"Aprite le finestre", canção italiana que São Josemaria pediu que lhe cantassem no momento da morte

Alguém correu uma das cortinas de lona azul para amortecer a luz de um sol precocemente ofuscante, que entra pelas janelas. Andam a meio o dia e o mês de março de 1957.

Na Galleria del Fumo, um grupo de homens jovens – dez, doze – conversam tomando café. O Padre está com eles. Acabam de almoçar. Dentro de pouco tempo, cada um voltará ao seu trabalho. É a tertúlia.

A conversa informal, sem assunto definido, não desemboca hoje em nenhum tema de relevo singular. Fala-se de tudo e de nada. Talvez esse mesmo que se levantou para correr as cortinas seja quem toma a iniciativa de pôr um disco, um disco de Nila Pizzi, a vencedora do Festival de San Remo. Em allegretto vivace, soam os primeiros compassos da canção. É uma ária popular, graciosa, rítmica, pegadiça, até com certas espirais melódicas. Todos, mais ou menos, conhecem essa música. E Escrivá gosta muito dela. Prendera-lhe a atenção desde a primeira vez que a ouvira:Aprite le finestre al nuovo sole: è primavera, è primavera. Lasciate entrare un poco d'aria pura...

“Abri as janelas ao novo sol: é primavera. Deixai entrar um pouco de ar puro, com a fragrância dos jardins e dos prados em flor. É primavera, festa do amor!”

Já então, Escrivá surpreendera os que estavam com ele, dizendo-lhes:

– Gostaria de ouvir esta canção cuando esté muriéndome [quando estiver para morrer].

Escrivá raramente usa o verbo “morrer”. Quando o faz, emprega a forma castelhana, muito mais rija, com a sua entranhável carga reflexiva: “morrer-se”. Ao falar da sua própria morte, não parece imaginá-la como algo rápido, repentino, que lhe sobrevenha de chofre; mas como um processo lento, fatigante, um transe duro. Dir-se-ia que pressente a dor de partir. Talvez seja por isso que não diz “quando eu morrer”, nem sequer “quando eu me morrer”, mas “quando eu estiver para morrer-me”. Imagina a morte como um desconjuntamento. Como uma ação forte e dolorosa: o agon, a agonia. Uma luta que lhe exigirá vencer resistências. Um combate definitivo, para o qual sempre se está treinando, “porque se trata – diz – de ganhar a última batalha”.

Agora, sentado numa poltrona, quase de costas para a vidraça corrida da galleria, escuta essa canção e cantarola alguns trechos em italiano:

Já se abriu a primeira rosa vermelha.

É primavera, é primavera!

Também a primeira andorinha regressou,

e revoa pelo céu límpido:

vem anunciar o tempo belo.

Rapazes e moças enamorados,

abri as janelas ao novo sol,

à esperança, ao sonho encantado...

É primavera, festa do amor!

Foi percorrendo o rosto dos que estão ali, na Galleria del Fumo: Álvaro del Portillo, Javier Echevarría, Joaquín Alonso, Julián Herranz, Giuseppe Molteni, Dick Rieman, Bernardo Fernández Ardavín, Severino Monzó... Detém-se neste.

Severino é um jovem alto e robusto. Sacerdote, doutor em Economia e em Direito Canônico que, além de tudo isso, canta muito bem. O Padre dirige-lhe um sorriso maroto e, como quem marca um appuntamento, um encontro para um dia muito longínquo, diz-lhe:

– Tu me cantarás isso... sem lágrimas(1).

Sem lágrimas. Em mais de uma ocasião disse aos seus filhos que, depois da sua morte, não quer “nem uma gravata preta” (2). E se gosta dessa toada primaveril, é porque sugere a alegria dos jovens que se dirigem ao encontro marcado com o amor. A canção fala expressamente de um encontro: la luna già ha fissato appuntamento. Por aí envereda o seu sentido da morte: será o encontro apaixonado de dois namorados.

Com efeito, a toada italiana descreve a chegada do bom tempo, os prados em flor, as noites de prata, o novo sol radiante, o aroma dos jardins, a revoada das pombas primaveris que anunciam o tempo belo… E, de modo insistente, convida - aprite le finestre! – a abrir as janelas para que entre o amor. (…)

Não há para o santo “morte repentina”, pelo mesmo motivo por que não há “morte improvisada”. O santo está sempre de malas feitas para a última viagem. Como todos, desconhece também o dia e a hora. Mas, a partir de certo momento, começa a ter intuições, pressentimentos fugazes, vislumbres entremeados de luzes e de escuridão. Vai-se internando por regiões que entardecem e regiões que amanhecem. Um luminoso crepúsculo, onde é preciso semicerrar os olhos, quase fechá-los, porque tanta luz cega. Então, deseja não ver nada, ou ver unicamente... com os olhos tomados de empréstimo a Deus.

Josemaria Escrivá intui que se aproxima o final? (…)

Tem muito lidos, muito trabalhados, muito rezados, os salmos do Saltério de Davi. De um deles, o de número 26 – Tibi dixit cor meum..., “ouço no meu coração: procurai o meu rosto. Procurarei o teu rosto, Senhor; não o afastes de mim” –, toma umas palavras: Vultum tuum, Domine, requiram, e as repete, saboreando-as, de maneira constante, pelo menos desde dezembro de 1973. Josemaría tradu-las com força premente: “Procuro o teu rosto, Senhor, quero ver-te, cara a cara!” E, às vezes, mesmo durante as refeições, escapa-lhe um irreprimível: “Senhor, quero dar-te um abraço!”(3).

Essa busca do rosto de Deus, sem velames, sem noções intermédias, num abraço “corpo a corpo”, cresce num ritmo tumultuoso na sua alma: – Os que se amam procuram ver-se. Os enamorados só têm olhos para o seu amor. Não é lógico que seja assim? O coração humano sente esses imperativos. Mentiria se negasse que me move tanto a ânsia de contemplar a face de Jesus Cristo. Vultum tuum, Domine, requiram. Procurarei, Senhor, o teu rosto. Encanta-me fechar os olhos e pensar que chegará o momento, quando Deus quiser, em que poderei vê-lo, não como num espelho e por imagens obscuras..., mas face a face (4). Mal a Rádio Vaticana informa oficialmente do falecimento do Fundador do Opus Dei, a Villa de Bruno Buozzi 75 não dá vazão à torrente, mansa mas incessante, de pessoas que acorrem para rezar. Josemaría Escrivá – genuit filios et filias – tem filhas e filhos do seu espírito disseminados pelos dois hemisférios. Por rádio, por telefone, por cabo, mesmo por telex, a notícia viaja veloz. E lá onde chega, crava o seu duplo aguilhão de desconcerto e de dor. (…)

Por volta das quatro da tarde, no oratório de La Masada, em Torreciudad, um sacerdote jovem, alto e forte, está ajoelhado no reclinatório do último banco. Está ali há bastante tempo. Ora reza. Ora chora. Ora deixa soltas as madeixas do pensamento, evocando os belos tempos romanos, dei bei tempi romani...

Pela avenida dessas recordações, surge de repente aquela cançãozinha de Nila Pizzi, Aprite le finestre, que tantas coisas sugeria ao Padre. E aquele seu desejo: “Gostaria de ouvir esta canção quando estiver para morrer”.

Severino Monzó, nesse momento, só tem um dado: o Padre morreu de repente. Não estava doente. Portanto, não teve tempo para estar... morrendo.

Sabe que, para o Padre, já não existem relógios nem calendários, porque transpôs a fronteira onde se começa a ser eterno.

Levantino, impetuoso e sentimental, Severino ergue o queixo, como quem desafia o ar, e pensa: “Por que não?” Poucos minutos depois, no toca-discos da sala de estar de La Masada, ressoa a música com fundo de realejo e campainhas, e a voz de Nila Pizzi:

Aprite le finestre al nuovo sole:

è primavera, è primavera,

Lasciate entrare un poco d’aria pura…

Sereno, evoca com toda a nitidez a cena de um meio-dia radiante, primaveril, na Galleria del Fumo. É como se estivesse vendo... As cortinas de lona azul. A fumaça dos cigarros, formando inverossímeis volutas à contraluz do sol precoce. O Padre, acompanhando o ritmo alegre, com a cabeça e com a ponta do sapato, enquanto ecoa a musiquinha... Depois, aquele sorriso maroto de boa cumplicidade, como que aprazando-o para um dia muito longínquo:

– Tu me cantarás isso...

E Severino põe-se a cantar, suavemente, ao compasso do disco que vai girando. A melodia ressoa, doce e amarga, entre a escura orografia das têmporas, dos tímpanos, das mandíbulas, do paladar... até fazer-lhe um nó na garganta. Ao dobrar a esquina de uma estrofe – “rapazes e moças enamorados, abri as janelas ao novo sol...!” –, não agüenta mais e desata a soluçar.

Volta a pôr o disco, uma vez, e outra... Sente-se bem assim, “chorando a sua pena”. Sim, o Padre olhou para ele e disse-lhe: “Tu me cantarás isso”. Mas acrescentou alguma coisa... o quê?, o quê?

Pouco a pouco, vai perfilando os contornos da evocação... A frase, exata, literal, foi: “Tu me cantarás isso... sem lágrimas”.

Notas

1. Relato oral do Pe. Severino Monzó à autora. Cfr. AGP, RHF T-07823.

2. Testemunho de Marlies Kücking.

3. D. Álvaro del Portillo. AGP, RHF 21175, p. 37.

4. AGP, RHF 21164, pp. 673-674.

Pilar Urbano, O homem de Villa Tevere (trad. port.), São Paulo, Quadrante, 1995, cap. 19, p. 441-464