Dom Rafael: "Tive a oportunidade única de trabalhar perto de São Josemaria"

Apresentamos alguns trechos de livros de Dom Rafael Llano Cifuentes, em que recorda o que aprendeu de São Josemaria Escrivá, o fundador do Opus Dei.

São Josemaria Escrivá no Brasil (1974) e Dom Rafael Llano Cifuentes

Juventude para todas as idades

Tive a oportunidade única de trabalhar perto de São Josemaria - na sua secretaria pessoal - durante cerca de três anos. Eu mesmo pude comprovar como reagia com alegria e bom humor perante as contrariedades que experimentava e que não eram poucas. Às vezes, quando chegava ao fim do dia cansado e procurava espairecer nuns breves minutos de conversa com algum dos seus filhos, telefonava-me e dizia-me num tom divertido: “Estou um pouco cansado..., conte-me uma piada”. E eu contava-lhe uma piada o melhor que podia. Às vezes, porém, dizia-me rindo: “Essa piada não tem graça nenhuma. É horrível. Conte-me outra”. Como isso acontecia com certa frequência, eu tinha já preparada de antemão uma lista de anedotas. E ia contando uma após outra, até que chegava a uma em que, dando uma gargalhada, dizia: “Esta foi muito boa, meu filho, muito obrigado: valeu!”

Essa alegria e esse bom humor eram uma das características mais marcantes de São Josemaria, que chegou a escrever estas palavras tão significativas: “A nossa missão é tornar alegre e amável o caminho da santidade no mundo”[1]. “Perder o bom humor é coisa grave. Bom humor até no momento da morte”[2]. “Um filho de Deus tem o direito e o dever de não perder nunca a alegria, aconteça o que acontecer”[3]. Assim viveram os santos: procurando nunca perder a alegria e tomando simpática e agradável a vida daqueles com quem conviviam.

Não Temais... Não vos preocupeis

Quando não vivemos ao lado do Pai, quando perdemos a consciência da filiação divina, sentimo-nos com frequência dominados por um sentimento de desamparo, de medo, de solidão. A esse respeito tive uma experiência pessoal à qual já fiz referência em outra ocasião. Pregava um retiro numa fazenda de Miguel Pereira, próxima ao Rio de Janeiro, e estando já deitado, escutei um gemido lancinante que provinha do jardim. Procurei cobrir-me bem com o cobertor, para não ouvi-lo e poder dormir. Mas não conseguia. Era um lamento agudo, persistente. Parecia o pranto de uma criança. Que estranho! Levantei-me. No meio da noite escura o lamento parecia-me mais dramático e menos humano. Fui me aproximando pouco a pouco, enquanto o gemido lastimoso ia aumentando. De repente, encontrei no meio da relva um cachorrinho assustado, abandonado e tremendo de frio. Então, dei-me conta de que a cadela da fazenda — a “Baronesa”, como a chamavam — acabava de ter seus filhotes. Recolhi entre as minhas mãos um deles e o coloquei à altura de meu rosto. Continuava gemendo, e com seus pequenos olhos parecia me perguntar: “Quem é você?”. E eu lhe respondi: “Sou seu amigo, não se preocupe que vou levá-lo a sua mãe”. E comecei a acariciá-lo, enquanto ele agitava alegremente o rabinho e farejava meu rosto. Começou a lamber-me uma e outra vez. Confesso que fiquei encantado. Comecei a sentir uma ternura que poderia chamar de paterna. A solidão, o abandono e a fragilidade dessa criaturinha, na escuridão e no frio da noite, fazia-me sentir verdadeiramente enternecido. Coloquei, então, o cãozinho no peito da “Baronesa” e ele começou a mamar esfomeadamente. Poucos minutos depois estava dormindo tranquilamente, debaixo do olhar protetor de sua mãe.

Já deitado novamente, invadiu-me uma profunda emoção. E pensei: se eu, que não tenho nada a ver com esse animalzinho, senti uma ternura tão grande diante de sua tristeza e de seu abandono, quanto mais sentirá por mim, no meio dos meus gemidos, o Pai que me criou, que me escolheu para si “ante mundi constitutionem” (Ef 1,4) — antes de criar o mundo — e que me amou a ponto de entregar seu Filho para morrer por mim numa cruz. Foi então que, pela primeira vez, de modo espontâneo, comecei a clamar: Abba, Abba, papai, papai, papai... e não conseguia parar. Foi, sem dúvida, o Espírito Santo. Agora, quando me sinto só, recordo-me de um pobre cachorrinho gemendo no meio da noite e, como por reflexo condicionado, vêm-me aos lábios estas palavras: papai, papai, papai.

Talvez essa vivência seja um reflexo da profunda experiência que teve um sacerdote, do qual aprendi quase tudo o que espiritualmente sei, com o qual convivi durante anos e que agora tenho a ventura de vê-lo nos altares. Escutei, em várias ocasiões, de São Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei, a narração de sua experiência, vivida no meio de suas primeiras contrariedades, que foram muitas, da incompreensão de tantos e da incapacidade que sentia para realizar a Obra divina que Deus lhe havia encomendado. O fato, que aconteceu no dia 16 de outubro de 1931, nos foi narrado diretamente por ele: “Senti a ação do Senhor que fazia germinar no meu coração e nos meus lábios, com a força de algo imperiosamente necessário, esta tenra invocação: Abba! Pater! Estava na rua, num bonde [...]. Provavelmente fiz aquela oração em voz alta. E andei pelas ruas de Madri, talvez uma hora, talvez duas, não posso dizer ao certo, o tempo se passou sem eu sentir. Deveriam tomar-me por louco. Estive contemplando com luzes que não eram minhas essa assombrosa verdade, que ficou acesa como uma brasa na minha alma, para não se apagar nunca”[4].

Naquela jornada, num dia de muito sol, não só soube, senão que sentiu a profundidade misteriosa da filiação divina, que, por impulsos do Espírito Santo, no meio da rua, fazia-lhe clamar: Abba, Pater! Abba, papai! E essa consciência da filiação divina foi o fundamento de sua vida espiritual e a enorme força com a qual conseguiu superar todas as dificuldades, como a torrente das águas ultrapassam todas as montanhas: “inter médium montium pertransibunt aquae” (Sl 104,10), palavras estas que o próprio Espírito Santo gravou, a fogo, no fundo de sua alma[5].

Abba, é a palavra que as crianças hebraicas utilizavam para dirigir-se familiar e carinhosamente aos seus país: abba, papai, papaizinho, os primeiros cristãos quiseram conservar, sem traduzi-la, a mesma palavra aramaica com que Jesus rezava. Que entranhavelmente humano o fato de Jesus dirigir-se ao Pai grandioso e onipotente com essa palavra! Abba, papai. E quão amável é também o fato de nos dirigirmos a ele da mesma maneira: papai, ajuda-me, papai, estou nas tuas mãos...

Viver na paz

Lembremo-nos das nossas atitudes precipitadas, das nossas irritações destemperadas, das palavras que não deveriam ter sido proferidas no momento em que nos sentíamos feridos nas nossas fibras mais íntimas, da voz que se eleva e se torna cada vez mais estridente, das palavras que, sem sabermos como, se vão inflamando a ponto de dizermos coisas que mais tarde nos enchem de vergonha... Lembremo-nos de todas essas coisas para compreender que a calma e o silêncio são nesses casos um sinal de maturidade e de fortaleza, uma verdadeira conquista.

São Josemaria Escrivá ensinava-nos no dia a dia, no convívio familiar, inumeráveis lições de mansidão. Acompanhei de perto um incidente trivial, mas significativo. O santo estava trabalhando intensamente, com a mesa cheia de fichas que ia ordenando para completar o que escrevia. De repente, alguém abriu a porta e estabeleceu-se uma corrente de ar que jogou algumas das fichas ao chão. Naquele momento, como é natural, experimentou certa impaciência; mas, para não ceder a esse movimento interior desordenado, levantou-se, jogou decididamente o resto das fichas no chão, e depois foi recolhendo-as enquanto dizia calmamente: “Josemaria, pelos teus filhos; Josemaria, pelos teus filhos...”

A seguir, continuou a trabalhar como se nada tivesse acontecido. Com esses exercícios e muitos outros semelhantes, esforçava-se por dominar o seu temperamento naturalmente vivaz. É mais fácil aceitar mansamente uma contrariedade material do que uma situação criada por uma falha ou desleixo alheio. Resignar-me sem cólera a chegar tarde a um encontro porque o meu carro enguiçou é mais fácil que aceitar que a esposa me faça chegar atrasado porque ficou um tempão arrumando-se ou falando ao telefone. Os aborrecimentos causados por outras pessoas, e especialmente pelos seus defeitos e limitações, são mais difíceis de aceitar do que aqueles que provêm de eventualidades fortuitas ou materiais.


[1] Registro Histórico do Fundador, 20043.

[2] Ibid., 20045

[3] Cfr. José Luis Soria, Mestre de bom humor. Quadrante. São Paulo, 2002, pág. 28

[4] Citado por A. Vázquez de Prada, El Fundador Del Opus Dei. Madrid, Ediciones Rialp, 1997, v. 1, p.390.

[5] Cf. Llano Cifuentes, R. A força di sacerdócio no Espírito Santo, Rio de Janeiro, Marques Saraiva, 1998. PP. 32-35.