A santidade é para todos

“Com a aguda percepção que dá a luz de Deus, a fim de antever as questões cruciais da existência humana e da história do mundo, o jovem sacerdote Josemaría vislumbrou — apesar de que muitos indícios externos sinalizavam precisamente o contrário — que no nosso tempo e nos tempos vindouros existia um grande espaço — todo o espaço! — para a santidade”.

No próximo dia 6 de outubro, ecoarão, uma vez mais, na Praça de São Pedro, no Vaticano, as palavras do ritual de canonização dos Bem-aventurados. São palavras sonoras, que um cristão nunca ouve sem experimentar um estremecimento interior: “Para honra da Santíssima Trindade, para exaltação da fé católica e incremento da vida cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e a nossa, depois de haver longamente refletido (...), declaramos e definimos Santo o Beato...”.

Desta vez a pessoa objeto das palavras do Papa será o Bem-aventurado Josemaría Escrivá, o fundador do Opus Dei, que pregou incansavelmente que todos os homens estão chamados por Deus a serem santos. Mons. Escrivá era homem apaixonado pela santidade. Via-a como realidade árdua, que supõe luta, mas, ao mesmo tempo, como algo possível e acessível a todos. São palavras suas: “Para pacificar a terra com paz autêntica, para transformar a terra, para procurar Deus Nosso Senhor no mundo e através das coisas do mundo, é indispensável a santidade pessoal. Em minhas conversas com pessoas de tantos países e dos mais diversos ambientes sociais, perguntam-me com frequência: E que nos diz aos casados? E a nós que trabalhamos no campo? E às viúvas? E aos jovens? E respondo sistematicamente que tenho uma só panela.( ...) O Senhor chama cada um à santidade e a cada um pede amor. a jovens e velhos, a solteiros e casados, a sãos e enfermos, a cultos e ignorantes; trabalhem onde trabalharem, estejam onde estiverem” (cf. Amigos de Deus, n. 294). Para ele, a realização verdadeira do homem consistia em atingir essa meta, em esforçar-se de um modo comprometido para um dia chegar à santidade. E, pelo contrário, o naufrágio da existência do homem — mesmo que houvesse muitos outros êxitos: fortuna, fama, prestígio — seria deixar a vida enveredar por uma órbita de desordem, de egocentrismo, de falta de compromisso para com Deus e os demais, que a afastaria da santidade.

Faz quase dois anos, na Carta Apostólica Novo millenio ineunte, o Papa traçou as diretrizes da atuação dos cristãos nesta nova etapa da vida da Igreja e da humanidade. Ao falar da necessidade da santidade, as suas palavras ganham um especial vigor: “Em primeiro lugar, não hesito em dizer que o horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral é a santidade. (...) (n. 30). É a hora de repropor a todos, com convicção, esta medida alta da vida cristã habitual: a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nesta direção (a santidade)” (n. 31).

Deus muitas vezes serve-se dos santos para enviar recados à humanidade. No final dos anos 20, o fundador do Opus Dei começou a pregar com grande empenho a chamada universal à santidade, que mais tarde veio a ser o núcleo dos ensinamentos do Concílio Vaticano II e que o Papa recordou recentemente aos cristãos. A idéia está no Evangelho — aliás é a sua idéia central — mas, na prática, estava tão esquecida; que alguns ouvidos mais conservadores tacharam a pregação do padre Josemaría de herética. Em 1967, em entrevista à revista Time, ele explicava mais uma vez a chamada universal à santidade. “Com o começo da Obra, em 1928, o que preguei foi que a santidade não é coisa para privilegiados, pois podem ser divinos todos os caminhos da terra, todos os estados, todas as profissões, todas as tarefas honestas. As implicações dessa mensagem são muitas, e a experiência da vida da Obra ajudou-me a conhecê-las cada vez com maior profundidade e riqueza de matizes” (Questões Atuais do Cristianismo, n.26).

Com a aguda percepção que dá a luz de Deus, a fim de antever as questões cruciais da existência humana e da história do mundo, o jovem sacerdote Josemaría vislumbrou — apesar de que muitos indícios externos sinalizavam precisamente o contrário — que no nosso tempo e nos tempos vindouros existia um grande espaço — todo o espaço! — para a santidade. "Um segredo. — Um segredo em voz alta: estas crises mundiais são crises de santos. (...)” (cf. Caminho, n. 301), escreveu ele em 1939. Não é que negasse entidade às crises daquela época e às de agora: crises sociais, desajustes humanos de diversas ordens, crises familiares ou pessoais ...Reconhece a seriedade desses problemas e a urgência de um remédio eficaz e, precisamente por isto, vem à tona uma vez mais a sua “receita” de sempre. Quando houver mais homens e mais mulheres dispostos a viverem com simplicidade e a fundo, apesar dos seus defeitos e limitações nos ensinamentos de Cristo, o mundo estará a caminho de tornar-se mais humano e mais justo, porque se terá ido à raiz última dos problemas, que irão sendo resolvidos, em vez de simplesmente tratados com paliativos.

Caminho a obra mais conhecida do Bem-aventurado Josemaría, está pontilhada desses convites vigorosos e entusiasmados a que todos se aventurem pela trilha da santidade. “— Que a tua vida não seja uma vida estéril.— Sê útil.— Deixa rasto.— Ilumina com o resplendor da tua fé e do teu amor. (...)” (n. 1); “Diz, a... esse, que preciso de cinquenta homens que amem a Jesus Cristo sobre todas as coisas” (n. 806). Não se trata de convites românticos, metafóricos, mas de uma convocação séria, para agora, que se deve perceber e a que se deve responder com plena liberdade. Neste sentido, pode-se dizer que Caminho é um livro revolucionário. Na sua biografia do fundador do Opus Dei, o professor Peter Berglar, com a autoridade que lhe dá o seu prestígio como historiador e a isenção que tinha pelo fato de ser alemão, compara o livro com as Meditações intempestivas de Nietzsche e afirma que os ensaios polêmicos do filósofo são quase inofensivos e ingênuos ao lado do vigor e da força de mobilização dos breves pontos de meditação do livro de Escrivá (cf. Opus Dei. Vida y obra del Fundador, p. 354). De fato, aí, como nas suas outras obras e na sua pregação como um todo, não se limita a expor idéias, mas procura comunicar uma experiência viva, um estímulo que fermente a existência com o fermento do Evangelho.

No próximo dia 6 de outubro, voltaremos a ver a Praça de São Pedro transbordante de gente das mais diversas procedências, muitos dos quais terão chegado ali depois de esforços consideráveis. Uma coisa é certa: nem essas centenas de milhares de pessoas, nem os milhões de telespectadores que acompanharão a cerimônia nos quatro cantos do mundo são simples admiradores ou seguidores descomprometidos do novo santo da Igreja. São pessoas comuns, vulgares, de todas as raças e nações, jovens e velhos, de todas as condições sociais, que há muito tempo ou há pouco, também se convenceram de que “estas crises mundiais são crises de santos” (cf. Caminho, 301), decidiram procurar que as suas vidas não fossem estéreis, mas úteis (cf. Caminho; 1) e, conscientes dos seus defeitos e limitações, mas ao mesmo tempo cheios de entusiasmo e de brios, atreveram-se a tentar ser um desses cinquenta homens ou mulheres que amam a Jesus Cristo sobre todas as coisas (cf. Caminho, 806).

A canonização do Bem-aventurado Josemaría Escrivá e a consequente extensão do seu culto litúrgico à Igreja universal suporão grande bem para a humanidade e para todos os cristãos, já que será um estímulo para que muitos, que até agora talvez só olharam para a santidade de longe, como uma questão abstrata e alheia, de repente passem a vê-la com outros olhos, como convite fascinante e pessoal, meta concreta e possível, plenamente compatível com as circunstâncias da vida no nosso mundo.

Mons. Pedro Barreto Celestino é o Vigário da Delegação da Prelazia do Opus Dei no Rio de Janeiro.

    Mons. Pedro Barreto Celestino // Jornal do Commercio