Esses Apontamentos íntimos a que vimos fazendo referência são escritos de caráter reservado que o Fundador, por desejo expresso, não quis que se lessem antes da sua morte[32]. Vinham de tempos atrás, e entre eles contavam-se as notas soltas que Josemaria levara consigo para ler e meditar durante o retiro de outubro de 1928. Mas, como já se disse, nem o primeiro caderno de notas nem as fichas primitivas chegaram até nós, pois foram destruídos pelo seu autor. O que conservamos dos Apontamentos começa no segundo Caderno, iniciado em março de 1930.
As anotações costumavam ser breves e versavam sobre temas variados que, a princípio, escreveu para seu proveito espiritual e para as considerar na oração. Chamava-lhes Catarinas porque eram, como o fora a Santa de Sena para o seu tempo, um meio de manter e avivar a inquietação de espírito suscitada na sua alma pelas graças extraordinárias que viera recebendo desde a sua primeira chamada em Logroño[33] 33. Ele mesmo nos diz: São notas ingênuas – chamava-lhes catarinas, por devoção à Santa de Sena –, que escrevi durante muito tempo de joelhos e que me serviam de recordação e de despertador. Penso que, geralmente, enquanto escrevia com simplicidade pueril, fazia oração[34]34.
Os Apontamentos, todos eles manuscritos, enchem oito cadernos, além de catorze apêndices de folhas soltas. Não estão completos, e em mais de uma ocasião estiveram a ponto de desaparecer. Queimei – confessa o seu autor – um dos cadernos dos meus apontamentos pessoais – há anos – e tê-los-ia queimado todos, se alguém com autoridade e depois a minha própria consciência não mo tivessem impedido[35].
Desde que passou a ter como diretor espiritual o Pe. Sánchez, o Padre Josemaria utilizava também os Apontamentos com o propósito de manifestar-lhe com maior clareza as disposições da sua alma. Lê-se no Caderno III, anotado em fins de fevereiro de 1931: Quando escrevo estas Catarinas (é como chamo sempre a estas notas), faço-o por sentir-me impelido a conservar, não só as inspirações de Deus – creio firmissimamente que são inspirações divinas –, mas também coisas da vida que serviram e podem servir para meu proveito espiritual e para que o meu padre confessor me conheça melhor. Se não fosse assim, teria mil vezes rasgado e queimado fichas e cadernos, por amor próprio (filho da minha soberba)[36].
Por essa altura, o Fundador já tinha um reduzido grupo de seguidores, entre eles alguns estudantes, aos quais ia dando a conhecer o espírito da Obra através do comentário que fazia a algumas das suas anotações. Pedro Rocamora, o estudante que o ajudava à missa no Patronato dos Enfermos, lembra-se de que em alguns domingos, ao entardecer, se reunia com vários jovens e lhes lia algumas páginas de um caderno com capas de oleado, ou lhes comentava apenas dois ou três breves pensamentos[37]. Ora, como conservava entre aquelas notas inspirações divinas e pensamentos sobre o seu estado de alma, via-se exposto à possível indiscrição dos que liam algumas páginas do caderno. Isso levou-o a separar, finalmente, o que tinha de tratar com o seu confessor das matérias relativas à Obra e aos seus apostolados, conforme escreveu em 10 de maio de 1932: Vou perdendo a liberdade de anotar as minhas coisas nestas catarinas porque, como não se fez à parte uma recopilação relativa à O. de D., se tenho de dar a conhecer a O., exponho-me a que passem a saber do resto. Por isso, com a ajuda de Deus, procurarei fazer neste verão esse trabalho, separando os meus assuntos pessoais, que anoto para o meu diretor e para mim[38].
Mais de uma vez pensou seriamente em lançar ao fogo todos os seus Apontamentos íntimos, coisa que o confessor lhe tinha proibido. Ele próprio reparava que registrar esses fatos era um modo de viver a humildade e a simplicidade, embora lhe custasse o que só Deus sabia.
Há ocasiões, bastantes – diz a si próprio –, em que me aborrece ter escrito ou escrever as Catarinas. Queimá-las-ia, se não mo tivessem proibido. Devo continuar: é caminho de simplicidade. Procuro despersonalizar o mais possível[39].
Seguindo o caminho da simplicidade, via-se obrigado, por força das circunstâncias, a deixar exposto perante o próprio interessado, o Pe. Sánchez, as descortesias de que vez por outra era alvo por parte do seu confessor.
– Escrevi isto com detalhes – observa numa das suas catarinas, a propósito de uma desconsideração recebida do seu confessor – porque, certamente, o Pe. Sánchez o vai ler e verá que estas miudezas – que ocorrem com relativa frequência – me requeimam: por isso creio que me fazem muito bem[40].
Mas, se silenciasse dados de interesse da sua vida interior, onde iria parar? – As Catarinas já não têm intimidade! Deixo de anotar tantas coisas!, queixar-se-á em certa ocasião[41].
Considerando as coisas com objetividade, sem lamentações inúteis pelo que se perdeu, temos de agradecer que, apesar de tudo, os seus Apontamentos sejam abundantemente generosos e espontâneos. Espontâneos mesmo nos momentos em que o autor usa de cautelas, como na catarina de 3-XII-1931, em que escreve: Esta manhã, dei meia-volta, como um menininho, para saudar a Senhora, na sua imagem da Rua Atocha, no alto da casa que a Congregação de São Filipe tem lá. Tinha-me esquecido de saudá-la: qual é a criança que perde uma ocasião de dizer à sua Mãe que a ama? Senhora, que eu nunca seja uma ex-criança. Não voltarei a contar pormenores como este, não aconteça que, por ventilá-los, perca estas graças[42].
É quando se trata de descrever possíveis estados de contemplação mística, ou outros maravilhosos fatos sobrenaturais, que o autor dos Apontamentos recorre ao silêncio, à despersonalização, ou então deixa as coisas a meio: Renovei o meu propósito de não anotar nada sobre oração – diz-nos numa catarina –, a não ser que mo ordenem ou me veja forçado. Se anotar alguma coisa, porque poderá aproveitar-me ou aproveitar a outros, há de ser tirando-lhe o que tiver de pessoal[43].
O resultado final é que, com tais precauções, o leitor fica a meia-luz quanto aos fenômenos e experiências sobrenaturais. Sirva de exemplo a catarina do dia seguinte àquele em que fez o propósito de não referir pormenores da sua oração: 12-XII-1931: Hoje, Jesus abriu-me o senti do, como poucas vezes, durante a recitação do Ofício Divino. Em alguns momentos, foi uma bebedeira[44]. E com isso dá por liquidado o assunto.
O recurso de despersonalizar, que é o que adota de preferência nas suas Catarinas, equivale a apresentar os fatos nus e crus, sem suco nem medula, ou talvez esfumados nas palavras e na descrição, ou em terceira e longínqua pessoa. Assim, anota em 10-IV-1932: Ontem, num lugar onde se conversava e se tocava música, tive oração com um consolo inexplicável. Conta depois que estava preparando para a Primeira Comunhão as meninas do Colégio de Santa Isabel, e termina a nota, sem nenhuma explicação intermédia, com estas palavras: Depois da bebedeira de Amor: as minhas habituais tolices![45]
O leitor quererá saber forçosamente em que consistia a bebedeira de Amor ou quais eram as suas habituais tolices. Mas o autor das Catarinas não dá mais explicações.
Há também ocasiões em que, excepcionalmente, afasta a barreira da “despersonalização” para exprimir o que sente, como quando escreve: Não quero deixar de anotá-lo, embora já tenha despersonalizado as Catarinas há algum tempo: muitas vezes, um pouco cansado da luta (Ele perdoa-me), invejo o doente sarnento, abandonado por todos num hospital: tenho a certeza de que ganha o Céu muito comodamente[46].
Pode o leitor dar-se por satisfeito com esta descrição truncada? É justo, no entanto, que, antes de respondermos, recordemos de novo o que se disse no princípio: que, para o seu autor, a finalidade dos Apontamentos íntimos é aliviar a consciência e coligir graças e acontecimentos para os levar à meditação. Com tais premissas, nós – os leitores – somos intrusos que entram furtivamente para espreitar o segredo de uma alma. Não nos deve surpreender, portanto, que esta se resguarde sob uma carapaça de discrições e silêncios. Se bem que haja ocasiões, convém dizê-lo, em que o autor não tenta despersonalizar os acontecimentos. Sucede simplesmente que a sua pena vai por caminho diferente do da curiosidade ou entendimento de quem lê a catarina. Assim, por exemplo, anota em fins de fevereiro de 1932: No sábado passado, fui ao Retiro, do meio-dia e meia à uma e meia (é a primeira vez, desde que estou em Madrid, que me permito este luxo), e pus-me a ler um jornal. A oração vinha com tal ímpeto que, contra a minha vontade, tinha que deixar de lado a leitura: e, então, quantos atos de Amor e abandono pôs Jesus no meu coração e nos meus lábios![47]
Entenderá o leitor com isso que o Padre Josemaria não se permitia o luxo de passear por um jardim público? Porventura pretendia o sacerdote declarar como se sentia arrebatado em oração? Concretamente neste caso, referia-se a uma coisa mais simples: que tentava ler um jornal e não o conseguia. Basta verificar que, na última linha da catarina anterior, deixa pendente de anotar essas ondas de oração que lhe sobrevinham ao pôr-se a ler a imprensa: Quero anotar, porque é algo estranho, que Jesus costuma conceder-me oração quando leio a imprensa[48]48.
(Observe-se também que, preocupado em registrar o episódio da leitura do jornal, se esquece do propósito anterior de não anotar, e menos ainda descrever, fenômenos relativos à oração).
De uma maneira geral, todas as catarinas que, verossimilmente, se referem a fatos sobrenaturais extraordinários requerem, para o seu correto entendimento, um adendo da mesma natureza, isto é, uma elevação espiritual que, à semelhança da alça das armas de fogo, compense de certo modo a evidente “despersonalização” levada a cabo pelo autor. Assim, por exemplo, quando fala de lágrimas, deve entender-se, provavelmente, o dom de lágrimas; e, em muitas ocasiões em que fala de oração, devemos pensar, de acordo com o texto, numa alta oração contemplativa. E se, com freqüência, se declara cheio de misérias e pecados, é porque assim se via à luz dessas graças divinas que Deus, pela sua misericórdia, costuma conceder aos santos: um conhecimento próprio que os leva à persuasão de que são grandes pecadores.
Também não faltam momentos em que, arrastado pela simplicidade, se compromete a si próprio, como quando anuncia: Um dia destes, procurarei escrever catarinas com recordações da minha vida, na qual se vêem verdadeiros milagres[49]. (É claro que nunca lhe ocorreu cumprir essa impensada promessa).
* * *
Os fins destas catarinas, resume o Fundador numa delas, são a Obra e a minha alma[50]. É à Obra que se referem as luzes fundacionais sobre a sua essência sobrenatural, as notas características do seu espírito, os princípios do seu governo e organização. As inspirações recebidas pelo Fundador sobre o conjunto da Obra eram como que ideias-mestras, das quais deduzia os modos, meios e casos práticos. De caráter geral é, por exemplo, a catarina de 7-X-1931, escrita exatamente um mês depois de o Senhor ter confirmado com uma locução a universalidade e a perenidade da Obra: Entendo que as características da O. de D. serão: unidade, universalidade, ordem e organização[51].
Dessas linhas gerais, o Fundador passava depois à praxe, ao pormenor, à realização prática. Essas sugestões ou iniciativas apostólicas eram umas vezes levadas a cabo tais quais, no momento oportuno; outras, eram retocadas ou corrigidas, conforme o Fundador considerava necessário. Assim, por exemplo, diz-se numa catarina de 1931 [...] convirá que os sócios leiam todos os dias, cada um privadamente, um capítulo do Novo Testamento (todos o mesmo, cada dia)[52].
(A leitura do Novo Testamento passou a ser uma norma de piedade, mas não quanto à uniformidade e extensão dos textos).
Muito excepcionalmente, era o próprio Senhor quem fixava expressamente os pormenores, como se nos diz numa catarina de dezembro de 1931: Quando nos reunirmos para falar ex professo da Obra, antes de começar a palestra, diremos: In nomine Patris, et Filii et Spiritus Sancti. Amen. – Sancta Maria, Sedes Sapientiae. – Ora pro nobis. – Assim mo pediu Jesus esta manhã na Basílica de Atcha[53]53.
Embora não sejam propriamente fundacionais, há nos Apontamentos íntimos muitas sugestões de toda a espécie, relativas à vida de piedade, ao modo de vestir, aos atos litúrgicos e ao apostolado[54].
O cerne da novidade que a Obra trazia consigo, no campo da teologia ascética e pastoral, fica também refletido no léxico empregado pelo Fundador. A terminologia, ou seja, o constante batalhar com as palavras em defesa de um reto entendimento daquilo que queria exprimir, constituiu para ele uma dura tarefa. Porque o autor das Catarinas pretendia comunicar algo essencial à natureza da mensagem recebida (a santificação no meio do mundo), ao passo que as expressões da linguagem ascética usual não se ajustavam a essa ideia, desvirtuando com o seu significado tradicional o que o Fundador procurava dizer. Esse esforço ininterrupto por conseguir maior clareza de expressão, que se nota nos Apontamentos, refere-se, em muitas ocasiões, à organização da Obra e dos seus membros. Fala-se, por exemplo, de graus e de scios, para distinguir a natureza e o espírito laical da Obra daquilo que é próprio dos religiosos. Ou então compara-se o Opus Dei a uma Ordem militar no meio do mundo, designando inicialmente os seus membros como Cavaleiros Brancos ou Damas Brancas, nomes que em breve deixou de usar.
Às vezes, esse propósito de acertar com o vocábulo exato estava condenado ao fracasso, já que não existiam no léxico corrente palavras que traduzissem uma entrega radical do cristão ao serviço do Senhor, sem mudança da situação social, familiar e profissional. Quereria encontrar uma palavra castelhana, diferente de “vocação”, que encerrasse um significado semelhante. Será o caso de denominá-la chamamento?, pergunta-se numa catarina[55].
Daí que nesses pormenores terminológicos, e em muitos outros aspectos da fundação histórica, exista uma clara distinção entre o que pertence à essência da Obra – aquilo que o Fundador recebeu por iluminação divina no dia 2 de outubro de 1928 – e o posterior tentear humano para a sua execução prática. O autor dos Apontamentos íntimos reconhece antecipadamente, já em março de 1930, quer dizer, desde as primeiras páginas das Catarinas, que todas as notas escritas nestas fichas são um embrião que talvez venha a parecer-se com o ser completo tanto como um ovo com o arrogante pintainho que sairá da sua casca[56]56.
* * *
As restantes notas dizem respeito à alma do Fundador e versam sobre a sua vida interior, estados de consciência e circunstâncias externas em que se desenvolvem o seu apostolado e o seu ministério. A base do seu conhecimento próprio, a humildade do Fundador, parte de um axioma: Pura matemática: José María = Burrico sarnento[57].
Definição que se encontra com freqüência nas Catarinas e que utilizava com as siglas b.s. nas notas para o seu diretor espiritual. Numa catarina do dia 9 de outubro de 1931, descreve-nos a oração daquele dia sobre este tema: Hoje, na minha oração, confirmei o propósito de me fazer Santo. Sei que o vou conseguir: não porque esteja seguro de mim, Jesus, mas porque... estou seguro de Ti. Depois, considerei que sou um burrico sarnento. E pedi – peço – ao Senhor que cure a sarna das minhas misérias com a suave pomada do seu Amor: que o Amor seja um cautério que queime todas as crostas e limpe toda a ronha da minha alma: que vomite o monte de lixo que há dentro de mim. Depois decidi ser burrico, mas não sarnento. Sou o teu burrico, Jesus, que já não tem sarna. Digo-o assim para que me limpes, pois não vais deixar-me mentir... E do teu burrico, Menino-Deus, faz o que quiseres: como aos meninos travessos da terra, puxa-me pelas orelhas, fustiga com força este burricote, fá-lo correr ao teu gosto... Quero ser o teu burrico, paciente, trabalhador, fiel... Que o teu burrico, Jesus, domine a sua pobre sensualidade de asno, que não responda com coices ao aguilhão, que leve a carga com gosto, que o seu pensamento e o seu zurro e a sua obra estejam impregnados do teu Amor, tudo por Amor![58]
Com a mesma franqueza com que desafoga a sua alma, revela-nos, vez por outra, essa camada de sentimentos adormecidos que tanto nos dizem sobre o fundo de uma pessoa. Quando, por exemplo, escreve: A morte – a Dona Careca – será para ti uma boa amiga[59], não faz uma brincadeira tétrica de mau gosto. Pelo contrário, o que faz é dar rédea solta a uma risonha familiaridade com o término desta vida. E, em contraste com essa veia filosófica de bom humor, aparece o ritmo dramático da sua vida interior, santa e apaixonada: Senhor! Concede-me a virtude da ordem (Creio que é uma virtude, e fundamental; é por isso que a peço). Senhor!! Concede-me que seja tão teu que não entrem no meu coração nem os afetos mais santos, se não for através do teu Coração chagado. Senhor!!! Senhor! Concede-me que aprenda a calar (porque de calar não me arrependi nunca, de falar muitas vezes). Senhor!! Concede-me que nunca te ofenda de modo consciente, nem sequer venialmente. Senhor! Concede-me cada dia mais amor à santa pureza, cada dia mais zelo pelas almas, cada dia mais conformidade com a tua Vontade benditíssima[60].
Chegam também aos Apontamentos o eco e as estridências dos acontecimentos quotidianos daqueles tempos, juntamente com os assuntos familiares do lar de Da. Dolores. As Catarinas são verdadeiramente uma rede de arrasto. Correm pelas suas páginas, misturadas, explosões impetuosas de amor divino e cândidas declarações, como numa catarina de março de 1934: Uma notícia de última hora: cortei o cabelo rente. Como me humilha estar tão gordo![61]
Expresso desse modo, com singela neutralidade, o corte de cabelo pouco nos diz. Contudo, significou para ele uma notável mortificação, pois ressaltou um início de gordura, apesar dos seus grandes jejuns e penitências corporais.
Os Apontamentos íntimos não constituem propriamente um diário, nem pelo conteúdo das suas páginas nem pela descontinuidade das anotações, que abrangem essencialmente o período de 1930-1940. Não obstante, representam um autêntico e inesgotável manancial autobiográfico. No seu conjunto, são páginas de grande riqueza espiritual, que ressumam graças divinas por toda a parte. Nelas, o seu autor mostra-se a nu, transparente, com ingenuidade de criança, meio oculto sob o amparo da reserva com que estão escritas as notas. Umas vezes, em voz baixa, como que desculpando-se, relata-nos pormenores minúsculos e deliciosos, que talvez pudessem passar desapercebidos, mas que revelam um magnífico fundo de virtudes e grandeza de alma. Em outras ocasiões, escapam-lhe queixumes e júbilo, ou gritos de dor e de entusiasmo. É a alma do Fundador que freqüentemente desabafa nas anotações: Considero – confessa-nos o seu autor – que estas catarinas parecem... uma centopéia: coisas maravilhosas, que são de Deus, e puerilidades e aleluias de freira infantil ou de fradinho bobo, que são expansões da minha pobre alma pequena[62].
Dessa variedade na composição resulta, por isso mesmo, uma incitante e saborosíssima leitura. É que, por cima de tudo isso, existe um invisível aglutinante autobiográfico. O estilo do autor infunde vida e graça às Catarinas, seja qual for o tema de que tratem, dando-nos a imediata evidência de um coração fogoso e apaixonado. Veja-se, por exemplo, o seu pesar pelo descuido na liturgia e nos objetos e lugares sagrados:
Dá pena ver como preparam os altares e presbitérios para a celebração das festas. Hoje, num colégio rico, o retábulo estava cheio de florzonas ridículas, colocadas sobre uns engradados de tábuas de caixote pintadas pela metade. O Sacrário está habitualmente colocado de tal modo que o sacerdote, ainda que seja de boa estatura, tem sempre de subir a um banquinho para abrir, fechar e tomar o Senhor. As sacras, em equilíbrio instável... E os sacerdotes, também em equilíbrio instável, porque têm de fazer verdadeiras piruetas de charleston para não darem com a cabeça num lampadário de latão dourado feíssimo, que pende muito baixo sobre o presbitério, ou para não darem com o nariz no chão, tropeçando nas pregas e mais pregas do tapete, adaptado aos degraus do altar, provavelmente depois de ter sido retirado de uso, por estar velho, do salão de alguma dessas beatas, mais pintadas que um papagaio, que vêm logo de manhã, feitas um retrato, para receber no seu sepulcro, branqueado e com manchas de carmim, o Senhor da simplicidade, Jesus. Os cânticos!... são tais que se pode dizer que se assistiu a uma missa, não cantada, mas... dançável!
E ainda bem se, por trás do retábulo, além de uma escada de madeira por pintar, por onde Cristo passa diariamente nas mãos do sacerdote para ficar em Exposição, ainda bem se não há igualmente um montão de cacarecos cheios de pó, que fazem do lugar santo o depósito de trastes do mercado das pulgas madrileno. Tudo isto, eu o vi[63].
O estilo tem muito de Teresa de Jesus, pelo tom familiar, pela espontânea simplicidade, pela agilidade da expressão. Contudo, entre a Vida da santa e os Apontamentos íntimos há uma diferença intransponível. Apesar da desenvoltura estilística das Catarinas, chegado o momento de descrever experiências místicas pessoais, o Padre Josemaria foge. Esse comportamento, essa fidelidade ao lema ocultar-se e desaparecer, é o selo que o Fundador, por vontade divina, deixou impresso na Obra como característica de predileção: Outros institutos têm – diz numa catarina –, como uma bendita prova da predileção divina, o desprezo, a perseguição, etc. A Obra de Deus terá isto: passar oculta[64].
[32] O pacote que continha os Apontamentos íntimos apareceu no Arquivo da Prelazia, juntamente com outros, num envelope em que o Fundador tinha escrito: Em qualquer caso, depois da minha morte, estes papéis – assim como os cadernos que compõem os meus Apontamentos íntimos – devem ser postos nas mãos de D. Álvaro, sem que ninguém os leia antes, para que escreva à parte as notas oportunas, já que esse meu filho é o único que, por eu lhe ter falado destes escritos muitas vezes e pormenorizadamente, está em condições de comentar e esclarecer tudo o que precise de comentários ou esclarecimentos. Mariano, Roma, 2 de setembro de 1968.
[33] Os santos – escrevia em 1932 – são necessariamente umas pessoas incômodas, homens ou mulheres – minha santa Catarina de Sena! – que, com o seu exemplo e com a sua palavra, são um contínuo motivo de desassossego para as consciências comprometidas com o pecado (Carta 9-I-1932, n. 73)
[34] Apontamentos, n. 1862 (Roma, 14-VI-1948).
[35] Ibid., Eu queimei o caderno n. 1, escreve na página inicial do Caderno II
[36] Apontamentos, n. 167.
[37] Pedro Rocamora, AGP, RHF, T-05829, pág. 2.
[38] Apontamentos, n. 713. Numa catarina de 24-V-1932, lê-se: Propósito: não havendo verdadeira necessidade, nunca falarei das minhas coisas pessoais (ibid., n. 735). Provavelmente, queimou o primeiro Caderno depois do verão, pois escreveu noutro lugar – como se tinha proposto – as notas do retiro espiritual de 1932, que fez em outubro desse ano. (Ao regressar a Madrid, depois de ter feito o retiro em Segóvia, escreveu nos Apontamentos: Dia 14 de outubro de 1932: guardarei em separado os apontamentos do meu retiro; cfr. Apontamentos, ns. 839 e 1701). A última vez que aparece nos seus Apontamentos uma alusão ao primeiro Caderno é em 11 de dezembro de 1931, quando diz que estava lendo uma das notas soltas do primeiro caderno ao Pe. Lino, para lhe dar a conhecer a Obra mais em pormenor (Apontamentos, n. 470). E no dia anterior comenta que, relendo uma determinada anotação do primeiro caderno das catarinas, compreendeu um ponto desconhecido da sua vida espiritual (cfr. ibid., n. 474).
[39] Ibid., n. 996
[40] Ibid., n. 379.
[41] Ibid., n. 1040
[42] Ibid., n. 446.
[43] Ibid., ns. 472 e 477.
[44] Ibid., n. 475
[45] Ibid., n. 691.
[46] Ibid., n. 1115. Também é excepcional, por exemplo, o que escreve em 26-XI-1931: Depois da Sta. Missa, hoje, na ação de graças, e mais tarde na igreja dos Capuchinhos de Medinaceli, o Senhor inundou-me de graças. Cumpriu-se o que diz o Salmo: “Inebriabuntur ab ubertate domus tuae: et torrente voluptatis tuae potabis eos”. Cheio de alegria ante a Vontade de Deus, sinto que lhe disse com São Pedro: ecce reliqui omnia et secutus sum te. E o meu coração apercebeu-se do “centuplum recipies”... Verdadeiramente, vivi o Evangelho do dia (ibid., n. 415). [Inebriabuntur..., “Inebriar-se-ão com a abundância da sua casa, e dar-lhes-ás a beber da torrente da tua alegria”; ecce..., “eis que deixei tudo e te segui”; centuplum..., “receberás o cêntuplo” (N. do T.)].
[47] Ibid., n. 619. É muito provável que, numa ou noutra ocasião, tivesse de abreviar o seu caminho atravessando o parque do Retiro, mas não o fazia para passear (cfr. ibid., n. 473)
[48] Ibid., n. 618.
[49] Ibid., n. 349. Felizmente – comentava anos mais tarde, ao reler essa nota –, apesar do caminho de infância por onde eu andava, não escrevi esses apontamentos. Pelo menos, não me recordo de os ter escrito (cfr. ibid., nota 334).
[50] Cfr. ibid., n. 263.
[51] Ibid., n. 311.
[52] Ibid., n. 343
[53] Ibid., n. 471. [Sedes sapientiae, “sede da sabedoria” (N. do T.)].
[54] Ibid., n. 342
[55] Ibid., n. 13
[56] Ibid., n. 14
[57] Ibid., n. 116
[58] Ibid., n. 313.
[59] Ibid., n. 875 [“Careca”: alusão à caveira (N. do T.).]
[60] Ibid., n. 15.
[61] Ibid., n. 1166.
[62] Ibid., n. 423.
[63] Ibid., ns. 458-459. Escreveu esta catarina não só para desabafar a sua santa indignação, mas como aviso para os oratórios que a Obra tivesse no dia de amanhã, nos quais – termina a nota – se fugirá de cair em semelhantes desatenções para com o nosso Rei-Cristo
[64] Ibid., n. 581; cfr. Carta 24-III-1930, n. 21.