da casa, e antepor a ela a face de Deus e a unidade com a Igreja?

A expressão partezinha da Igreja é de são Josemaria, que recorria a diminutivo típico da sua fala aragonesa (partecica), para exprimir o tom afetivo com que a empregava. A tentação da autorreferência está sempre à espreita de todo o mundo. Às vezes por um excesso de entusiasmo, às vezes por desconhecimento de outras realidades, ou por um ponto de vaidade. São Josemaria nos quis prevenir contra esse perigo ao lembrar-nos com frequência que a Obra existe só para servir à Igreja como a Igreja quer ser servida. Se servir à Igreja – expressão necessária do amor a Jesus Cristo – for sempre uma realidade na vida de cada um, iremos bem.

Questiono-me se às vezes rezamos pela união das religiões e esquecemos o ecumenismo intraeclesial. Um exemplo: a família é uma das grandes vitimas da nossa sociedade e, infelizmente, da nossa Igreja. Um exemplo. Na Espanha, diante de uma família numerosa, é frequente que perguntem: “Você é do Opus Dei ou do Caminho Neocatecumenal?” Mas muitos católicos comuns tem a impressão de que tanto uns como outros vão pelo seu trilho. Como conseguir que, sendo cada um fiel aos dons recebidos, aprenda a amar a riqueza dos outros como fruto da diversidade da ação de Deus?

Para amar, antes é preciso conhecer. Muitas divisões ou mal-entendidos no seio da Igreja se explicam pela falta de conhecimento. E em boa parte se resolveriam com uma maior aproximação da realidade. Além disso, amar a Jesus Cristo significa amar todo o mundo, especialmente os que de um modo ou de outro dedicam sua vida ao serviço do Evangelho. A alegria também é uma ponte sincera que une as pessoas por cima das diferenças.

Na linha do conhecer-se (primeiro ao que é próximo na fé), coloquemos uma hipótese. Que aconteceria se organizassem alguma atividade juntos? Por exemplo: Que aconteceria se um evento familiar fosse promovido pelos do Neocatecumenato e fiéis do Opus Dei, ou que a Juventude Estudantil da Comunhão e Libertação participasse num congresso UNIV, ou promovessem um ato religioso, lado a lado, com os Focolares?

Os católicos temos o risco, como adverte o Papa Francisco, de reduzir o apostolado a estruturas, atividades ou eventos, que em muitos casos não são particularmente eficazes para chegar ao coração e à cabeça de pessoas que não conhecem Jesus Cristo. O ponto central da Obra é dar uma boa formação cristã, para que cada um atue com liberdade e iniciativa, individualmente. Esses possíveis encontros a que se refere, às vezes poderiam ser úteis, e de fato em algumas ocasiões ocorrem, em particular quando são o Papa ou os bispos quem toma a iniciativa.
O ponto central da Obra é dar uma boa formação cristã, para que cada um atue com liberdade e iniciativa, individualmente

De qualquer forma, parece-me que, além de reunir-nos, sobretudo, nos encontramos nos lugares onde cada um desenvolve a sua atividade habitual: no âmbito do trabalho, da educação, da cultura, da empresa, da política. Lá, já estão trabalhando católicos de diferentes sensibilidades, e podemos colaborar em inúmeras iniciativas de evangelização: com sentido ecumênico, de braço dado com outros cristãos; e com espírito aberto, junto com outras muitas pessoas de boa vontade.

O próximo sínodo da Igreja estará dedicado à vocação dos jovens, um tema sobre o qual tem havido polêmica com o Opus Dei. Um bem intencionado afã apostólico pode ter forçado algumas decisões de entrega ou converter a missão numa tarefa em que é preciso apresentar resultados. Se foi assim, como evitar que volte a acontecer? Seria fecundo transcender o proselitismo e promover um apostolado de contágio?

Bento XVI e Francisco referiram-se ao proselitismo no sentido negativo que esta palavra adquiriu nos últimos tempos, especialmente no âmbito ecumênico, e explicaram muito bem em que consiste o apostolado cristão.

Quando uma mãe lhe pediu (a São Josemaria) que abençoasse o menino que levava em seu ventre, a benção foi esta: «Que sejas muito amigo da liberdade»

Naturalmente, o sentido com que São Josemaria empregava o termo proselitismo não era negativo; foi sempre um decidido defensor da liberdade. É possível que às vezes alguns tenham cometido os erros que menciona. Vem a minha memória, entre tantas manifestações práticas desse amor de São Josemaria pela liberdade, um pequeno pormenor, mas que considero muito significativo. Quando uma mãe lhe pediu que abençoasse o menino que levava em seu ventre, a benção foi esta: “Que sejas muito amigo da liberdade”.

Talvez a meta fosse que os outros se perguntassem: “De onde procedem a alegria e o amor que experimentam estas pessoas?”

De fato, não se trata tanto de fazer apostolado como de ser apóstolos. Por isso, repito que o testemunho é completamente necessário. Mas isso não exclui, antes exige a positiva transmissão do Evangelho, a proposta de seguir Jesus, que surge do amor aos outros e, consequentemente, com um pleno respeito à intimidade e à liberdade. Nisto, como em tudo, o exemplo de Jesus é luminoso e decisivo. Não só “passou por este mundo fazendo o bem”, mas foi explícito e muito direto nas suas propostas concretas: “Segue-me”, “Convertei-vos e crede no Evangelho”.

O Opus Dei passou a ser uma referência pelo seu investimento na educação em todos os níveis e em todos os continentes. Como é que se vive no mundo sem ser mundanos? Às vezes, em entidades mantidas por instituições religiosas se infiltra a lógica do sucesso e passam para um primeiro plano as metas da excelência ou os méritos tangíveis premiados pelos rankings. Como evitar que termine eclipsando a autêntica missão: mostrar cada vez mais e melhor a beleza da face de Deus?

Antes me referia ao perigo dos estereótipos dialéticos. Penso que quando algumas pessoas do Opus Dei promovem centros de ensino, aspiram a que sejam excelentes do ponto de vista profissional e, ao mesmo tempo, a que se ofereça uma excelente educação cristã sempre respeitando a liberdade dos estudantes e de suas famílias.
trata-se de confirmar com obras que o fato de ser cristão não leva consigo o descuido dos valores humanos, antes pelo contrário

Não só não existe contraposição como, pelo contrário, o espírito cristão requer integração. Visto por outro ângulo, trata-se de confirmar com obras que o fato de ser cristão não leva consigo o descuido dos valores humanos, antes pelo contrário.

Receio não me ter expressado bem. Não é tanto o dilema: “êxito humano” ou “mostrar Deus”. Também não me referia especificamente aos apostolados da Obra. Vivemos num clima de laicismo beligerante em que é fácil pensar que falar de Deus tornou-se perigoso e é melhor deixá-lo na letra pequena, ou acrescentá-lo ao final, como um aditivo postiço. Como enfrentar esse desafio de falar Dele com naturalidade, com paixão, sem complexos, mostrando-o como o amor bendito que mantém a nossa vida e os nossos empreendimentos?

Evidentemente, temos a sensação de viver em tempos de insegurança. E ao mesmo tempo percebem-se grandes desejos de mudança. O nosso mundo parece afastar-se de Deus e, no entanto, observa-se tanta sede espiritual...; tememos os conflitos, enquanto manifestamos grandes desejos de paz. A ação de Deus realiza-se hoje e agora, nos tempos que nos corresponde viver, e tomara que nos abramos a ela! Quando alguns pensadores falam de que se tornaram líquidas as relações interpessoais na nossa sociedade, e apontam para o nosso naufrágio no efêmero e no superficial..., isso não pode levar-nos ao pessimismo ou amargura, mas estimular-nos a contagiar a alegria do Evangelho.

Pode ser que um dos primeiros passos seja assumir que não importam tanto os números como a graça. Viver um cristianismo de minorias, mas com a fé imbatível de um grão de mostarda...

Estou persuadido de que um dos desafios mais importantes da Igreja de hoje é dar esperança a cada pessoa, especialmente aos mais jovens, às famílias que sofrem dificuldades ou ruptura, e as vítimas da pobreza (não só material, mas tantas vezes em forma de solidão ou de vazio existencial).

Estou persuadido de que um dos desafios mais importantes da Igreja de hoje é dar esperança a cada pessoa

Enfrentar este desafio, contando com as nossas limitações pessoais e pecados, só é possível revivendo sob o olhar misericordioso de Jesus e rogando-lhe que nos envie a levar o seu amor aos nossos contemporâneos.

A Igreja quis para a Obra a forma de uma prelazia pessoal a serviço da Igreja universal e das Igrejas particulares. Mas não poucas vezes é vista como uma realidade extradiocesana. É verdade que muitos sacerdotes da prelazia estão amenizando a escassez de sacerdotes diocesanos. Mas, em termos práticos, o fato de que os fiéis da Prelazia tenham meios de formação em centros próprios, seus confessores, suas obras apostólicas... Pode propiciar que vivam à margem da vida diária da paróquia. Como enfrentar o desafio de serem pedras vivas (integradas e não só coladas) na estrutura da Igreja?

Talvez nesse ponto aconteça que, quando se fala da Obra, se pense especialmente nos sacerdotes da Prelazia, ou nos numerários. Mas a maioria dos fiéis da Obra são supernumerários, que participam ativamente na vida de suas paróquias, na medida das suas possibilidades (conjugando suas obrigações profissionais e familiares). Nem sempre é fácil ter tempo, e cada qual faz o que pode. Por outro lado, os sacerdotes da Sociedade da Santa Cruz são sacerdotes diocesanos dedicados plenamente às tarefas pastorais de suas dioceses. Em minha opinião, com o passar do tempo, ficará mais clara essa dimensão eclesial talvez hoje menos conhecida.

Às vezes precisamos considerar mais que a Igreja é o corpo místico de Cristo. E que cada um, com a sua vocação – pela comunhão dos santos – contribui para o caudal de graça. Mas eu me pergunto se outro dos grandes desafios na nossa Igreja não é que as paróquias se enriqueçam mais e melhor com os carismas que o Espírito Santo vai suscitando. Penso que é preciso um esforço de ambas as partes, e superar preconceitos, saindo mutuamente ao encontro.

Nesse sentido, pode ajudar–nos uma mudança de atitude. Em vez de contabilizar o que cada um faz, dar graças ao Senhor porque todos somamos. Na primeira carta que escrevi como prelado, penso que fui claro a esse respeito: “Desejo animar a alguns fiéis da Prelazia, cooperadores e jovens, a oferecer-se para colaborar, com plena liberdade e responsabilidade pessoais, em catequeses, cursos pré-matrimoniais, trabalhos sociais, nas paróquias e noutros lugares que precisarem, sempre que se trate de serviços de acordo com a sua condição secular e mentalidade laical, e sem que isso dependa para nada da autoridade da Prelazia. Por outro lado, quero fazer uma menção especial às religiosas e aos religiosos, que tanto bem tem feito e fazem à Igreja e ao mundo. “Quem não amar e venerar o estado religioso, não é bom filho meu”, ensinava-nos o nosso Padre. Alegra-me, além disso, pensar em tantos religiosos, além de sacerdotes diocesanos, que viram florescer sua vocação ao calor do ambiente apostólico da Obra”.

Vem-me à cabeça, também, algo que costuma questionar-se da Obra. Um aspecto da sua prática pastoral. O fato de que homens e mulheres estejam separados, tão eficaz e necessário às vezes, é uma característica do carisma fundacional? Talvez pareça antinatural quando não admite exceções? Externamente, pode perceber-se como que uma norma que asfixia as iniciativas sãs que surjam naturalmente e/ou que facilitem a convivência dos jovens, a partilha espiritual dos casais...

Na Obra, a separação entre mulheres e homens se limita aos meios de formação, aos centros em que se dá essa formação, à organização dos diversos apostolados. Nesses casos a separação é uma característica do carisma original, que tem razões pastorais bem experimentadas, ainda que compreenda que algumas pessoas não o compartilhem e prefiram outros modos de atuar, igualmente legítimos. Com exceção desses meios de formação, há múltiplas atividades em que participam mulheres e homens: cursos para casais ou para noivos, sessões para pais e mães de família nos clubes juvenis, iniciativas das paróquias administradas pelos sacerdotes da Prelazia, etc. Para não falar das inúmeras atividades informais que surgem da própria iniciativa e da criatividade das famílias. O importante, em minha opinião, é que homens e mulheres casados recebam a formação como uma ajuda para reforçar o seu casamento e a sua família; com esse desejo é que os meios de formação da Obra são oferecidos.

Vivemos tempos tensos e ao mesmo tempo apaixonantes. Penso nos lugares onde a Igreja é perseguida. Também lá, entre os missionários do século XXI, há muitos membros do Opus Dei anunciando a Deus. Na velha Europa vivemos um pouco anestesiados. Como aliviar o martírio de tantos irmãos nossos que estão dando a sua vida por Cristo?

Em primeiro lugar, acompanhando-os com a oração. Não podemos acostumar-nos a essas noticias que, infelizmente, acontecem todos os dias. São Josemaria, que sentia vivamente tudo o que afetava a Igreja, denunciava a “conspiração do silêncio” que pesava sobre os cristãos perseguidos, especialmente os que então viviam atrás da cortina de ferro. Pediu às pessoas da Obra – e penso que é um conselho que serve para todos os católicos – que enfrentássemos o silêncio com a informação, dando a conhecer o que acontece aos cristãos perseguidos, e ajudando-os na medida das nossas possibilidades. A informação é vital, porque dar a conhecer a realidade pode mover-nos a ajudar de maneira mais generosa e ativa.

A informação é vital, porque dar a conhecer a realidade pode mover-nos a ajudar de maneira mais generosa e ativa

Às vezes temos a sensação de viver num mundo órfão. Que pediu à nossa Mãe na sua viagem a Fátima?

Na sua presença materna, fui recordando alguns desafios deste nosso mundo, tão complexo como apaixonante. Pedia-lhe a graça de levar a todos o Evangelho na sua pureza original e, ao mesmo tempo, na sua novidade radiante. Numa mensagem posterior dirigida aos meus filhos, escrevia algo que penso que pode servir-nos: “a chamada para que cada um de nós se esforce – com os seus recursos espirituais e intelectuais, com as suas competências profissionais ou a sua experiência de vida, e também com os seus limites e defeitos – para ver os modos de colaborar mais e melhor na imensa tarefa de colocar Cristo no cume de todas as atividades humanas. Para isto, é preciso conhecer profundamente o tempo em que vivemos, as dinâmicas que o atravessam, as potencialidades que o caracterizam, e os limites e injustiças, às vezes graves, que o afetam. E, acima de tudo, é necessária nossa união pessoal com Jesus, na oração e nos sacramentos. Assim, poderemos manter-nos abertos à ação do Espírito Santo, para bater à porta dos corações de nossos contemporâneos”.

Penso que estas palavras encerram bem uma conversa em que desejaria abordar mais temas. Mas é preciso parar por aqui. Agradeço de coração o tempo que me dedicou. Obrigada pela franqueza e por não rejeitar perguntas incômodas. Obrigada por termos tentado, juntos, construir pontes.

Eu também lhe agradeço o tempo que me dedicou. Além disso, foi ótimo falar num clima de liberdade, abertura e afeto, em que sempre aprendemos uns com os outros. Fico contente de que me tenha feito algumas perguntas que talvez pudessem parecer incômodas, mas que foram ocasião de abordar aspetos interessantes e que, além disso, estavam motivadas por um reto e sincero desejo de cooperar para a difusão da verdade. Ao dizer isto, vêm-me à cabeça umas palavras da terceira carta de São João: “Cooperadores da verdade”, que Joseph Ratzinger escolheu como lema episcopal.

Graças a Deus! Obrigada também pela sua dedicação para guiar espiritualmente milhares de pessoas de todas as raças e condições, por toda a terra. Porque precisamos continuar construindo, com a alegria do Evangelho, as famílias, a Igreja e este bendito mundo nosso.

Teresa Gutiérrez de Cabiedes

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Texto original: Alfa y Omega «Podemos “tocar” a Jesús vivo en todas las ocasiones de la existencia ordinaria» (Baixar a entrevista ao prelado do Opus Dei, em PDF)