Autoestrada para o Céu

O semanário católico polaco Niedziela (Katarzyna Zdrzenicka) entrevistou a portuguesa Maria Hermínia Rocha, que vive em Varsóvia desde os inícios do trabalho apostólico estável do Opus Dei nesse país. Ocasião para partilhar algumas das suas recordações que guarda das vezes em que esteve com S. Josemaria em Roma e em Portugal.

Conheci S. Josemaria no dia 5 de Janeiro de 1964 quando, depois de ter terminado o curso universitário, saí de Portugal para Roma a fim de receber uma formação mais intensa no espírito do Opus Dei, e ao mesmo tempo fazer um Curso de Pedagogia. Antes de partir para Castelgandolfo, onde funcionava então o Instituto Internacional de Ciências de Educação, dependente da Faculdade de Letras da Universidade de Navarra, o Fundador quis conhecer as novas alunas. Chamou-me a atenção a sua vivacidade e o modo tão carinhoso de se dirigir a cada uma de nós. Interessou-se por saber de onde era cada uma, e aconselhou-nos a estudarmos, a sermos muito piedosas, sinceras e alegres, e que depois ver-nos-íamos mais tarde.

Encontros “lá em cima”

Embora vivêssemos a certa distância de Roma, cumpriu a sua promessa. Durante os dois anos e meio em Itália foi “lá a cima” muitas vezes. Costumava exprimir-se assim pois Castelgandolfo é uma localidade no cimo de um pequeno monte sobre o Lago Albano. Como sempre, acompanhavam-no D. Álvaro del Portillo e D. Javier Echevarría, atual Prelado do Opus Dei. Embora, desde então, já tenham passado tantos anos, conservo presentes na memória temas concretos de que nos falou. Nessa altura eu era bastante nova, mas compreendia que eram assuntos muito importantes, que o Padre queria transmitir-nos para nos ficarem gravados no coração. Vou centrar-me nalguns aspetos, já que não é possível contar tudo.

Cada visita sua permitia-nos compreender que o Opus Dei é uma família, que existe um Pai que conversa com todas, que olha para cada uma das suas filhas com um sorriso sincero, que pergunta se alguma está doente, se todas comem bem e dormem, se estão contentes, se estudam, se há os livros suficientes, etc. Chamava a atenção a sua especial preocupação e delicadeza com aquelas que vinham de países muito distantes e de outras culturas, por exemplo do Japão, e quase não falavam nem castelhano nem italiano. Levava-nos sempre bombons, e algum presente para a decoração da casa. Os encontros com S. Josemaria eram sempre muito animados e alegres; às vezes também cantávamos, ou alguém contava um episódio. O Padre tinha muito bom humor e conseguia divertir-nos. Esses encontros eram também ao mesmo tempo uma constante lição prática do espírito da Obra. Aproveitava cada circunstância para fazer-nos conscientes da necessidade de cuidar as coisas pequenas, que são expressão do amor a Deus e ao mesmo tempo nos levam a praticar uma virtude concreta. Por exemplo, ensinou-nos como devemos abrir e fechar as portas de forma que não se estragasse a maçaneta da porta; reparava imediatamente quando as persianas de madeira das janelas não estavam presas e batiam na parede do edifício com o vento, ou quando os fechos das janelas estavam tortos; ensinou-nos que os móveis de madeira em contacto direto com o chão de pedra ou mármore se podiam estragar devido à humidade, e se podem colocar sobre um pequeno estrado de madeira, forrado de tecido. Ensinou-nos como colocar elementos de decoração de modo estético e aproveitando o espaço – por exemplo os leques orientais que muitas vezes nos levava –, etc.

Durante os nossos encontros de família, falava sempre de algum tema concreto para afiançar-nos no espírito sobrenatural da vocação para o Opus Dei. Dois temas deixaram-me especial marca na minha memória.

Falava-nos muito da essência da nossa vocação no Opus Dei: explicava a normalidade da nossa vida, semelhante à vida das outras pessoas, e no entanto diferente. Esclarecia-nos quanto ao caráter secular do caminho no Opus Dei, que devíamos defender, pois tal era a vontade expressa de Deus; dizia-nos que éramos cidadãos iguais a todos os outros, e ninguém poderia obrigar-nos a ser aquilo que não éramos. Deus pedia-nos a plenitude da vida cristã no meio do mundo. Várias vezes o ouvi dizer: “Só me interessam as vossas virtudes”. Explicava com pormenor o novo fenómeno da vocação divina no meio do mundo, permanecendo cada qual no seu lugar para santificá-lo a partir de dentro; dizia em latim: “ab intra”. Isso era o Opus Dei, querido por Deus, não inventado por um homem.

Contou-nos que uma vez na Santa Missa, durante a elevação do cálice, ouviu no fundo da sua alma as palavras: “Et ego si exaltatus fuero a terra omnia traham ad me ipsum" - “E eu, quando for levantado sobre a terra, atrairei tudo a Mim”- Colocar Cristo no cimo da cada trabalho, de cada atividade humana, essa era a nossa missão. Considero uma grande graça ter ouvido dos seus lábios a explicação de vários aspetos da nossa vida, tanto ascéticos como apostólicos. O nosso Padre falava com completo convencimento sobre o que é a Obra, porque a “viu”. A propósito de vocação, muitas vezes nos falou da liberdade, da liberdade dos filhos de Deus, que não está em antagonismo com a entrega, pelo contrário, é necessária para viver a entrega. Liberdade que temos obrigação de respeitar e defender, tanto a nossa própria como a alheia.

O outro tema que me tocou profundamente, porque era muito evidente no Padre, foi o amor à Igreja e ao Santo Padre. Amor que exprimia não só em palavras mas com a sua atitude e carinho. De cada vez que tinha algum encontro com o Papa – era então Paulo VI – pedia-nos que rezássemos. Eram os últimos anos do Concílio Vaticano II, e lembro-me de que em Roma se viam muitos bispos e cardeais. Pedia-nos que rezássemos pela Igreja. Via-se que sofria pela errónea interpretação do Concílio nalguns campos e pela desobediência de algumas pessoas, embora nunca perdesse a paz nem a alegria habituais. Falava-nos do amor incondicional ao Papa, quem quer que fosse, da necessidade de uma obediência filial na expansão do reino de Deus, sempre em união com o Santo Padre. Fazia-nos conscientes da necessidade de fidelidade e lealdade, e de sermos sempre muito piedosas. Preocupava-se pela nossa formação doutrinal e espiritual, pela qualidade das leituras.

Gostava de dar alegrias ao Santo Padre. Lembro-me da visita de Paulo VI ao Centro ELIS -Centro de preparação profissional técnica para rapazes -, durante a sua inauguração em Novembro de 1965. Trata-se de uma obra corporativa do Opus Dei no Tiburtino, então um bairro pobre de Roma.

Ao lado está a igreja paroquial, também confiada a sacerdotes da Obra. Aí o Santo Padre celebrou a Missa por intenção de toda a paróquia, à qual assistiu muita gente. Nesse mesmo complexo de edifícios, encontra-se a Escola hoteleira SAFI – que atende os serviços daquele Centro de Formação profissional-, e cuja direção foi confiada a mulheres do Opus Dei; o Santo Padre pôde também visitá-la. São duas iniciativas sociais de grande envergadura. São Josemaria estava muito comovido e dirigiu ao Santo Padre palavras cheias de gratidão. Também Paulo VI exprimiu a sua satisfação pela existência destas escolas. Recordou que nos anos do após guerra, sendo ele secretário de SS. Pio XII, passando um dia por aquele bairro, uns rapazitos lhe pediram trabalho; perguntando-lhes que sabiam fazer, responderam: tudo! Ou seja, não sabiam fazer nada… Agora acabava de surgir a resposta adequada às necessidades daqueles rapazes: possibilidade de estudo e aprendizagem para ingressarem no mundo do trabalho.

Falava-nos também da necessidade de valorizar o trabalho da mulher, e garantir a possibilidade de uma preparação adequada às mulheres que se ocupam da casa. Muitas vezes nos falou do seu sonho de que houvesse muitas escolas que dessem essa espécie de qualificação e certificação. Em vários países surgiram escolas desse tipo Quando regressei a Portugal tive oportunidade de trabalhar também, com outras pessoas, nos começos de uma escola de formação profissional para a mulher.

Hoje são uma realidade em todo o mundo, e muitas destas escolas têm nível universitário.

Em Portugal

Mais tarde, já no meu país, vi S. Josemaría nos anos 1967 e 1972. Evidentemente, recordo-me de algumas situações impossíveis de esquecer. Por exemplo, durante a primeira dessas viagens, a cordialidade com que se dirigiu por uma parte a duas estudantes muçulmanas que viviam na residência do Porto, e sincera amizade com que entabulou um diálogo com um eclesiástico não católico. Essas atitudes confirmavam a sua cordial abertura ante todos, independentemente das diferentes convicções, crenças, opiniões, etc.

Em 1972 o Padre realizou durante dois meses a – assim chamada - Catequese na Península Ibérica. Foi uma autêntica sementeira de doutrina relativamente ao matrimónio, à Família, à educação dos filhos, à Confissão e à Eucaristia, etc. Falou muito de oração, do Espírito Santo e da Sua ação na nossa alma, de vida interior. Utilizou então uma comparação, que o Opus Dei é como uma autoestrada que permite chegar rapidamente ao Céu. Comentou-nos a expressão “relictis omnibus" – deixar tudo - do Evangelho para realçar a necessidade do desprendimento, tal como o praticaram os apóstolos, para poder seguir Cristo, bem pegados a Ele. Durante essa viagem repetia muito algumas frases como “para mim está já a fazer-se de noite”, ou “Vultum tuum Domine, requiram” –“Senhor, desejo ardentemente ver o Teu rosto”. Falava-nos do encontro definitivo com Deus, mas “sem medo”, porque, como afirmou também relativamente a outras coisas, “quem teme não é perfeito no Amor”. No dia 6 de Novembro de 1972 vi pela última vez São Josemaria.

Que diria São Josemaria aos polacos?

Que diria São Josemaria agora aos polacos?... Não sei, ele costumava dizer que tinha a mesma receita para todos. Sei que amava muito a Polónia. Embora nunca tenha estado aqui pessoalmente, sendo novo conheceu a cultura polaca e rezou muito por este país. Pedia-nos muitas vezes que nos lembrássemos da situação dos países onde não há liberdade, nos quais, por exemplo, o sistema comunista proibia a prática religiosa. Fazia-nos chegar informação sobre esses países, pois não queria que vivêssemos indiferentes ante o sofrimento dos nossos irmãos na Fé. Entre eles estava também a Polónia. Certamente diria aos polacos que fossem conscientes do tesouro da Fé e – tal como disse noutros países – que fossem semeadores de Fé, na Polónia e a partir da Polónia, em muitos outros países e lugares do mundo.