As Preces do Opus Dei: a oração que deu forma ao espírito da Obra

Neste episódio de “Fragmentos de história” revelamos a origem e a evolução das Preces do Opus Dei, compostas por São Josemaria em 1930 e consideradas por ele como o “primeiro ato oficial” da Obra. O sacerdote e liturgista Juan Rego Bárcena explica como esta oração comum exprime a unidade, universalidade e espírito de serviço que caracterizam o Opus Dei, e como foi crescendo até à sua forma definitiva em 2002.

Neste episódio de “Fragmentos de história” oferecemos a tradução da entrevista feita a Juan Rego Bárcena, sacerdote do Opus Dei e especialista em liturgia, que estudou este texto a que São Josemaria chamou o “primeiro ato oficial” da Obra.

Juan Rego Bárcena é licenciado em História de Arte pela Universidade Complutense de Madri e mais tarde aprofundou em teologia e liturgia em diferentes universidades de Espanha e Itália, onde fez o doutorado em Sagrada Liturgia. Atualmente dirige o Instituto de Liturgia da Universidade da Santa Cruz em Roma, onde ensina teologia e estética litúrgica, e participa de iniciativas que promovem o diálogo entre artistas e teólogos.


O estudo de Juan Rego foi publicado em português pela editora Cultor de Livros. Veja o link para mais informações: As Preces do Opus Dei - Comentário histórico-teológico.


Você realizou uma pesquisa histórica e teológica sobre as Preces do Opus Dei. Poderia começar explicando o que são?

As Preces do Opus Dei são uma oração rezada por todos os fiéis da Obra. O termo preces provém do latim e foi adaptado pelos cristãos com uma variedade de significados: petição oficial, oração de intercessão, súplica. Em sentido eclesiástico significa súplica, oração, petição.

Talvez o que torna especial a oração das Preces especiais é que não se trata de uma oração de São Josemaria nem de um membro em particular, mas procura ser compartilhada por toda a Obra, expressando um sentido de universalidade e unidade.

Existe alguma explicação sobre como São Josemaria compôs as Preces do Opus Dei? Que contexto histórico acompanhou a sua criação?

São Josemaria não deixou uma explicação escrita sobre como redigiu as Preces, quem o ajudou ou em que textos se inspirou concretamente. No entanto, a primeira referência que temos sobre elas corresponde a um apontamento pessoal de São Josemaria datado de 10 de dezembro de 1930, em que escreveu:

“Nestes dias, estamos tirando cópias das “Preces ab Operis Dei sociis recitandae”. Aprovou-as o meu confessor. Vê-se que o Senhor, porque assim deve ser o âmago da sua Obra, quis que comece pela oração. Orar vai ser o primeiro ato oficial dos sujeitos da O. de D. Por agora, o trabalho é pessoal: só nos reunimos para fazer a oração”.

Para entender este escrito, é importante recordar que no dia 2 de outubro de 1928, São Josemaria recebeu de Deus uma luz fundacional sobre a Obra. A partir desse momento, começou a trabalhar com a certeza de que aquilo que tinha visto deveria tornar-se realidade.

Entre outubro de 1928, momento fundacional, e dezembro de 1930, data em que temos a primeira referência às Preces, houve três acontecimentos chave que nos permitem compreender o processo de composição e publicação das Preces.

O primeiro fato foi em novembro de 1929, quando São Josemaria recebeu novas inspirações sobre o carisma da Obra. Em diferentes momentos dos primeiros anos da Obra, São Josemaria interessou-se por instituições e apostolados dentro e fora de Espanha, procurando algo semelhante ao que Deus lhe pedia para fundar.

Um segundo fato importante ocorreu em 14 de fevereiro de 1930, quando entendeu que no Opus Dei havia também mulheres, o que consolidou a sua missão fundacional.

Por último, depois de fevereiro de 1930, São Josemaria compreendeu a necessidade de se concentrar plenamente na nova fundação. Para isso decidiu reduzir o seu trabalho pastoral no Patronato de Enfermos e procurar a ajuda de um novo confessor, o Pe. Valentín María Sánchez Ruiz S. J.. Após uma conversa com ele no final de julho de 1930, Escrivá compreendeu que a instituição se chamaria Obra de Deus, cuja tradução latina, Opus Dei, foi fixada poucos meses depois no texto das Preces.

Como descreveria a evolução histórica das Preces desde a sua criação até à redação definitiva?

As Preces de 1930 eram bastante reduzidas relativamente às atuais. Como acontece com frequência na Igreja, muitas orações e práticas litúrgicas nascem e enriquecem com o tempo. Foi o que aconteceu com as Preces da Obra, que nasceram em finais do ano de 1930 e foram-se desenvolvendo à medida que o Opus Dei foi crescendo. Para não entrar em muitos detalhes, darei alguns exemplos que ilustram esta ideia.

Na primeira versão das Preces, São Josemaria não incluiu uma oração pelos fiéis defuntos. Pura e simplesmente, porque ainda não tinha falecido nenhum membro da Obra. Mas em 1933 tinham morrido três pessoas: María Ignacia Escobar, uma das primeiras mulheres da Obra; José María Somoano Berdasco e Luis Gordon Picazo. Foi então que São Josemaria viu a necessidade de acrescentar uma oração pelos membros falecidos do Opus Dei.

Outra mudança significativa foi a inclusão da oração Oremus pro Patre, que originalmente não constava. Esta petição foi incorporada em 14 de fevereiro de 1938, durante a Guerra Civil Espanhola. São Josemaria tinha escrito em 9 de janeiro desse ano, de Burgos: “Há algum tempo notava-se a necessidade de incluir uma petição Pro Patre, na oração oficial da Obra”. Naquele momento, São Josemaria estava ciente do perigo que corria e sabia como era importante rezar para que a Obra não ficasse sem o seu fundador. Esta oração reflete, além disso, como São Josemaría foi amadurecendo sua própria paternidade dentro da Obra.

Do mesmo modo, em 1930, as Preces não incluíam uma oração específica pelos bispos das dioceses. Esta foi acrescentada mais tarde, num contexto de crescimento da Obra em várias cidades, que fez surgir a necessidade de estarem unidos afetiva e espiritualmente com os bispos.

Finalmente, após o falecimento de São Josemaria em 1975, o Congresso Geral eletivo daquele ano refletiu sobre a sua menção nas Preces. O seu sucessor, Álvaro del Portillo, propôs modificar a intercessão Oremus et pro frátribus nostris Operis Dei do seguinte modo: Oremus pro Conditore nostro et pro fratribus nostris Operis Dei vivis atque defunctis. No entanto, Álvaro del Portillo previu que no futuro fosse incluída nas Preces uma referência explícita ao Fundador.

Com o anúncio da beatificação de Escrivá, Álvaro del Portillo pediu a todos os fiéis do Opus Dei que enviassem sugestões para compor a oração ao Bem-aventurado Josemaria que seria incluída nas Preces. Nos meses seguintes, chegaram centenas de propostas, e foi redigida uma oração invocando a intercessão do Fundador.

Com a sua canonização, em outubro de 2002, a invocação adquiriu a sua forma atual. Desde então, a estrutura das Preces não teve novas modificações. Ainda que não tenham faltado propostas para incluir invocações ao Bem-aventurado Álvaro ou à Bem-aventurada Guadalupe, é bom recordar que no mesmo Congresso Geral de 1975 se estabeleceu que no futuro não seriam incluídos outros santos ou Bem-aventurados, a não ser, eventualmente, o Fundador. Por este motivo, podemos considerar o texto atual como definitivo.

Que significado tem a palavra Serviam! dentro do contexto das Preces?

A escolha de Serviam! (Eu servirei!) é profundamente simbólica. É o único verbo no singular nas Preces, enquanto todos os outros verbos se exprimem no plural, em sintonia com a tradição da oração pública da Igreja, que é comunitária. Este contraste realça a necessidade de conhecer a própria identidade e os próprios limites antes de se unir ao “nós” coletivo da oração. Uma pessoa não pode se entregar em uma relação se não tiver um certo conhecimento de quem é, qual é o sentido de sua vida e da responsabilidade que tem.

Nas rubricas das Preces de 1930, o Serviam! inicial era dito In terra se abjiciens, osculato pavimento, dicit: Serviam! ((Prostrado no chão, beijando o solo, diz: Serviam!). Na prática atual, esse gesto foi adaptado a uma inclinação profunda, muitas vezes quase tocando o chão com a cabeça, como sinal externo de humildade e entrega total ao serviço de Deus.

De uma perspectiva bíblica, Serviam! contrasta com o non serviam de Israel citado em Jeremias 2,20. O contexto deste versículo é o primeiro discurso do profeta em que Deus denuncia a infidelidade do seu povo. A acusação não é só de ingratidão, mas também de irracionalidade, pois o povo renunciou às fontes de água viva para construir para si cisternas rachadas.

Essa imagem, que reflete a experiência de Israel no deserto, reaparece no episódio das tentações de Cristo, que são um compêndio da história das tentações de Israel. Perante a proposta “Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares”, Jesus responde: “Vai-te Satanás, pois está escrito: ‘Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto’” (Mt 4, 9-10).

São Josemaria retomou esta oposição e reconheceu no Serviam! e no gesto simbólico do contato com a “terra” a essência da vocação ao Opus Dei: uma afirmação de serviço que se concretiza no trabalho cotidiano de cada pessoa. No Serviam! das Preces manifesta-se o reconhecimento do vínculo originário com Deus, a promessa da verdadeira liberdade, a aceitação da aliança e a possibilidade de transformar toda a vida num ato de culto filial.

Que sentido tem o uso do latim nas Preces de São Josemaria?

São Josemaria utilizou o latim nas Preces dentro do contexto eclesiástico espanhol do início do século XX, onde o rito romano era considerado praticamente o rito oficial de toda a Igreja, e o latim era a sua língua oficial. Ainda que hoje se reconheça uma maior diversidade de ritos e línguas na liturgia da Igreja, que não se reduz ao romano, naquele momento o uso do latim tinha um claro simbolismo de universalidade e unidade.

Ao empregar o latim, São Josemaria procurava desvincular as Preces de uma cultura concreta, projetando-as para uma dimensão universal. Este gesto permitia que pessoas de diferentes culturas encontrassem nas Preces uma forma comum de oração. Além da língua em si, o latim era um meio de exprimir um sinal de comunhão e coesão.

Que papel desempenham as Preces na vida diária dos fiéis da Obra?

Em primeiro lugar, é importante recordar a intenção inicial de São Josemaria: o Opus Dei devia começar e apoiar-se na oração. Esta ênfase reflete que no núcleo do Opus Dei está a oração como fundamento do seu espírito e missão.

Rezar as Preces recorda a cada fiel a sua vocação: transformar toda a vida em oração, viver cada momento em diálogo com Deus.

Em segundo lugar, é significativo que São Josemaria, ao estabelecer as Preces, não tenha optado por textos criados pessoalmente, fruto da sua oração ou meditação, ainda que pudesse ter feito isso.

Pelo contrário,  escolheu inspirar-se em textos da oração pública da Igreja. Isto realça que a oração dos fiéis do Opus Dei não se limita a uma relação imediata e pessoal com Deus, mas é sempre vivida no contexto da Igreja como comunidade, como Povo de Deus. Assim, a oração do Opus Dei reflete a sua própria identidade: ser uma família dentro da grande família da Igreja.

Finalmente, a estrutura das Preces, dividida em invocações e petições, recorda aos fiéis aspectos essenciais da sua vida espiritual. Ao longo destas orações, São Josemaria enumera os temas fundamentais da espiritualidade do Opus Dei.

Poderia explicar qual é essa estrutura das Preces?

Cada parte das Preces tem uma riqueza de conteúdo espiritual. Poderíamos destacar que a primeira parte está destinada principalmente a invocações, ou seja, uma série de orações breves em que nos dirigimos a figuras chave da espiritualidade do Opus Dei.

A primeira invocação, logicamente, dirige-se à Santíssima Trindade. É interessante observar que, ao contrário do resto das fórmulas, a invocação à Trindade é um ato de gratidão, sem nenhuma petição. São Josemaria insistia na importância de começar com um reconhecimento da bondade de Deus e da nossa pequenez. Este agradecimento, dizia, abre o coração para receber os dons do Senhor. Em 1971 São Josemaria comentava:

“Aconselho-vos a que leveis uma vida de ação de graças. Olhai, tudo o que temos – pouco ou muito – o devemos ao Senhor. Não há nada bom que provenha de nós. Se alguma vez vos encheis de soberba, dirigi o olhar para o alto e vereis que, se algo nobre e limpo há em vós, o deveis a Deus. (…) Que bonito é o que dizemos todos os dias nas Preces! Podeis empregá-lo como jaculatória: gratias tibi, Deus, gratias tibi!”.

A segunda invocação é a Cristo, a mais desenvolvida nas Preces, o que realça a sua centralidade na espiritualidade do Opus Dei.

Seguindo a ordem tradicional da ladainha, Nossa Senhora ocupa o primeiro lugar entre os santos, com dois títulos: Medianeira e Mãe de Deus.

Imediatamente depois se invoca a intercessão de São José, dos anjos da guarda – em cuja festa nasceu o Opus Dei – e de São Josemaria. Esta última, como mencionei anteriormente, foi acrescentada em 1992, com a sua beatificação, e ficou definida após a sua canonização.

A segunda parte das Preces é dedicada às intercessões. Nesta seção, deixamos de pedir por nós mesmos e começamos a rezar pelos outros. Esta mudança reflete uma dimensão fundamental do sacerdócio comum, que consiste em atualizar a intercessão de Cristo pelos outros. Tal como na liturgia da Missa, em que a Igreja reza pelo Papa, pela sociedade e por outras intenções, as Preces nos ensinam a rezar pelos outros. Neste sentido, São Josemaria nos lembra que, embora possamos fazer muitas coisas pelos outros, o fundamental que podemos fazer é rezar por eles,

As intercessões estão organizadas de forma que primeiro se pede pela Igreja, pelo Papa, que é o fundamento visível da unidade de toda a Igreja; pelos bispos, como os fundamentos visíveis da unidade nas dioceses; e, finalmente, pela unidade da própria Igreja. Esta petição se fundamenta na oração de Jesus no capítulo 17 de São João: “Que todos sejam um, como Tu, Pai, em Mim, e Eu em Ti”.

Depois de rezar pela Igreja, as intercessões estendem-se aos benfeitores. Não sabemos se, ao acrescentar o texto às Preces em 1933, Escrivá pensava exclusivamente no “nós” dos membros do Opus Dei, ou se o que acrescentou terá sido pensado como um prolongamento da intercessão anterior pela Igreja, que seria o mais lógico do ponto de vista de como se utilizou esta fórmula ao longo da história. Do ponto de vista textual, a ambiguidade não pode ser resolvida. O mais sensato seria não excluir nenhuma das duas possibilidades.

Após ter rezado pela Igreja em geral, as Preces continuam com orações específicas pela unidade dentro do Opus Dei. Pede-se pelo Padre e pelos membros da Obra vivos e defuntos.

Nas orações finais, são expressas confiança na misericórdia divina, e se pede conversão e fidelidade. O Gaudium cum pace, com o qual começa esta última parte das Preces, recolhe e ratifica as orações finais: a confiança na misericórdia onipotente de Deus Pai, a conversão e a penitência, o dom do Espírito Santo e o gozo e a paz duma vida que quer ser fiel até ao fim.

Por último, recorre-se à intercessão dos padroeiros dos apostolados da Obra: os arcanjos São Miguel, São Gabriel e São Rafael, e os apóstolos São Pedro, São Paulo e São João.

Se no momento de rezar as Preces há um sacerdote presente, dá a bênção com as palavras: “o Senhor esteja nos vossos corações e nos vossos lábios”. As Preces acabam com uma saudação que recorda a dos primeiros cristãos: Pax, in aeternum. Neste caso concreto tem a função de fórmula de despedida, na qual há um intercâmbio de paz depois da oração comum dos fiéis.

Em resumo, tal como tentei explicar, as Preces do Opus Dei, concebidas pelo seu fundador como o “primeiro ato oficial” dos membros da Obra, são uma oração comum que articula o carisma do Opus Dei com as formas de oração eclesiais. Assim, através das vozes dos que rezam, faz ressoar num lugar e tempo determinado os desejos e anseios mais profundos desta “partezinha da Igreja” que é o Opus Dei.